quinta-feira, 4 de setembro de 2025

A hegemonia do dólar (de novo) na berlinda, por Maria Clara R. M. do Prado

Valor Econômico

O assunto voltou à discussão a partir da política tarifária do governo Trump, que traria o valor do dólar de volta ao nível de equilíbrio

Qual o futuro do dólar? Conseguirá manter-se como a moeda de reserva internacional? Por quanto tempo? Estas perguntas estão no cerne do debate econômico atual, mas não são novas. Desde que o sistema de Bretton Woods foi criado, em 1945, a predominância do dólar no cenário financeiro global tem sido objeto de críticas quanto à sua eficácia para o equilíbrio das transações entre os países e dúvidas com relação à sua durabilidade.

O assunto voltou à discussão a partir da política tarifária do governo Trump, baseada na ideia de que taxar a exportação dos produtos comprados pelos importadores norte-americanos, caso a caso, traria o valor do dólar de volta ao nível de equilíbrio, além de contribuir para a redução do déficit das contas públicas. Não se sabe qual seria esse nível de equilíbrio. A rigor, nunca houve uma manifestação da Casa Branca com o desenho de uma política econômica em seus vários aspectos.

As intenções econômicas da equipe de Trump têm sido percebidas através dos escritos de Stephen Miran, chefe do conselho de assessores econômicos, autor do paper “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System”, de novembro de 2024, conhecido por “Acordo de Mar-a-Lago”. A proposta defende a depreciação do dólar no longo prazo, ao mesmo tempo em que a moeda norte-americana manteria o papel dominante de reserva internacional.

A imposição de tarifas teria o efeito de reduzir a “super valorização do dólar”, responsável, segundo ele, pela queda na competitividade das exportações dos Estados Unidos e os consequentes déficits comerciais, além da degradação da indústria daquele país.

A proposta é inovadora. Ao invés de fazer uso de intervenções no mercado de câmbio, a iniciativa pretende corrigir o alegado desequilíbrio com uma mudança forçada no valor do dólar na suposição de que, por serem financiadas pelos países cujos produtos sofrem tarifação, as tarifas contribuiriam para reduzir o poder de compra e a renda dos parceiros comerciais. A tarifa representaria uma penalidade contra a valorização do dólar, em termos pontuais. Não se prevê no arrazoado a hipótese de substituição de mercados nem de retaliações.

Vale aqui uma observação. Ao contrário do resto do mundo, os Estados Unidos não dispõem de instrumentos de intervenção corriqueira no câmbio justamente por serem emissores da moeda de reserva internacional. O dólar não sofre risco cambial. Pode, sim, ser afetado por fatores indiretos, como a taxa de juros ou a perda de confiança na robustez da economia norte-americana.

Miran quer diminuir a demanda por dólares através do desestímulo às importações efetuadas pelos Estados Unidos, uma das vias pelas quais a liquidez da moeda norte-americana tem sido injetada no mundo, e que contribui justamente para torná-la hegemônica. Isso cria um círculo virtuoso ou vicioso, dependendo do ponto de vista: os Estados Unidos podem assumir déficits em suas contas externas e também na conta fiscal porque pagam as importações com a própria moeda, aquela que serve de referência para a maior parte das transações financeiras e comerciais no mundo.

Em um segundo momento, segundo ele, o dólar tenderia a se desvalorizar de forma generalizada, mas isso dependeria de negociações políticas.

“A remoção das tarifas se daria em troca de significativos investimentos na indústria dos Estados Unidos pelos nossos parceiros comerciais, com a China entre eles”, diz Miran em seu paper. Neste momento, quando parte da renda do resto do mundo for desviada para inversões no solo norte-americano, o dólar passaria a se desvalorizar, mas ele não crava isso em pedra. “Pelo fato de as tarifas serem dólar-positivas, é importante que os investidores entendam a sequência das reformas no sistema de comércio internacional. O dólar tende a apreciar antes de reverter (para a depreciação), se é que isso vai acontecer”.

É difícil captar coerência nos argumentos de Miran, ainda mais quando os resultados estão sujeitos à negociação política. Além disso, existe uma certa discrepância na busca pela desvalorização generalizada do dólar com a perspectiva de que a moeda mantenha a função de reserva internacional. A falta de confiança na proposta, combinada com as atitudes erráticas de Trump, tem suscitado sérias dúvidas a respeito da permanência da primazia do dólar como moeda reserva. A questão é antiga.

Ainda nos anos 60, quando o dólar estava atrelado ao ouro, o então ministro das Finanças da França, Valery Giscard D’Estaing, cunhou a expressão “privilégio exorbitante” para qualificar a situação econômica dos Estados Unidos. O inconformismo dos franceses com a primazia norte-americana levou o então presidente Charles De Gaulle a mandar aos Estados Unidos um avião com dólares a bordo para serem trocados por ouro. Achava que, assim, ajudaria a acabar com o sistema financeiro introduzido por Bretton Woods. Demorou um pouco para isso acontecer. Só em agosto de 1971, o então presidente Richard Nixon pôs fim ao regime de conversibilidade ao ouro.

O dólar virou uma moeda fiduciária flutuante, mas isso não afetou sua posição no mundo. Já estava consolidada. Firmou-se ainda mais na era dos petrodólares e dos conflitos regionais que ampliaram a venda de armamento pelos Estados Unidos.

Mais recentemente, na crise financeira de 2008/2009, provocada pelos sub-primes dos financiamentos imobiliários, a moeda norte-americana sofreu uma grande crise de confiança, a ponto de alguns economistas defenderem o uso do DES (Direito Especial de Saque), uma unidade de conta para uso interno do FMI, como moeda de reserva internacional.

O dólar, no entanto, tem resistido. Seu poder no mundo perdura por tanto tempo que não se imagina um arranjo monetário diferente. Mesmo para os Estados Unidos a mudança implicaria consequências inimagináveis. Como disse o economista norte-americano Barry Eichengreen, basta alguns centavos para uma cédula de 100 dólares ser produzida (emitida), enquanto que os demais países têm de produzir aquela quantia em mercadoria para obterem uma cédula no mesmo valor.

 

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