Valor Econômico
Desejo dos extremistas populistas é
transformar o voto num instrumento para dar poder sem freios aos governantes
O sentimento antissistema se alastrou por boa
parte das democracias ocidentais, gerando uma onda de populistas de extrema
direita cuja palavra de ordem é a desconstrução. Quando chegam ao governo,
tentam desconstruir instituições e políticas norteadas pelo longo prazo, como
está ocorrendo agora com Trump e aconteceu no Brasil com Bolsonaro.
Radicaliza-se uma concepção de política
segundo a qual tudo pode ser feito pelos governantes eleitos pelo povo, que
procuram ter um mandato de cunho revolucionário. É preciso combater essa visão
que se aproveita de fissuras do regime democrático para colocar em jogo o
futuro das nações e da humanidade.
O caráter disruptivo do populismo extremista está se manifestando fortemente no governo Trump. A cada dia ele toma novas decisões, algumas delas contradizendo o que fez anteriormente. Lembra muito Robespierre, o revolucionário francês que no momento mais violento da Revolução Francesa tinha que diariamente acabar com alguma coisa do Antigo Regime - o que geralmente significava colocar pessoas na guilhotina. O jacobinismo trumpista não admite controles, regras constitucionais nem projetos de longo prazo, construídos para beneficiar os que vêm depois.
Os interesses imediatos, inclusive os do
governante e sua família, e ideias sem nenhuma elaboração mais profunda ditam o
ritmo frenético de uma política “presentista” na qual não há lugar para o
amanhã. Não por acaso Trump, em seu primeiro governo, e Bolsonaro foram
desastrosos na condução do combate à pandemia de covid-19. A célebre frase “eu
não sou coveiro” dita pelo nosso ex-presidente revela bem a falta de
compromisso com o longo prazo que marca a extrema direita.
O imediatismo dos extremistas aparentemente
alimenta-se de vínculos mitológicos com o passado. Por isso, como os fascismos
do passado, enaltecem o Brasil, a Alemanha e os Estados Unidos que eram
antigamente “felizes e grandes”. Mas a extrema direita não comunga dos mesmos
ideais do conservadorismo clássico, porque a tradição aqui é usada apenas como
um truque para construir a identidade e símbolos para seus correligionários. O
seu desejo não é preservar as instituições e valores, mas virá-las de cabeça para
baixo.
O tradicionalismo é muito difuso e não
pertence a ninguém, ao passo que os líderes extremistas querem uma ordem à sua
imagem e semelhança. Daí que a noção de temporalidade da extrema direita é bem
distinta: eles querem mudar tudo sem freios, com movimentos autocráticos,
erráticos e trágicos. O longo prazo, definido como uma ponte temporal
consistente entre o que tem sido feito e um projeto de futuro, é odiado por
lideranças como Trump e Bolsonaro.
Uma noção mais ampla e profunda da
temporalidade dialoga com uma perspectiva humanista segundo a qual é preciso
aprender incrementalmente com as instituições e a prática social, ao mesmo
tempo que a preocupação com o futuro, com nossos filhos e netos, deve se
alicerçar em estruturas de longo prazo. O trumpismo e o bolsonarismo são o
inverso disso.
Há neles um menosprezo em relação ao
aprendizado com a experiência e com a ciência, do mesmo modo que não querem
saber da lógica da formiga, que busca se precaver perante o futuro. A extrema
direita segue a ética da cigarra, da fruição do imediato em nome dos interesses
dos que fazem parte do seu grupo. Por isso que meio ambiente e educação, ou
então o destino geracional dos mais pobres, nunca vão ser importantes para
Trump e Bolsonaro.
A força desse ideário da extrema direita
ancora-se na rejeição aos figurinos econômico, social e cultural que emergiram
nos últimos 40 anos. Esse público quer líderes que “desmontem o sistema” da
forma mais abrupta possível. Podem até venerar o passado, mas no fundo querem
um novo presente, tirando tudo aquilo que é visto como um empecilho, isto é, os
grupos e ideias que são odiados como inimigos.
Abre-se, assim, um espaço para uma mudança
radical e sem freios, mesmo que seja baseada em proposições e práticas fora do
padrão - algumas são até anti-humanistas, mas no curto prazo o ódio cega tais
eleitores.
Utilizando esse caldeirão de insatisfações,
os líderes da extrema direita aproveitam-se de uma fissura da democracia: a
relação entre o voto e o longo prazo. O regime democrático tem como base a
soberania popular, a possibilidade de alternância do poder e a necessidade de
os governantes responderem às demandas da população. Desse modo, uma liderança
eleita legitimamente para fazer mudanças é algo que segue os ditames
democráticos. A questão é saber qual é o limite de qualquer governo transformar
abruptamente a agenda pública.
