A Nova Zelândia abandonou o voto distrital em 1993. Um ano antes, 85% dos eleitores neozelandeses votaram contra o sistema distrital em um referendo nacional. O trauma das eleições de 1978 e 1981 foi o detonador do processo de mudança. Nas duas eleições, o partido que teve menos votos, o Nacional, foi o que obteve mais cadeiras no parlamento. O sistema distrital leva a esse resultado absurdo e inaceitável do ponto de vista da cultura política brasileira: quem tem menos votos, ainda que seja raro, pode ganhar.
Em 1951, o Partido Conservador britânico teve menos votos do que o Partido Trabalhista, mas elegeu a maioria dos deputados e governou o país. Em 1974, aconteceu o inverso: foi o Partido Trabalhista que teve menos votos, mas elegeu mais deputados e formou o governo de então. São muitos os exemplos de eleições baseadas no voto distrital que foram traumáticas em seus respectivos países. Em 1996, no Canadá, o governo da importante região da Colúmbia Britânica foi conquistado pelo Novo Partido Democrático. Esse partido teve menos votos do que o Liberal, mas elegeu mais deputados.
Para os padrões brasileiros, o sistema eleitoral distrital não serve, porque permite que o partido menos votado eleja mais deputados. Trata-se de um fenômeno semelhante a um terremoto ou acidente aéreo. Ainda que seja um acontecimento raro, quando acontece é extremamente traumático.
Mais grave ainda para nossos padrões é que o sistema eleitoral distrital leva ao bipartidarismo. Os partidos com menos votos tendem a se tornar irrelevantes. Poderíamos prever, com poucas chances de erro, que o PMDB, caso nosso sistema se torne distrital, venha a se tornar um partido nanico. Isso contraria inteiramente nossa tradição política de multipartidarismo.
O fim do multipartidarismo é resultado do funcionamento do sistema distrital. Tomem-se os países que o adotam e ver-se-á que são dominados por dois partidos: republicanos e democratas nos Estados Unidos, conservadores e trabalhistas no Reino Unido, Partido Nacional e Partido Trabalhista na Nova Zelândia, antes da reforma eleitoral de 1993. O mesmo acontece na Austrália. Em nenhum desses países há algo parecido com o PMDB, um grande partido de centro, muito menos com PR, PSB, PP ou PDT. No sistema eleitoral distrital, os pequenos partidos são simplesmente aniquilados, ao passo que o grande partido de centro é reduzido a partido nanico. Todos os dados sobre a distribuição de cadeiras de deputados federais nos parlamentos dos países que adotam o sistema distrital mostram que isso é a regra, com exceção da Índia, com suas castas, minorias regionais e 670 milhões de eleitores. Aliás, não será surpreendente se a Índia trilhar em um futuro próximo o mesmo caminho da Nova Zelândia.
O bipartidarismo é adequado à cultura anglo-saxã. Trata-se de uma cultura na qual o conflito é muito mais bem aceito do que no Brasil. O Brasil é o país da barganha, da negociação, do compromisso, onde todos ou quase todos têm poder de veto. No Brasil, o meio-termo, a ambiguidade e a falta de clareza não são necessariamente coisas ruins. Nos Estados Unidos, há apenas duas cores para classificar as pessoas: branco ou preto. No Brasil, a classificação oficial tem no eixo que separa brancos de pretos a figura do pardo. Aliás, há mais pardos no Brasil do que pretos ou brancos. Assim, nosso sistema político é, em grande medida, resultado de nossa cultura. O voto distrital no Brasil seria, portanto, um estrangeiro anglo-saxão inteiramente mal adaptado à nossa sociedade mestiça.
O voto distrital também levaria ao fim do que há de mais original em nosso sistema político: o presidencialismo de coalizão. O único país do mundo que combina voto distrital com presidencialismo são os Estados Unidos. Lá não há coalizão para apoiar o presidente na Câmara, nem no Senado. Os americanos são inteiramente claros: ou o presidente tem maioria ou não tem. Ao contrário, de acordo com nossa velha falta de clareza, isso não acontece no Brasil. O presidente pode ter maioria ou não, depende da situação, depende de sua capacidade de negociação, depende da barganha. Entre 1995 e 2002, o PMDB deu maioria ao governo Fernando Henrique Cardoso. O mesmo PMDB também possibilitou ao PT, principal adversário do PSDB, ter maioria durante o governo Lula, entre 2003 e 2010. Graças à força do PMDB, o Brasil é um país completamente governável, desde que, é claro, o presidente tenha jogo de cintura. O presidente dos Estados Unidos não precisa dessa habilidade bem brasileira.
