Dois importantes processos da vida republicana, a sucessão municipal e a
Ação Penal 470, já são deixados para trás, páginas viradas do nosso folhetim,
mas que deixam boas lições para que se recuperem os fios dessa obra coletiva
que tem sido a nossa História desde a democratização do País nos idos de 1985.
A melhor delas está na oportunidade para o pleno assentamento da República e de
suas instituições, na esteira de um julgamento, pela mais alta Corte do
Judiciário, de membros influentes da coalizão partidária governamental, quase
todos condenados a penas severas, sendo, como notório, que oito dos seus
magistrados foram selecionados, para a aprovação do Senado Federal, por livre
discrição da chefia do Poder Executivo sob comando do PT.
Nesse episódio, a autonomia do Poder Judiciário experimentou o seu batismo
de fogo, podendo-se sustentar - tal como na modelagem da pequena obra-prima de
Philippe Nonet e Philip Selznick Direito e Sociedade: a Transição ao Sistema
Jurídico Responsivo (Editora Revan, Rio de Janeiro, 2010) - que agora
completamos, cabalmente, a passagem do tipo de Direito Repressivo, em que o
direito se encontra subordinado aos fins do poder político, para o do Direito
Autônomo, um governo de leis, e não de homens. Sempre se pode tentar
desqualificar o ineditismo dessa passagem com o fato de que é da tradição das
nossas Constituições republicanas dispor sobre o princípio da autonomia do
Judiciário. Mas uma coisa é o caráter simbólico das leis e algo bem diverso, a
sua efetiva eficácia, como agora, quando que elas se impuseram, diante de uma
circunstância concreta e por fatos delituosos determinados, a um poder político
vitorioso em três sucessões presidenciais consecutivas, submetendo a julgamento
e condenando vários dos seus dirigentes.
Os efeitos em cascata dessa decisão devem reforçar as instâncias de controle
do poder, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas. Mas, sobretudo,
em razão da alta voltagem com que a opinião pública se envolveu no curso da
longa tramitação do julgamento, ora em finalização, no Supremo Tribunal Federal
(STF), já consagram a Carta de 88 e o papel da Corte Suprema como seu guardião,
uma vez que, bem para além de se manifestarem sobre um caso penal concreto, os
juízes se detiveram nas suas repercussões sobre a concepção de República na
forma que o poder extraordinário do constituinte deu à luz, em que muitos
pareciam estar presentes numa sessão do Senado Romano.
Os maus presságios sobre a Carta Magna, em que tantos identificaram mais um
instrumento simbólico, do tipo das Constituições programáticas, características
dos tempos de fastígio do Welfare State (Estado de bem-estar social), se já
tinham sido infirmados de modo robusto pela prática política, inclusive pela
ação do PT - partido que, na verdade, foi um dos principais responsáveis por
conceder vida a muitos dos seus novos institutos, como o das ações de controle
de constitucionalidade das leis e o das ações civis públicas, com frequência
consorciado ao Ministério Público -, se dissiparam no ar. A nossa Lei Maior e
as suas instituições, com o processo da Ação Penal 470, foram, afinal, recepcionadas,
para brincar com as palavras, pela opinião pública.
Os sinais emitidos pela sucessão municipal, por sua vez, com seus
resultados, em boa parte, favoráveis a candidatos e partidos de programas
orientados por agendas de políticas públicas socialmente inclusivas, puseram em
evidência que os canais e instrumentos da democracia política são aptos a
conceder passagem às expectativas por mudança social, dispensando atalhos, em
particular os sombrios. Deve-se interpretar a firme defesa de princípios e valores
que se fez ouvir do plenário do STF, bem longe de uma chave moralista vazia de
conteúdo, como a confirmação
dos rumos traçados pelo constituinte, inequívocos em sua disposição farta de
meios para que os fins da democratização social venham a ser atingidos pela via
da República e de suas instituições.
Nesse sentido, contrariamente ao que muitos sugerem, o episódio que ora se
encerra não guarda relação com o intrincado tema da judicialização da política.
Em linguagem de Jürgen Habermas, um inimigo notório de intervenções judiciais
no campo da política, o julgamento do Supremo Tribunal, tudo bem contado,
fixou-se na salvaguarda do "núcleo dogmático" - uma expressão dele -
de uma Constituição democrática, qual seja nos procedimentos que garantam uma
livre e igual competição política a fim de que a soberania popular não seja
contaminada, ou pior, colonizada pelo poder da administração e do sistema
econômico.
Daí o paradoxo irônico desse julgamento, uma vez que as razões emitidas em
seus votos pelos magistrados, membros de uma Corte não poucas vezes acusada de
usurpar poderes do Legislativo - o caso do reconhecimento civil da união
afetiva das relações homoeróticas, entre outros, é paradigmático -, que calaram
mais fundo na opinião pública, versaram sobre o tema da soberania popular e da
sua representação, que teriam sido objeto de emasculação pelo poder político.
A sociedade, seus três Poderes, partidos, sua esfera pública não saem iguais ao que eram antes dessa Ação Penal 470. Decerto que não foi uma revolução, que, entre nós, nunca merece esse nome, como as de 1930 e de 1964, que apenas mudaram para conservar o que já estava lá. Para o bem ou para o mal, nossa História não é amiga da ruptura, mas ficou à vista de todos que já passou a hora da reforma de nossas instituições políticas, de criarmos partidos representativos da nossa rica vida social de hoje, e não essa coleção patética de siglas a nuclear em torno de si pequenos interesses paroquiais vivendo da política, material comburente dessa forma nefasta de presidencialismo de coalizão que nos governa sem alma e sem direção, embora nunca perca de vista seus objetivos de reprodução.
Professor-pesquisador da PUC-RJ
Fonte: O Estado de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário