Promessas de reindustrialização exigem cautela
O Globo
O histórico de políticas industriais no
Brasil é pródigo em prejuízos astronômicos e resultados pífios
A intenção de reindustrializar o país, lançada ainda na época da campanha eleitoral por Luiz Inácio Lula da Silva, ganhou status de mantra desde a posse do novo governo. “Reindustrialização” virou palavra corriqueira em declarações e discursos de diferentes autoridades. Se a meta do novo governo for fazer com que a participação da indústria na economia volte ao seu pico histórico, é melhor esquecer. A fatia hoje em cerca de 23% do PIB, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), teria de crescer a 48%. Isso não acontecerá. Ainda que o objetivo seja mais modesto, há bons motivos para ser reticente. A História brasileira está cheia de políticas industriais que tiveram resultados pífios e prejuízos astronômicos.
Uma das experiências mais desastrosas
ocorreu com a confirmação de grandes volumes de petróleo nas camadas profundas
de pré-sal na Bacia de Santos, entre São Paulo e Rio de Janeiro, levando os
governos Lula 2 e Dilma 1 a lançar uma política de substituição de importações
de navios e sondas. A lógica era a mesma dos governos militares. Por que
importar se podemos investir na produção doméstica?
Não deu certo na ditadura, não daria nos
governos do PT. Não bastasse a corrupção, bilhões foram incinerados em
subsídios a empresas que não entregaram à Petrobras as encomendas no prazo e
nas especificações pedidas. Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da
Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), Samuel Pessôa lembra que o Brasil tentou,
sem sucesso, fazer uma indústria naval por longuíssimas sete décadas.
Um dos erros do discurso
nacional-desenvolvimentista é supor que o país pode tudo, basta que o Estado
invista. Não é assim. O Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada
(Ceitec), estatal criada em 2008 com a missão de produzir semicondutores no
Brasil, consumiu R$ 800 milhões sem jamais ter atingido seus objetivos.
A melhor forma de gerar desenvolvimento é
apostar nos setores em que há vantagens comparativas, mesmo que seja necessário
importar todo o resto. É óbvio que o Estado pode, em certas circunstâncias,
sanar imperfeições do mercado, mas é preciso ser muito seletivo e apostar
apenas naqueles poucos segmentos em que a parceria com o setor privado tem mais
chances de dar certo. É imperativo ter metas e mecanismos para a retirada do
investimento público. O Brasil é famoso pelos subsídios temporários que duram
para sempre. Uma vez concedidos, viram bandeiras perenes de bancadas sujeitas a
todo tipo de lobby no Congresso.
Parte dos economistas lembra que há
exemplos positivos de políticas de fomento. No início da pandemia, o governo
americano apoiou o desenvolvimento de vacinas. O problema é achar que um
projeto bem-sucedido é senha automática para novas apostas. O presidente Joe
Biden parece estar nessa toada. Em 2022, aprovou no Congresso verba para
subsidiar a indústria local de carros elétricos, entre outras iniciativas. No
encontro que terá com Lula em fevereiro, Biden poderia perguntar sobre o
pré-sal e aprender o que não deve ser feito em termos de política industrial.
É vital reduzir o número de armas em
circulação no Brasil
O Globo
O recadastramento sob a responsabilidade da
PF é o primeiro passo para reverter armamentismo
O Brasil começa um longo e urgente processo
para desfazer a política armamentista dos últimos quatro anos. Entre as
necessárias medidas a serem executadas pela Polícia Federal (PF) está o
recadastramento das armas adquiridas a partir de maio de 2019, no início do
governo Bolsonaro. O prazo é de dois meses, e a sociedade deve acompanhar de
perto o desenrolar para cobrar o cumprimento de prazos e de metas.
Já foram suspensos os registros de clubes
de tiros, que praticamente dobraram a partir de janeiro de 2019, de 1.055 para
2.061. Também foram interrompidas as permissões para novos CACs, sigla de
Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador, o caminho pelo qual o governo
anterior inundou o país de armas.