Se o raciocínio democrático seguir apenas a
lógica do voto, os governos eleitos poderiam modificar totalmente as políticas
públicas e deveriam ser pouco limitados pela legitimidade conferida pelas
urnas. Essa era a visão de Andrew Jackson, presidente populista americano, e de
uma série de lideranças políticas e pensadores que teriam uma visão
rousseauniana da democracia, para lembrar do conceito de Robert Dahl.
Foi com esse argumento que Trump afirmou, nos
últimos quatro anos, que uma prisão sua, por qualquer que fosse o motivo, seria
uma forma de perverter a democracia. Essa proposição vai se repetir no Brasil
caso Bolsonaro não possa concorrer à Presidência da República.
Outros teóricos da democracia têm uma outra
concepção, segundo a qual há limites para os governantes e mesmo para o grau de
transformação das políticas públicas. Entre os pontos que aparecem como
barreiras à visão rousseauniana, quatro podem ser destacados.
Primeiro, há direitos que não podem ser
retirados por nenhum governante, pois são garantidos pela Constituição como
prévios ao jogo político. Segundo, existem controles que evitam o poder
“autocrático eleito”, como os freios advindos de outros Poderes, de outros
níveis de governo, da sociedade e da própria burocracia, que não deve obedecer
a ordens ilegais ou a leis que coloquem em risco as pessoas, como no caso do
Holocausto.
As duas últimas possíveis barreiras são menos
citadas, mas têm se tornado cada vez mais importante nesta era de ascensão da
extrema direita e seu método blitzkrieg de governar. Como ideia geral, é
preciso criar regras para evitar mudanças abruptas das políticas públicas, pois
só emergências claras podem alterar significativamente as ações governamentais.
Afinal, a descontinuidade enfraquece o Estado e a democracia, favorecendo
líderes concentradores de poder.
A descontinuidade frenética dos governantes
da extrema direita deve encontrar uma barreira, ainda, na definição de
mecanismos institucionais que garantam políticas de longo prazo. Ao destruir a
burocracia federal americana, Trump não só tira um empecilho à sua
governabilidade autocrática como também reduz drasticamente a previsibilidade
das políticas públicas e a capacidade de elas terem um norte futuro. Se todos
os instrumentos de controle ambiental forem radicalmente enfraquecidos pelo
trumpismo, quem será o responsável pelos danos futuros aos agricultores, às
cidades costeiras e a todos aqueles que sofrerem com eventos climáticos
extremos? O voto dado aos populistas extremistas hoje está deixando um buraco
no futuro.
Do ponto de vista temático, quando os líderes
da extrema direita enfraquecem a educação ou negam a mudança climática, estão,
com os votos dos eleitores do presente, destruindo a possibilidade de cidadania
plena para os futuros cidadãos. A garantia de normas econômicas estáveis e
sustentáveis intertemporalmente é outro elemento que gera maiores condições de
as vontades democráticas serem satisfeitas futuramente.
Está cada vez mais claro que o trumpismo e o
bolsonarismo usam a democracia para subvertê-la. De forma mais óbvia, o desejo
dos extremistas populistas é usar uma justificativa rousseauniana e jacobina
para transformar o voto num instrumento para dar poder sem freios aos
governantes. Mas, além disso, quando muitas mudanças abruptas são realizadas
nas políticas públicas e os principais temas garantidores de um futuro melhor
às nações e à humanidade são atacados pela extrema direita, o regime
democrático também entra em risco.
Bolsonaro pôs em risco a democracia não
apenas por planejar um golpe de Estado ou nas vezes em que buscou limitar os
controles institucionais sobre a Presidência da República. Ele também enveredou
por um caminho que enfraquece o país e o regime democrático quando hipotecou o
futuro do país ignorando o desmatamento recorde na Amazônia ou ao desorganizar
o sistema educacional, com efeitos no curto e longo prazo para as crianças mais
pobres. O fato é que tivemos mais instrumentos para barrar uma autocracia bolsonarista
do que para reduzir os danos profundos que ele causou ao ser o coveiro do
futuro.
A imaginação daqueles que criaram os
processos eleitorais e de controles dos governantes foi essencial para o
aperfeiçoamento das sociedades democráticas. Agora é preciso construir um novo
projeto institucional capaz de evitar que a experiência desastrada da extrema
direita enfraqueça os elos de longo prazo das políticas públicas. Só assim
teremos uma democracia robusta como um regime que garantirá os direitos nos
próximos anos e para nossos descendentes.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário