Folha de S. Paulo
Longa reconcilia Brasil com seu cinema, e o
sorriso de Eunice Paiva é resistência vital que comove e fortalece
São conhecidos os méritos de "Ainda Estou
Aqui", que caiu no gosto do público e vem promovendo uma bem
vinda reconciliação do Brasil com seu cinema.
É verdade que outros filmes brasileiros recentes têm virtudes e conheceram
êxito de audiência e bilheterias, mas o longa de Walter Salles transita por uma
faixa de temática e mercado na qual temos às vezes resvalado.
"Ainda Estou Aqui" oferece os
clássicos atributos que levam gente aos cinemas: uma história capaz de
arrebatar, atuações muito boas de atores, com as estrelas Fernanda
Torres e Montenegro em
altíssimo nível, boa fotografia, boa trilha musical, roteiro e direção.
Diria, fazendo uma boutade, que é o melhor filme argentino feito no Brasil. Não vai aqui nenhum demérito, pelo contrário. A regularidade do padrão argentino é fato reconhecido por todos, entre os quais, diga-se, o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que inspira a produção, um admirador da cinematografia de nossos vizinhos, a começar pelo esplêndido "O Segredo dos seus Olhos".
Alguns ingredientes favorecem a referência.
Estamos no ambiente de uma família de classe média alta branca, educada e
politizada, com um tipo de sociabilidade espirituosa e civilizada, traços que
podem facilmente nos remeter a certa sociedade e filmografia argentinas —e que
se inscrevem em parâmetros internacionalmente reconhecíveis.
Acrescente-se a experiência comum de um
modelo ditatorial que se implantou na América do Sul e interferiu de modo
brutal no regime de liberdades e direitos, prendendo, exilando e retirando a
vida de milhares de pessoas. Essa é justamente uma ferida sobre a qual o cinema
argentino se debruçou com consistência ao entrelaçar dramas pessoais, sociais e
políticos em narrativas inteligentes e bem arquitetadas.
Certamente reparos poderiam ser feitos ao
filme. Talvez use tempo em demasia para expor o cotidiano da família bacana,
além de reviver um Rio de Janeiro um tanto limpo e idealizado —o Leblon é quase
que uma praia particular dos Paiva. Ouvi também comentários sobre o salto de 25
anos na história e sobre alguns clichês, a meu ver perfeitamente aceitáveis,
que reiteram convenções com alguma dose de melodrama.
São questões que, de diferentes maneiras,
sempre podem ser dirigidas aos melhores filmes. Não estamos, afinal, falando de
uma obra-prima irretorquível.
É de se destacar por fim o que já vem sendo
justificadamente reconhecido: a atuação de Fernanda Torres é um caso à parte.
Comoveu-me especialmente um traço que, no final das contas, está no âmago do
filme, que é a insistência num tipo vital de resistência, representada pelo
sorriso.
A Eunice Paiva de Nanda Torres, contra tudo,
nos contempla com esse sorriso que ora está ali presente, se anuncia mas não
desabrocha e ora é convocado explicitamente para simbolizar uma vontade
irredutível de não se dobrar, de colocar a defesa da vida digna como estratégia
inegociável do combate. Isso vai da fotografia feita para a reportagem sobre
o sequestro de
Rubens Paiva à cena final.
As circunstâncias todas vieram a sorrir para
"Ainda Estou Aqui", inclusive, paradoxalmente, a sinistra carranca
do golpismo
bolsonarista, um sinal claro da pertinência dessa história que nos
alerta e fortalece.
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