- O Globo
Por sua folha corrida, Renan Calheiros já devia estar, há muito tempo, todo encalacrado com o Ministério Público e a Polícia Federal. A liminar do ministro Marco Aurélio Mello seria, a essa altura, apenas mero enfeite pendurado em seu pescoço largo de senador da República, como se fazia com os condenados na Idade Média. Hoje, ele responde a 12 processos no Supremo Tribunal Federal.
O senador é um político vitorioso, notoriamente um dos mais poderosos do país; e isso é básico, numa atividade em que o poder é o único objetivo de quase todos. Seu sucesso é, certamente, fruto dessa fidelidade ao desejo de um poder que nunca subestima, nem deixa se desgastar. A estratégia de todo homem poderoso parte sempre de uma recusa a qualquer ferida narcísica, qualquer perda do que ele quer que seja visto como sua integridade humana. Renan quer ser a síntese da nação.
Às vezes, muito surpreendentemente, as consequências desse comportamento são até positivas para a tranquilidade e o equilíbrio democrático do país. Nada é a mesma coisa sempre. O que acontece em certas circunstâncias pode ter valor muito distinto, quando a mesma ação se dá em circunstâncias alteradas. Não é preciso ser filósofo quântico para compreender e aceitar essa ausência de juízo comum em tudo o que fazemos, em todas as nossas ações. E sobretudo na política.
Não julgo a capacidade profissional e o espírito público do ministro Marco Aurélio Mello. Mas, na minha opinião, ele se precipitou um pouco, agiu como um líder universitário de Centro Acadêmico politizado, ao decretar o fim do mandato de Renan na presidência do Senado. Certamente, julgou ser o respeito à sua decisão uma condição natural na cultura dos homens públicos do país, qualquer que fosse seu partido ou opção ideológica.
Como Eduardo Cunha, seu semelhante, Renan um dia encontrará a resposta justa às suas trapalhadas públicas e pessoais. Mas, para isso, terá que haver circunstâncias que produzam as mesmas consequências do afastamento daquele deputado. Por enquanto, por seu poder de persuasão ou pelo poder de persuasão do que sabe, Renan é quase intocável. O que, um dia, terá que deixar de ser.
A sábia decisão do Plenário do Supremo, fatiando, mais uma vez, a pena de um político condenado, não foi um “jeitinho brasileiro” no velho estilo que sempre alimentou o poder de nossa classe dominante; mas, sim, hábil e oportuna decisão política de usar uma tradição cultural para garantir a paz ameaçada por eventual insanidade. Foi graças a esse “jeitinho” que o Brasil voltou a respirar mais um pouco e a confiar na solidez de sua democracia, até a próxima crise. A propósito de meu artigo de domingo passado, o deputado Chico Alencar (PSOL/RJ) me mandou mensagem com a seguinte e justa observação:
“Caro Cacá: no artigo de 4 de dezembro, você lamentou que ‘os partidos de esquerda, aliados aos do governo, foram os principais responsáveis pela vergonhosa articulação vencedora’. Você se referia a adulterações nas medidas contra a corrupção, em especial à retaliação a juízes e promotores, pela qual ‘bandidos estão autorizados a pôr em cana os xerifes’.
Importante esclarecer que PSOL, PPS, PV e Rede votamos contra essa emenda vingativa. Os demais partidos, todos, ou votaram a favor ou liberaram suas bancadas. Votamos também contra outras medidas, como a que retira o Ministério Público dos acordos de leniência.
Impressiona a situação do Parlamento nacional: chegamos à metade da legislatura com dois presidentes afastados por corrupção (um já preso e outro provavelmente a caminho), 312 congressistas com alguma ocorrência judicial, ojeriza generalizada nas ruas e, pior, o sentimento de antipolítica crescendo avassaladoramente. Isso é inédito e perigosíssimo.
E é esse Congresso, campeoníssimo no cinismo e na hipocrisia, que tem que analisar tanto tema importante, como Previdência, combate à corrupção, reforma tributária etc. Já a reforma política e a nossa autor reforma, inclusive com restrições ao ‘tratamento especial’, nada!”
Chico Alencar está certo. Não importa a ideologia de cada um deles, mas os partidos citados pelo deputado têm se comportado, quase sempre, com seriedade e honradez em todo esse triste processo de desintegração política do país. No mesmo fim de semana em que perdíamos o grande poeta Ferreira Gullar, partiam também Julio Rego, um gênio mundano, e, aos 101 anos de idade, a produtora Lucíola Vilella, uma matriarca do cinema brasileiro. Entre tantos ensinamentos que ele nos deixou, aprendemos com Gullar que “a arte existe porque a vida não basta”. Viva Ferreira Gullar!
Cacá Diegues é cineasta
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