Bolsonaro flexibilizou até mesmo o porte,
restrito a policiais e a poucas categorias relacionadas pelo Estatuto do
Desarmamento. São emblemáticas as cenas da deputada Carla Zambelli (PL-SP), de
pistola em punho em uma rua dos Jardins, região nobre de São Paulo, em 29 de
outubro, véspera do segundo turno das eleições, atrás de alguém que
alegadamente a teria ofendido. A deputada entregou a pistola à PF, em dezembro,
por determinação do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.
Em busca realizada neste ano em sua
residência em São Paulo e no apartamento funcional que ocupa em Brasília, foram
encontradas mais três armas registradas em seu nome. Para Gilmar Mendes, a
posse e o manejo de armas pela deputada oferecem grave risco à ordem pública,
como já demonstrado.
Quantos outros arsenais como o de Carla
Zambelli, ou até maiores, existem? A pergunta poderá ser respondida pelo
recadastramento. Apenas entre os CACs, cujo registro e acompanhamento cabe ao
Exército, pelo Sistema de Gerenciamento de Armas (Sigma), havia, em meados do
ano passado, cerca de 1 milhão de armas, o triplo do que existia no início do
governo Bolsonaro. Outro milhão estava no Sistema Nacional de Armas da Polícia
Federal (Sinarm), no qual os registros aumentaram em quase 190%. A existência
de dois bancos de dados, sem intercomunicação e controle unificado, é um
problema, na visão do Instituto Igarapé, organização voltada para o tema da
segurança.
Como o recadastramento será feito pela PF e
as informações ficarão sob sua alçada, a instituição deveria concentrar os
registros de agora em diante. O Exército poderia dirigir sua atenção para outra
frente: manter a responsabilidade, que não é pequena, de registrar e acompanhar
o uso de toda sorte de explosivos.
O recadastramento poderá identificar o contrabando para a criminalidade. A preocupação com a disseminação até de fuzis, permitida pela legislação criada pelo governo anterior, persistirá. De alguma forma, o armamento pesado ou em excesso terá de ser recolhido.
Ainda a inflação
Folha de S. Paulo
Apesar de novo estouro em 2022, metas e
autonomia do BC são sucessos a preservar
O Banco Central precisou divulgar carta
aberta para expor os motivos de o IPCA de 2022, com variação
de 5,79%, ter ficado acima da meta oficial de 3,5% com margem de
desvio de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.
Foi a sétima vez em que a autoridade
monetária teve de cumprir esse ritual em 24 anos do regime de metas de inflação
—o que, à primeira vista, poderia colocar em dúvida a eficácia de tal
estratégia de política monetária. O saldo do mecanismo adotado desde 1999,
porém, é amplamente favorável.
Conforme as
explicações do BC, a variação dos preços estourou os limites no ano
passado devido à herança do ano anterior, ao encarecimento global das
commodities, agravado pela guerra na Ucrânia, e ao impacto da retomada dos
serviços e do emprego após o pior da pandemia de Covid-19.
Ao listar as providências em curso para
conter as pressões inflacionárias, o órgão não deixa de mencionar as incertezas
relativas ao desequilíbrio orçamentário do governo —para o qual contribuíram,
acrescente-se, Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Por uma questão de bom senso, o BC não
buscou cumprir a ferro e fogo as metas para o IPCA de 2021, quando o índice
marcou 10,06%, e 2022. Isso exigiria taxas de juros exorbitantes e produziria
recessão brutal, na tentativa de lidar com fatores além do alcance doméstico.
Essa flexibilidade, já vista em outros
momentos, não se confunde com leniência. Está claro para a sociedade o empenho
em trazer a inflação de volta aos níveis desejados, ainda que em prazos
maiores.
Ao longo de mais de duas décadas do regime
de metas, a disciplina monetária só foi desrespeitada no primeiro governo da
petista Dilma Rousseff (2011-2014) —e os resultados foram desastrosos.
