terça-feira, 7 de novembro de 2023

Ricardo José de Azevedo Marinho* - Olha, vê, repara

Além das definições patológicas para as diversas formas de má visão, os dicionários fornecem outra: quando existe a incapacidade de ver coisas que são muito claras e fáceis de entender ou de perceber com perspicácia sobre algum assunto. Isso é o que chamamos de má visão intelectual.

Essa característica costuma ser muito comum na política e afeta especialmente aqueles que ocupam posições dos extremos, seja à direita seja à esquerda. As causas dessa má visão parece ser a postura obtusa advinda do olhar doutrinário, as convicções de verdades absolutas que acreditam possuir, o desprezo por certa relatividade típica das regras democráticas e uma surdez crônica face às diferentes opiniões que consideram filhas do erro. Se junta a má visão a má audição.

Estas causas agravam-se quando, por estados de espírito normalmente efémeros, obtêm uma grande votação como normalmente acontece com o voto volátil e emocional que ocorre na nossa sociedade da informação.

Foi o que aconteceu com a avaliação bem ponderada apresentada ao Congresso Nacional na precisa alusão a Frente Democrática que num passe de mágica e influenciado por uma ideologia da reconstrução, para um uso falacioso da Frente Ampla alimentada por uma visão fabulosa da heterogeneidade original. Tudo isto produziu uma formação governamental muito tendenciosa a favor de uma visão identitária e turbulenta, pouco afeita a negociar e dotada de uma expressividade agressiva e cansativa à qual se submeteu certa esquerda, que faticamente caminha com passos de formiga pelo seu viés das reformas apesar do progresso que representou para o país.

Como bem sabemos, a estória da Frente Ampla tem oportunizado uma série de erros cometidos até aqui pelo governo como tem reconhecido Lula bem como uma sequência de derrotas que já colocou na berlinda o projeto de lei orçamentário de 2024 apresentado, entregue por aqueles de nós que sabemos ser este texto não o resultado de uma epifania que enfraqueceria a reforma do sistema tributário e colocaria em jogo a possibilidade de retomar no futuro o caminho das reformas serenas que podem mudar a face do Brasil como sugeriu o informe da Conferência das Nações Unidas (ONU) para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) para nosso crescimento acima da média mundial em 2023. É claro que os setores conservadores dos extremos também se opuseram sem, felizmente, fazer muito barulho.

Inicia-se então um segundo processo ora em curso de novas dinâmicas dignas de um Angus Deaton, em preparação de forma intuitiva, mas onde se procura uma solução consensual, uma caminhada que possa se fazer aprovar nos moldes das três emendas constitucionais pré-natalinas de 2022. Tudo foi muito bom, impecável à época, só que desta vez estamos sem o voto popular que só voltará à cena em 2024. O voto inconstante virá e os seus humores ainda são insondáveis.

Na sequência ao anúncio do Fundo Monetário Internacional (FMI) da previsão de que o país vai fechar 2023 como a 9ª economia do mundo convergindo assim com as boas novas da UNCTAD, veio mais um alarme quando da rejeição da indicação para a Defensoria Pública da União (DPU) onde se insinuou que a esperança se situa nos acordos prevalecentes para gerar um contexto equilibrado, porque como bem sabemos que não foi, nem é, a bonomia política que caracteriza a era dos extremos.

Por isso o processo de negociação subsequente esteja sujeito a altos e baixos, idas e vindas, a despeito de muitas promessas não cumpridas na íntegra, não se gerou desconfiança e os posicionamentos partidários seguem firmes. Embora houvesse concessões e algumas flexibilidades, estas foram em grande parte insuficientes.

A centro-direita está tentando desempenhar um papel mais moderado. Está claro que não cometerá o mesmo erro que a centro-esquerda cometeu em relação à esquerda radical, ou seja, de abandonar a sua autonomia política e a de abraçar uma posição subordinada em relação à direita radical. A Frente partidária no poder que precisa se assumir Democrática, por seu lado, ainda não teve a flexibilidade necessária para alcançar melhores equilíbrios. A combinação de todos estes fatores conduziu-nos a uma situação desconfortável, cujo resultado não é fácil de prever e cujos fundamentos são indefinidos.

Ainda mais numa situação mundial que atravessa uma fase triste e tumultuada, com uma economia global de baixa prosperidade e uma geopolítica que mostra duas guerras entrelaçadas e em expansão, com um sistema intergovernamental deteriorado. Apesar de tudo, os tempos do réveillon e da folia carnavalesca estão chegando. O Brasil é obrigado pelas suas características a conter os seus conflitos internos, a reduzir as suas divisões, a gerar acordos que lhe permitam retomar o desenvolvimento e o caminho do bem-estar social sem tempos de raiva.

Em todo o caso, é necessário não dramatizar as reformas econômicas. Não há aqui nenhum perigo irreparável em jogo que possa mudar substancialmente a democracia brasileira. Pensar assim seria adotar mais uma espécie de fetichismo da vez nesses tempos repletos deles. Qualquer que seja o resultado negocial, o governo deve concluir este ciclo de reformas de acordo com o que foi decidido pelos cidadãos em 2022 e entrar plenamente no avanço das respostas às muitas necessidades não resolvidas da população. Acima de tudo, não fique tentado a dar ouvidos aos espectros que gostariam de produzir um novo pandemônio (um lugar de muito barulho e confusão) criando um habitat perfeito para o Brasil não avançar.

*Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


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