Folha de S. Paulo
Com ou sem ajuste nas finanças, haverá dor
social; para governar, o libertário ultradireitista terá de ceder muito poder
Não há dúvida que a maioria da Argentina resolveu
mudar, por maioria relativamente folgada. O sentido da mudança é uma incógnita
que vai muito além da definição do programa econômico do vitorioso
Javier Milei, por mais essencial que seja o plano de estabilização e
reformas.
Sem acordo político muito amplo, o libertário
ultradireitista não governa. Não tem votos parlamentares, não tem quadros
técnicos ou políticos experimentados nem apoio de boa parte da elite econômica.
O que sobrará do plano extremado de Milei depois de um arranjo com a
centro-direita e a direita convencional?
Milei por ora não tem votos no Congresso nem ao menos para evitar um processo político, mesmo que vier ou viesse a contar com o apoio integral do partido do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), o PRO. A fim de obter 129 dos 257 votos da Câmara de Deputados, teria de somar também todos os votos da coalizão Juntos pela Mudança, da qual faz parte o PRO, de Macri e de sua candidata derrotada, Patricia Bullrich.
Mas a coalizão está rachada, com a possível
defecção do partido União Cívica Radical, entre outros. No poder, se fazem e se
adquirem amigos, claro. Quantos amigos é a questão —uma dúvida do tamanho de
até 40 votos. Uma das mudanças importantes desta eleição foi o aumento grande
da fragmentação partidária.
Milei venceu o ministro da Economia —e
presidente de fato—, Sergio Massa,
por quase 56% a 44%. Sua votação aumentou o equivalente a quatro quintos dos
eleitores que haviam optado pela centro-direita de Bullrich e pelo centrista
Juan Schiaretti no primeiro turno. Foi uma declaração de voto enfática. No quê?
Foi um voto no programa de Milei de
dolarização, corte enorme de gastos públicos, privatização da oferta de
serviços públicos como educação, fim do Banco Central? Um voto antiperonista,
seja lá o que isso signifique? Foi ao menos um voto contra os herdeiros do
kirchnerismo. Um voto de rejeição.
Por aritmética, quase metade dos votos de
Milei não são "libertários" de alma, de adeptos da
"motosserra" (corte enorme de despesa pública) ou dos despautérios do
candidato vitorioso. Assim, um acordo de divisão de poder e de programa com
Macri e Bullrich se torna socialmente mais aceitável.
Esse acordo em tese deveria tratar de muito
mais do que as terríveis emergências econômicas, as quais apenas vão piorar sem
um programa econômico que faça sentido. Se Macri vier a ter poder no governo
Milei, talvez defenda providências que não adotou em sua fracassada Presidência
—quase não fez reforma e promoveu um enorme endividamento externo, com o que a
Argentina quebrou outra vez.
De início, ao menos, Milei viverá sob a
sombra de sua promessa de dolarização, o que é um motivo extra para a
desvalorização adicional do peso. Desvalorização enorme haverá. Com o peso
oficial supervalorizado de agora, não haverá perspectiva de que volte algum
dinheiro para a Argentina nem que sobrevenha um acerto nas contas externas do
país (mais exportações, menos importações, alguma entrada de capital
financeiro).
Tal ajuste depende também do fim de controles
de capital e da manipulação de taxas de câmbio. Depende de alguma liberação de
controles de importação e de redução de impostos sobre exportações. A
desvalorização vai pressionar a inflação. Se o programa econômico fizer
sentido, haverá também correção de preços como o de tarifas de serviços
públicos e de combustíveis. Mais inflação.
Tais ajustes, decerto mais paulatinos,
estavam previstos para os dias seguintes ao da eleição mesmo em caso de vitória
de Massa. No caso do governo Milei, o que se vai fazer é mistério. Mas ajuste
de câmbio e preços terá de ocorrer.
Ainda quanto a emergências: o governo da
Argentina não tem dinheiro para pagar os vencimentos da dívida externa pelos
próximos meses. Nem com a presente ajuda da China. Terá de renegociar
pagamentos com o FMI. Mais do que isso, terá de renegociar os compromissos e
metas de ajuste econômico com o Fundo, que foram todos descumpridos, no que
mais importa. Em tese, isso quer dizer mais aperto fiscal —menos despesa
pública, mais cortes de subsídios sociais.
É fácil perceber que se trata de uma
conjuntura em tese socialmente explosiva. Em tese: os argentinos podem estar
tão cansados de crise que talvez aceitem o sacrifício, diria uma especulação.
Por outro lado, 44% dos eleitores votaram na continuidade da política de
assistência, em seus termos, insustentável, de Massa.
Não importa qual fosse o plano de
estabilização econômica, haveria mais dor, antes de alguma possível melhora:
inflação de mais de 150%, recessão em 2023 e 2024, queda dos salários reais,
menos subsídios sociais. A dúvida maior agora é se haverá um plano crível,
sensato, de longo prazo, um programa que não provoque um acirramento sem
sentido e sem saída da crise. Milei não tinha esse plano. Presidente, Macri não
adotou tal plano. Enfim, resta saber se os argentinos vão tolerar o sofrimento
e se o que resta do kirchnerismo e/ou peronismo ficará quieto.
Um comentário:
Muito bom o artigo,ainda bem que eu posso ler por aqui.
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