Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Novas gerações tendem a uma percepção mais
acentuadamente crítica do que lhes seria o natural por origem e situação de
classe social, o chamado conflito de gerações
O dia 5 de maio foi o do encerramento do
prazo do alistamento para participar das ansiosamente esperadas eleições de
2022. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Edson Fachin,
anunciou com justificado júbilo que o Brasil ganhou 2.042.817 novos eleitores
entre 16 e 18 anos de idade, que no dia 2 de outubro votarão pela primeira vez.
A acolhida desses novos cidadãos
brasileiros à condição de combatentes cívicos da luta pela regeneração da
combalida democracia brasileira me lembra outra manifestação, simbolicamente
significativa, de acolhimento de outros novos cidadãos. A do Almirante
Tamandaré (1807-1897), patrono da Marinha, herói da pátria, que, nas
disposições de seu testamento, estabeleceu:
“Exijo que (...) meus restos mortais (...)
sejam conduzidos de casa ao carro e deste à cova por meus irmãos em Jesus
Cristo que hajam obtido o foro de cidadãos pela Lei de 13 de Maio. Isto
prescrevo como prova de consideração a essa classe de cidadãos em reparação à
falta de atenção que com eles se teve pelo que sofreram durante o estado de
escravidão...”
Os dados estatísticos do eleitorado,
divulgados pelo TSE, revelam que quase 22 milhões de eleitores, que poderão
votar no dia 2 de outubro, são jovens entre 16 e 24 anos de idade. São os novos
brasileiros da pós-modernidade.
As mulheres continuam sendo a maior parte do eleitorado. No total, elas passam de 77 milhões, e os homens estão chegando aos 70 milhões. Elas os ultrapassam em 7,5 milhões de eleitores. Um número que lhes permite influir nas decisões políticas em favor de seu legítimo e criativo entendimento do que devem ser as reivindicações sociais desta hora. Nas reuniões da CPI da Covid-19, as senadoras de diferentes partidos organizaram-se numa frente suprapartidária ativa, do tipo de ação política de que mais carece o país neste momento.
Os 22 milhões de jovens eleitores, se
inspirados na coragem política das senadoras da CPI, poderão decidir de verdade
o futuro do Brasil. Poderão superar os bloqueios de uma estrutura política que
favorece o oportunismo e em nome dele nos condena ao atraso que se tornou poder
nas eleições de 2018. Na verdade, essa é apenas uma hipótese, pois,
sociologicamente, a tendência é de que as novas gerações reproduzam as
diferenças sociais que separam as pessoas em categorias desiguais.
Mas, sociologicamente também, as novas
gerações tendem a uma percepção mais acentuadamente crítica do que lhes seria o
natural por origem e situação de classe social, no desencontro de visão de
mundo e de concepção da vida com os pais, o chamado conflito de gerações.
Esse conflito, provavelmente, terá uma
função politicamente significativa nestas eleições se os partidos sociais
conseguirem definir os marcos de uma nova consciência crítica para essa geração
e um projeto de nação que seja de superação de tudo e não só de superação de
Bolsonaro e do bolsonarismo. Sobretudo porque a maioria dos candidatos
apresenta-se marcada por uma notória obsolescência.
Tanto Lula, que ainda não deu sinais claros
de que tem consciência de que as coisas mudaram desde 2010, seu último ano de
governo. Mudaram aqui e no mundo. A derrota do PT e das concepções sociais de
então nas eleições de 2018 têm muito a ver com isso e com sua manipulação
distorcida pela “fábrica” clandestina de “fake news”.
Quanto a Bolsonaro, que, alienadamente,
concebe a restauração do passado como superação e não como o retrocesso que é,
sem saber que o passado de seu imaginário político não existiu e foi, portanto,
derrotado duas vezes, porque mal representado e por ser falso e inviável.
Um dos aspectos importantes do protagonismo
dos novos eleitores nestas eleições de outubro de 2022 está no legado do que
dos governos anteriores ficou na memória social, apesar de todo o esforço feito
para forjar uma memória falsa da história política do país.
Nem tudo na memória popular pode ser
falsificado e manipulado. Um detalhe decisivo nos identificadores dos eleitores
brasileiros é o da instrução e da escolaridade. Quando Lula assumiu o poder, em
1º de janeiro de 2003, 3,2% dos eleitores tinham curso superior completo.
Quando Dilma deixou o poder, em agosto de 2016, 6,9% dos eleitores o tinham. Um
avanço significativo na educação superior brasileira durante o mandato petista,
o dobro em 14 anos de poder.
Durante eles, foi multiplicada e
disseminada a universidade pública e gratuita no Brasil, uma das grandes
aspirações sociais da classe trabalhadora para seus filhos. Uma aspiração que
continua vigorosamente de pé em face das ameaçadas que sobre ela pesam pelas
tendências do governo em favor das privatizações, uma delas na área da
educação.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Fronteira - a degradação do outro nos
confins do humano" (Contexto).
Nenhum comentário:
Postar um comentário