Ainda há muito a fazer para que a moeda
brasileira tenha estabilidade comparável à observada em países desenvolvidos, a
começar pelas contas do governo. Entretanto é indiscutível que os
aperfeiçoamentos institucionais promovidos desde o Plano Real fizeram enorme
diferença.
Desde 1999, a inflação brasileira só chegou
aos dois dígitos em três ocasiões (2002, 2015 e 2021), enquanto na vizinha
Argentina, por exemplo, o descontrole está instalado há mais de uma década e a
taxa beirou os 100% no ano passado.
O complemento necessário ao regime de metas
é a autonomia do BC, hoje formalizada em lei no Brasil. Para uma efetiva
política de combate à pobreza, o governo petista deverá superar equívocos do
passado e perseverar no arranjo.
Tapioca e sorvete
Folha de S. Paulo
Cumpre apurar cartão corporativo de
Bolsonaro, que evoca abuso passado sob Lula
A compra de uma reles
tapioca se tornou o episódio mais conhecido de um escândalo envolvendo
cartões corporativos —entregues a autoridades para despesas de governo— na
segunda administração de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em 2007, o então ministro do Esporte gastou
R$ 8,30 (preço da época) no quitute e precisou explicar por que utilizou o
cartão. Foi um engano, defendeu-se. Em depoimento a uma CPI no ano seguinte,
argumentou que, antes mesmo de o assunto chegar à mídia, tinha devolvido o
valor aos cofres públicos.
Não se imagina que, por conta própria, Jair
Bolsonaro (PL) adote atitude parecida. Mas, agora que foram
divulgados os gastos do ex-presidente com o cartão corporativo,
espera-se que os órgãos de controle esmiúcem as planilhas e investiguem a
pertinência das cifras ali registradas.
Motivos não faltam. Há, por exemplo, uma
nota de R$ 109 mil num restaurante de Roraima especializado em marmitas. Também
há R$ 13,7 milhões em hotéis, dos quais R$ 1,4 milhão num único local de
Guarujá (SP), além de R$ 581 mil em padarias, onde algumas compras passaram de
R$ 10 mil.
Em montante menor, mas nem por isso
insuspeito, Bolsonaro despendeu R$ 8.600 em sorvetes —em lojas da mesma
Brasília onde Orlando Silva se regalou com a tapioca.
A culpa não é do cartão. Criado em 2001
pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o instrumento deu
agilidade e facilitou a prestação de contas, antes feita por meio de notas
fiscais.
Seu uso deve respeitar os princípios da
administração pública, entre os quais legalidade, moralidade e eficiência, e
pode ocorrer diante de cifras pequenas e de despesas eventuais, inclusive em
viagens ou serviços especiais, ou quando o gasto precisar ser feito sob sigilo.
É difícil ver como essas condições se
encaixam em dispêndios
que somam ao menos R$ 4,7 milhões em dias nos quais Bolsonaro
não tinha agenda de trabalho, assistia a jogos de futebol ou participava de
motociatas.
Graças à agência Fiquem Sabendo, que usou a
Lei de Acesso à Informação, os gastos do cartão corporativo podem ser
examinados por todos. Sabe-se que o ex-presidente fez pagamentos de R$ 27,6
milhões em quatro anos, o que, se considerados valores corrigidos pela
inflação, está abaixo dos padrões das administrações petistas.
Montantes, porém, importam menos que finalidades. Dar máxima transparência aos atos de governo, como se vê, é o meio mais evidente de prevenir e, se necessário, investigar desmandos.
2023 e suas múltiplas crises
O Estado de S. Paulo.
Choque da pandemia e da guerra cria risco
só superado com cooperação global.
A década de 20 está sendo particularmente
disruptiva na história humana. A crise pandêmica, acoplada com a guerra na
Europa, resulta em uma confluência de vulnerabilidades socioeconômicas e
tensões geopolíticas. Nesse cenário, em preparação para a cúpula anual de
Davos, o Fórum Econômico Mundial mobilizou mais de 1.200 analistas de risco e
especialistas da academia, negócios, governos e sociedade civil para avaliar,
em seu Relatório de Riscos Globais, as atuais crises e os desafios a curto e
médio prazos.
