O Estado de S. Paulo
Atitudes de viés autocrático turvam a
condição de quem deve participar de uma decisão tão séria sobre a USP, que só
faz defender a democracia
Neste segundo semestre, a USP vai escolher
quem ficará à frente da reitoria pelos próximos quatro anos. É a “eleição
reitoral”, como se diz no jargão acadêmico. Estamos falando da designação do
dirigente da maior e mais ativa universidade do Brasil, frequentemente apontada
nos rankings internacionais como uma das cem melhores do mundo.
A decisão começará dentro da USP, mas será resolvida fora da USP. O que a comunidade universitária fará, por meio de seus órgãos colegiados e de consultas internas, é uma votação. Em seguida, os três nomes mais sufragados comporão a lista tríplice, e esta seguirá para o Palácio dos Bandeirantes, onde o governador do Estado exercerá seu poder – legítimo e legal – de definir quem assumirá o posto. A última palavra, portanto, virá do chefe do Poder Executivo paulista.
Esse rito decisório tem razão de ser e tem
funcionado a contento. Claro que há momentos melhores e momentos piores. Quando
quem governa o Estado tem um entendimento maduro do que significa a autonomia
universitária, compreende a natureza da pesquisa, sabe distinguir a ciência da
filosofia e tem compromisso com a paz, com os direitos humanos e com a
normalidade democrática, as coisas tendem a ir bem. Quando não é assim, fica
mais difícil. A questão é saber como vai ser desta vez.
O governador do Estado, como temos visto,
prefere a força ao saber. Sua política policial se baseia na violência. A
viatura escura passa em alta velocidade, dando pinotes sobre rodas,
ziguezagueando na pista, e a gente começa a cantarolar “chame o ladrão, chame o
ladrão” (abraço, Chico Buarque). Os episódios de abuso da farda contra pessoas
indefesas produziram um saldo de pilhas de cadáveres, e o Palácio não muda
sequer o titular da Secretaria de Segurança. Para completar, o chefe do
Executivo insiste nas tais “escolas cívico-militares”: quer que a caserna dê
aulas para a cidadania, quando o País precisa do oposto.
Quando o assunto é cultura, o descaso impera.
O Bandeirantes submete a TV Cultura a uma seca de recursos sem precedentes.
Sempre que pode, desprestigia as artes, a diversidade de opiniões, a boa
informação jornalística e o pensamento crítico. É verdade que, até agora, não
tivemos um ataque frontal contra a USP, mas, considerado o entorno, as
perspectivas não inspiram o otimismo.
Tudo ia mal até que, esta semana, o quadro
piorou. O titular do Executivo paulista começou a bombardear o processo do
Supremo Tribunal Federal (STF) em que um certo (ou errado) capitão reformado e
outros réus são julgados pela tentativa de golpe de Estado. “Infelizmente, hoje
eu não posso falar que confio na Justiça”, ele declarou, conforme registrado no
editorial do Estadão de ontem ( As escolhas de Tarcísio, 3/9, A3). A afronta ao
Supremo não poderia ser mais descabida, como anotou o mesmo editorial: “É altamente
problemático que a principal autoridade do Executivo paulista, com pretensões
de presidir a República, expresse desconfiança sobre o Poder Judiciário”.
Mas a “principal autoridade do Executivo
paulista” fez mais. Primeiro, defendeu o indulto ao ex-capitão. Disse que
deveria ser o “primeiro ato” de um futuro presidente da República. Depois,
desembarcou em Brasília com a missão de aglutinar apoio parlamentar para uma
anistia aos acusados de tentar derrubar o regime democrático. Em tempo: ele
cumpriu a missão.
Atitudes como essas, de viés autocrático,
turvam a condição de quem deve participar de uma decisão tão séria sobre a USP,
que só faz defender a democracia. “Aqueles que rejeitam e agridem a democracia
não protegem o saber, a ciência, o pensamento e não amam a universidade”,
discursou o professor Carlos Gilberto Carlotti Jr. no dia 11 de agosto de 2022,
na Faculdade de Direito da USP, no ato em defesa da lisura do processo
eleitoral. A USP rejeita a ditadura, a tortura e a censura. Tanto que, num
gesto inédito de reparação, concedeu diplomas honoríficos às famílias de 32
estudantes que desapareceram nas masmorras do regime autoritário instaurado
pelo golpe de 1964. Seguindo os mesmos princípios, o Conselho Universitário
concedeu ao ministro do STF Alexandre de Moraes, também professor da USP, a
medalha Armando de Salles Oliveira, a mais alta honraria da universidade.
Agora, retornemos às declarações e aos atos
do governador. O que ele pretende? Convulsionar a sociedade? Convocar uma
motociata contra o Judiciário? Por onde andará sua cabeça, que já se refestelou
à sombra de um boné vermelho, estampado com o acrônimo “Maga”? Seu
discernimento terá derivado?
Ao chefe do Executivo do Estado nunca
faltaram apoios solícitos. Ele até já foi tratado como um representante do
“bolsonarismo moderado”. Embora a expressão seja ilógica e disparatada, uma vez
que o repúdio animal a qualquer forma de moderação é o primeiro traço definidor
do bolsonarismo (se é moderado, não pode ser bolsonarismo, e vice-versa), era
assim que ele era festejado. Agora, que o governador rasgou a fantasia,
apoiá-lo ficou mais trabalhoso. Seu bolsonarismo, além de imoderado,
desembestou na selvageria.
Fiquemos atentos. O futuro da USP tem um
encontro marcado com ele. •
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