Além de dar maioria a quem tem menos votos e liquidar tanto o multipartidarismo quanto o presidencialismo de coalizão, o sistema eleitoral distrital iria contribuir para, ao contrário do que argumentam alguns de seus defensores, afastar o deputado de seus eleitores. No sistema distrital há distritos "certos" e distritos que mudam de voto. O distrito certo é aquele onde o mesmo partido vence há anos. Por exemplo, é bastante previsível que um distrito eleitoral formado pelos Jardins, Itaim Bibi e Pinheiros viesse a ser um distrito certo do PSDB. Da mesma forma, o PT teria um ou mais distritos certos na extrema Zona Sul ou na extrema Zona Leste de São Paulo. O mesmo aconteceria em grande escala em todo o país. Haveria também os distritos "incertos", aqueles que mudam o partido vencedor de eleição para eleição.
Quando se tomam todas as eleições nacionais realizadas no Reino Unido nos últimos 40 anos, ou seja, desde 1970, vê-se que nada menos que 50% dos distritos nunca mudaram de mãos, isto é, sempre venceu o Partido Trabalhista ou sempre venceu o Partido Conservador. Os distritos certos na Escócia, desde 1970, são 43%. O mesmo para o País de Gales. Um britânico simpatizante e eleitor do Partido Conservador que tenha nascido em 1970 e resida em um distrito certo dos trabalhistas tem hoje 41 anos de idade e nunca viu um parlamentar conservador ser eleito em seu distrito. Igualmente grave, os distritos certos no Reino Unido desde 1945 chegam ao espantoso número de 30%. Isso significa que essa mesma pessoa pode ter 76 anos de idade e nunca ter visto um representante de seu partido ser eleito por seu distrito. Provavelmente, vai morrer sem ver.
Na eleição britânica de 2010, nada menos que 69% dos eleitores (20,5 milhões) moravam em distritos certos e somente 31% dos eleitores (aproximadamente 9 milhões) viviam em distritos que mudam de partido vencedor. Dito de forma clara, no voto distrital britânico uma minoria decide o resultado das eleições e, portanto, quem terá maioria no parlamento.
O mais grave é o que acontece nos distritos certos: os partidos não fazem campanha eleitoral, justamente porque sabem que a chance de perder ou de ganhar é muito pequena. Os partidos concentram seus recursos e esforços nos distritos incertos, naqueles em que há chance de haver alternância de vencedor. O mesmo vale para o deputado no exercício de seu mandato: ele se empenha mais se tiver sido eleito em um distrito incerto. O resultado disso é que o eleitorado dos distritos certos é muito mais distante de seus representantes, quando se faz a comparação com os eleitores dos distritos incertos.
Uma pesquisa nacional, o tradicional e renomado British Election Study (BES), atestou esse fenômeno em 2010. Segundo o BES, 50% dos eleitores dos distritos certos afirmaram que, muito provavelmente, seu voto não iria fazer diferença no resultado eleitoral. Essa proporção é bem menor nos distritos incertos: 39%. O desprezo que os partidos têm pelos eleitores dos distritos certos ficou evidente quando o BES perguntou se algum partido tinha contatado o respondente da pesquisa durante o processo eleitoral de 2010. Nos distritos certos, somente 46% dos eleitores afirmaram que sim. Essa proporção foi de 68% para os distritos que mudam de voto - mas não se pode esquecer que totalizam apenas 31% do eleitorado britânico. O comparecimento eleitoral também é bem menor nos distritos certos do que nos distritos incertos. É evidente, portanto, que uma vantagem propalada do sistema distrital, a maior proximidade entre eleito e eleitor, não se verifica na prática quando se trata dos distritos certos.
No Brasil, o fenômeno dos distritos certos iria ampliar o fosso que existe entre a população e os políticos. As críticas assumiriam os seguintes argumentos: "Eles desenharam o distrito de tal maneira a permanecerem no poder para sempre", ou "como o mesmo partido ganha todas as eleições, eles não querem saber da gente", e por aí vai. Se a legitimidade do nosso sistema político está sob ataque permanente da opinião pública, é razoável imaginar que os distritos certos viessem a ampliar esse fenômeno. A crítica do eleitorado encontraria apoio das elites dirigentes, que seriam excluídas da política em função do voto distrital - as elites dos pequenos partidos e do grande partido de centro, o PMDB. Caminharíamos a passos largos para algo contrário a nossa cultura política, para o bipartidarismo e para um padrão conflituoso de disputa política. O sistema eleitoral distrital não combina com a nossa cultura e história política.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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