Em plena turbulência, o mundo parece estar
no modo “sobrevivência”, com o foco canalizado no custo de vida, na polarização
política e social, no fornecimento de energia e comida, no crescimento tíbio e
em confrontos geopolíticos. Mas os choques relativamente inesperados da
pandemia e da guerra atingiram uma geração já envolta em transformações
aceleradas – como a da revolução digital –, cujos maiores desafios de longo
prazo, como as mudanças climáticas, são os que ela está menos preparada para
enfrentar.
Por isso, o Relatório fala em “um ano de
policrises”, em que “os riscos estão mais interdependentes e reciprocamente
danosos do que nunca”. O mundo enfrenta em 2023 uma série de riscos a um tempo
“totalmente novos” e “espantosamente familiares”. Mazelas que pareciam
controladas nesta geração – como inflação, crise do custo de vida, guerras
comerciais, agitação social generalizada e até uma guerra nuclear – voltaram à
cena. Os riscos são amplificados por desdobramentos relativamente novos, como
níveis insustentáveis de dívida, uma nova era de baixo crescimento, baixo
investimento e desglobalização, queda no desenvolvimento humano após décadas de
progresso e a pressão das mudanças climáticas.
“As sequelas sanitárias e econômicas da
pandemia rapidamente espiralaram em crises compostas”, diagnosticou a diretora
da pesquisa, Saadia Zahidi. “As emissões de carbono se acentuaram, à medida que
a economia global pós-pandêmica voltou a crescer. Comida e energia tornaram-se
arsenais com a guerra na Ucrânia, impulsionando a inflação a níveis sem
precedentes em décadas, globalizando a crise do custo de vida e abastecendo a
ansiedade social. A mudança resultante na política monetária marca o fim de uma
era econômica definida por acesso fácil a dívidas baratas e terá vastas ramificações
para governos, empresas e indivíduos, ampliando a desigualdade dentro dos
países e entre eles.”
Os entrevistados projetam alta volatilidade
num futuro próximo, mas se mostram mais otimistas a longo prazo.
Retomar os rumos do desenvolvimento sustentável,
contudo, exigirá integrar táticas defensivas e fragmentárias a estratégias que
fortaleçam a resiliência para riscos mais permanentes e estruturais. A
inter-relação entre impactos circunstanciais e vulnerabilidades crônicas, entre
danos imediatos e riscos futuros, cria um cenário particularmente temerário.
Como em um organismo vivo, um remédio extraordinário para um órgão agudamente
debilitado pode impactar negativamente outros; o foco exclusivo nas urgências
presentes pode reduzir a resiliência para adversidades futuras.
O Fórum divisa quatro princípios para
orientar a redução de riscos: fortalecer a identificação e previsão de riscos;
recalibrar a avaliação atual de riscos “futuros”; investir em preparação
multifatorial; e reconstruir a cooperação na preparação para riscos. Este
último ponto é decisivo para alicerçar os demais. Não à toa, o tema da cúpula
deste ano é “Cooperação em um Mundo Fragmentado”.
Em uma era de choques concorrentes, cresce
a importância da cooperação em níveis setoriais, bilaterais e regionais – por
exemplo, no compartilhamento de dados ou financiamentos coordenados. Ainda mais
urgente é resistir à tendência das nações de se fecharem. Exceto em casos
extraordinários, limites a exportações ou reservas de mercado tendem a estimular
desintegração e desconfiança, precipitando uma cascata de crises. Em tempos
excepcionais é preciso relembrar o óbvio: crises globais só podem ser superadas
com solidariedade global.
Polícia violenta e mal treinada é
inconstitucional
O Estado de S. Paulo.
Alegações do governo do Estado do Rio de
Janeiro contra o uso de ‘bodycams’ por suas tropas de elite são equivocadas.
