sábado, 4 de março de 2023

Eduardo Affonso - As novas sensibilidades

O Globo

Esta geração precisa de espaços seguros para se desenvolver e não pode ser exposta a barbáries do tipo Tom & Jerry

Há quem fale em censura, mas as edições revistas e pasteurizadas de clássicos podem ser entendidas como mera atualização de discurso, acomodação aos novos tempos. Releituras, ao estilo “quem conta um conto omite um ponto”.

Se há consumidor para café sem cafeína, cerveja sem álcool e churrasco de melancia, também os haverá para literatura sem “gordo”, “feio”, “louco”. Ou que evite palavras cavilosas, como “preta” — ainda que para caracterizar a cor de um casaco — e “branca” — mesmo que para falar da lividez de um rosto.

Já foram feitas adaptações de “Dom Quixote”, da “Odisseia” e até de “Alice no País das Maravilhas” para leitores infantis. Mauricio de Sousa abrasileirou Shakespeare, Jonathan Swift e Alexandre Dumas usando a Turma da Mônica. Não deveria haver problema em ajustar Roald Dahl e sua “Fantástica fábrica de chocolate” à frágil criança moderna.

Esta é uma geração que precisa de espaços seguros para se desenvolver e não pode ser exposta a barbáries do tipo Tom & Jerry ou Recruta Zero & Sargento Tainha. Imagine a fluoxetina necessária para livrar os petizes do século XXI da angústia de conviver com uma hiena depressiva como Hardy (“Oh, dia, oh, céus, oh, azar”) ou com a competitividade desenfreada da “Corrida maluca”.

Não há mais lugar para vilões acima do peso (valeu, Madame Min!), portadores de deficiência física (para a prancha, Capitão Gancho!) ou divergentes dos padrões estéticos impostos pela sociedade (hasta la vista, madrastas, cucas e gargameis!).

As Seleções do Reader’s Digest ofereciam versões condensadas de romances para quem não tinha tempo (ou paciência) para os originais. Walt Disney calibrou os contos de fadas ao paladar da classe média — suprimindo suicídio, canibalismo, pedofilia.

Sempre foi assim: alguém já viu uma “Bíblia para crianças” com as passagens sobre escravos terem de se sujeitar a senhores perversos, mulheres serem apedrejadas por não chegarem virgens ao casamento e homossexuais merecerem a pena de morte?

É natural que livros sejam traduzidos não só de uma língua para outra, mas também de um tempo a outro, servindo a uma geração que quer poupar os filhos de conviver com o que a cultura produziu antes do advento da (sua) Verdade.

Durante as ditaduras — a getulista e a militar —, o que não faltou foi obra de arte adaptada às novas sensibilidades. Aldir Blanc precisou trocar o “almirante negro” por um genérico “navegante”. O bonde de São Januário, de Wilson Batista, que “leva mais um otário/que vai indo trabalhar” passou a levar “mais um operário”. Raul Seixas teve de se livrar de “quem não tem presente se contenta com o futuro” para aprovar o seu (quem não tem colírio usa) “óculos escuros”. Rita Lee e Roberto de Carvalho abriram mão da transa mais explícita de “Em plena vagabundagem/em qualquer posição/falando muita bobagem/bolinando com água e sabão” para ficar apenas “com toda disposição”, se “esfregando”, sem bolinar.

Censura? Imagina. Apenas adequação ao que ferisse as suscetibilidades do momento histórico.

O que mudou é que isso ficava a cargo do aparato da repressão ou dos interesses comerciais. Agora quem define é a “elite intelectual”. Não deixa de ser um apigreide, pois não?

Pelo menos não queimam os originais. Há de continuar existindo quem prefira o sumo ao refresco.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Affonso feriu com força...
Saudade do tempo que não existia o maldito 'politicamente correto'!