Polícia que age sem controle coloca em risco a vida da população
Quando uma operação policial terminou com
pelo menos 23 mortos na Vila Cruzeiro, na cidade do Rio de Janeiro, em maio do
ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi acionado por meio de uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). No ano anterior,
outra incursão policial no Jacarezinho, também no Rio, havia resultado em 28
mortes, na ação mais letal de que se tem notícia naquele Estado. Diante de
casos tão assombrosos, que violam direitos e garantias previstos na
Constituição, era preciso fazer algo. O relator da ação, ministro Edson Fachin,
determinou que o governo do Estado do Rio de Janeiro elaborasse um novo plano
de redução da letalidade das polícias fluminenses.
Em resposta ao pedido de Fachin, o governo
do Rio de Janeiro apresentou, em dezembro de 2022, um plano genérico e
incompleto, sem prazos e indicadores específicos. Diante disso, o ministro do
STF proferiu nova decisão, tratando de um ponto específico que tem se mostrado
muito relevante na diminuição da letalidade policial: a instalação de câmeras
nas fardas e viaturas policiais. Em concreto, Fachin inquiriu a administração
estadual do Rio de Janeiro a respeito do uso do equipamento pelo Batalhão de
Operações Especiais da Polícia Militar (Bope) e pela Coordenadoria de Operações
e Recursos Especiais da Polícia Civil (Core). Pediu um cronograma para a adoção
das bodycams pelos policiais das unidades especiais.
O governador Cláudio Castro (PL), por meio
da Procuradoria-geral do Estado do Rio de Janeiro, recorreu da decisão do STF.
Mencionando pareceres da Polícia Militar e da Polícia Civil, alegou que o uso
das câmeras corporais poderia pôr “em risco a vida de policiais e de terceiros,
bem como o necessário sigilo das estratégias, táticas e, até mesmo, protocolos
de atuação”, como noticiou o jornal O Globo.
São muitas as experiências, nacionais e
internacionais, que contradizem as alegações das autoridades fluminenses. “Os
batalhões de Choque e os Baeps (unidades da PM paulista ), que usam câmeras,
assemelham-se muito ao Bope e à Core, e temos dados positivos. Tudo depende do
grau de treinamento. Tropas bem preparadas não temem a implementação”, afirmou
José Vicente da Silva, coronel reformado da PM paulista e ex-secretário
Nacional de Segurança Pública.
No Estado de São Paulo, o uso de câmeras
não só fez cair o número de civis e policiais mortos em serviço, mas, como
informou o Estadão, reforçou a repressão à violência doméstica, ao porte de
drogas e à posse ilegal de armas. Sem falar no uso de imagens para orientar o
treinamento da tropa. Com tantas evidências positivas, o governador Tarcísio de
Freitas (Republicanos) reviu sua posição dos tempos de campanha eleitoral e
hoje defende a iniciativa.
É preciso investir na formação dos
policiais, especialmente em locais, como o Rio de Janeiro, com forte histórico
de violência policial e de atuação descuidada dos agentes. Às vezes, carregar
um pedaço de madeira, um guarda-chuva ou uma furadeira pode representar a
sentença de morte perante um policial mal treinado.
Infelizmente, as alegações contra o uso de
câmeras nas unidades especiais de segurança parecem evocar o raciocínio torto e
inaceitável de que tropas de elite devem ter a liberdade de fazer coisas que as
câmeras não poderiam registrar. Trata-se de grave equívoco. O papel da polícia
é combater o crime dentro da lei. Não há dúvida de que, no Estado Democrático
de Direito, há sigilos legítimos; por exemplo, na diplomacia. No entanto, não
faz nenhum sentido encobrir a atuação de policiais diante da população civil.
Uma polícia autorizada a agir nas sombras facilmente se converte em uma polícia
fora da lei.
É sintomática a resposta do governo do
Estado do Rio de Janeiro ao STF, resistindo a adotar um equipamento que tem se
mostrado tão eficaz na proteção da vida e no aperfeiçoamento das ações
policiais. A violência policial e a insegurança pública não são fenômenos
casuais. São fruto de reiteradas escolhas, que violam a Constituição.
O contribuinte está mais indefeso
O Estado de S. Paulo.
MP que dá à Fazenda superpoderes contra o
contribuinte no Carf é problemática em sua forma, motivação e conteúdo
O governo Lula reinstituiu, pela Medida Provisória
(MP) 1.160/2023, o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf), a última instância administrativa para contribuintes
questionarem a validade de autuações fiscais. Vinculado ao Ministério da
Fazenda, o Carf é formado por quatro conselheiros: dois indicados pela Receita
e dois por setores econômicos. Originariamente, em caso de empate, prevalecia o
“voto de qualidade”, ou seja, valia por dois o voto do presidente da Turma.
Como ele é necessariamente um representante da Receita, na prática o voto de
Minerva pesava sempre a favor do Fisco. Em 2020, esse modelo foi alterado: em
caso de empate, a decisão passou a ser favorável aos contribuintes, conforme o
princípio in dubio pro reo.
A medida é problemática em sua forma, motivação
e conteúdo.
Segundo a Constituição, a edição de MPS
exige relevância e urgência, sendo vedada em matérias de direito penal e
processual civil. Muitos juristas afirmam que sanções administrativas, como as
penas tributárias decididas pelo Carf, têm uma dimensão penal e que as leis
disciplinadoras das funções e capacidades dos julgadores integram o sistema
processual.
Ao justificar a MP 1.160/2023, o ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, alegou que o desempate prócontribuinte gerou
perdas para os cofres públicos, que o novo Carf tem ignorado jurisprudências do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) em favor da União e que seu modelo é fonte
de corrupção. Ora, os casos de malfeitos identificados pela Operação Zelotes
envolviam justamente conselheiros da Fazenda durante a vigência do voto de
qualidade. Além disso, não há evidências de que as decisões do Carf favoráveis
ao contribuinte sejam antijurídicas. De resto, o apetite arrecadatório não pode
se sobrepor aos princípios de justiça que devem reger a atuação do poder
público.
A decisão do Congresso pelo fim dos
superpoderes do conselheiro da Receita, com o desempate a favor do
contribuinte, foi questionada na Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF)
formou maioria pela constitucionalidade. O julgamento está suspenso.
A MP 1.160/2023 traz ainda outra grave
disfunção, permitindo que, em caso de o Carf dar razão ao contribuinte, a
Fazenda recorra à Justiça. Tal possibilidade ignora que o Carf é um órgão da
Fazenda. Não faz sentido que a Fazenda acione o Poder Judiciário contra uma
decisão que ela mesma proferiu. Trata-se de evidente violação do princípio da
unidade da administração pública.
A complexidade do sistema tributário brasileiro é uma das principais causas dos altos índices de litigância judicial. Não há dúvida de que o modelo do Carf pode ser avaliado e discutido no âmbito de uma reforma tributária. No entanto, não é gerando desequilíbrio a favor do Fisco, por meio de mudança abrupta imposta por medida provisória, que se aprimora o seu funcionamento. A representação do contribuinte no Carf não pode ser de fachada, como mero meio de dar ares de legitimidade ao apetite arrecadatório do Estado.
Torres pode ter muito a dizer sobre golpe e
depredações
Valor Econômico
Tão importante quanto intimidar golpistas é
unificar o poder repressivo do Estado
Uma semana depois da depredação das sedes
dos três Poderes, o mais ofensivo ataque à democracia desde 1985, o roteiro do
curto-circuito na segurança no Distrito Federal se tornou mais claro, assim
como seus responsáveis e os omissos no inexistente esquema de defesa. Ainda
faltam respostas a todas as perguntas. O ex-ministro da Justiça, o bolsonarista
Anderson Torres, secretário de Segurança do DF, preso no sábado ao desembarcar,
vindo dos EUA, pode ter várias delas.
Na operação de busca na residência de
Torres, a Polícia Federal apreendeu pelo menos um documento comprometedor, a minuta
de um decreto presidencial que estabelece Estado de Defesa inédito, para
intervir no Tribunal Superior Eleitoral com o objetivo de garantir a “lisura”
do pleito, a ser executado por uma Comissão de Regularidade Eleitoral, chefiada
pelo ministro da Defesa e mais seis militares, de um total de 17 membros. A
minuta é prova de que um golpe foi cogitado para corrigir o resultado das
eleições e declarar vitorioso o candidato Jair Bolsonaro. A pregação de
Bolsonaro, desde que assumiu em 2018, foi de desconfiança nas urnas, fraudadas
por princípio. Bolsonaro fez, desde que tomou posse, um ataque à democracia a
cada 23 dias (O Globo, ontem).
As primeiras reações de Anderson Torres
levantaram ainda mais suspeitas. Ele disse que o documento fora divulgado fora
do “contexto” - qual é o contexto é tudo o que a investigação sobre sua conduta
precisa conhecer. Houve uma trama grave para fraudar eleições e dar a Bolsonaro
a vitória que não conseguiu nas urnas. De quem veio a ideia? Torres disse que
recebeu o papel de alguém, mas, como ministro da Justiça, aceitou uma proposta
de golpe contra o sistema democrático, não agiu e deixou os autores saírem
assobiando por aí.
Afirmou que o material estava em uma pilha
de documentos que seriam destruídos, eliminando prova de atos em si criminosos.
O estranho é que papel-bomba como esse não tivesse sido incinerado antes. Ele
pode servir de defesa prévia de Torres contra acusações futuras vindas do campo
amigo.
Outra parte do “contexto” é que na
sexta-feira, 6 de janeiro, houve aviso do setor de inteligência da Secretaria
de Segurança Pública do DF sobre a possibilidade de atos violentos ocorrerem no
domingo, dada a intenção de “tomada do poder” dos manifestantes. O aviso foi
enviado ao gabinete de Torres, que embarcou para os EUA no dia seguinte.
Fernando Oliveira, seu substituto na SSP, disse que tudo estava bem e que
negociara com os manifestantes para que o ato fosse pacífico. Essa é um dos
indícios de que o vandalismo que se seguiu não encontrasse qualquer reação
relevante do aparato de segurança.
O mesmo documento, que não autorizava
protestos na Praça dos Três Poderes, já aceitava a premissa mais que duvidosa
de que seu propósito era assegurar “o direito constitucional de livre
manifestação pública”, que os bolsonaristas radicais pisotearam a seguir, com
júbilo. O governador afastado do DF, Ibaneis Rocha, em sua defesa, disse que
havia um plano padrão e que houve “sabotagem”. Cenas de camaradagem entre PMs e
depredadores mostram que houve mais do isso.
Outra parte do contexto é indicada pelo
governador. O Exército não permitiu, nem mesmo após as depredações, que a PM
entrasse nos acampamentos para prender manifestantes. Antes disso, se recusara
a impedir a ocupação de território privativo dos militares, jamais permitida
antes. Fez mais: deixou que cerca de 150 ônibus entrassem o Setor Militar
Urbano, próximo do QG, para que iniciassem a deprimente destruição.
A reunião de bolsonaristas em frente ao QG
foi objeto de nota inusual - as manifestações eram “democráticas”, mesmo que
visassem o fim da democracia. Nem uma linha foi emitida pelas Forças Armadas
após a barbárie radical correr solta, sequer a de praxe, de que os militares
repudiam atos dessa natureza e se colocam sob o inteiro dispor das autoridades
constituídas.
Há simpatia de parte do aparato policial e militar, inclusive das cúpulas, com o bolsonarismo radical. A saída institucional para isso tem de ser o progressivo controle civil sobre o aparato do GSI, Abin e setores da inteligência. A reação contra radicais, financiadores e mentores, se executada dentro da lei fortalece o governo para esses embates no interior da máquina estatal. Tão importante quanto intimidar golpistas é unificar o poder repressivo do Estado, para impedir que novas tentativas aconteçam.
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