Valor Econômico
No exterior vive-se um rico debate sobre a
questão monetária, que passa ao largo nas discussões no Brasil
Em agosto de 2021, ao discursar no famoso
encontro anual de Jackson Hole, promovido pelo Banco Federal de Kansas (um dos
membros da federação que constitui o Fed - banco central dos Estados Unidos),
Alan Blinder, economista especializado em temas monetários, professor na
Universidade de Princeton e ex-vice presidente do Fed, previu que a política de
aquisição de ativos em larga escala - QE (quantitative easing) - tende a se
transformar no principal instrumento dos bancos centrais para influenciar a
demanda agregada no lugar dos juros de curto prazo.
Se confirmado, supondo um contexto de retomada cíclica da economia e de um futuro de permanente baixa taxa de juros, implicaria grande mudança. A prática do QE, introduzida na gestão de Ben Bernanke à frente do Fed para fazer frente à crise financeira de 2008, deixaria de ser uma ferramenta temporária para tornar-se definitiva no gerenciamento da política monetária ao mesmo tempo em que amplia o canal com o sistema financeiro.
É como se a autoridade assumisse no dia a
dia de suas atividades o uso de um instrumento que extrapola os limites do
puramente monetário, ou seja, a primazia que lhe confere o “moral hazard” e que
lhe permite ser o emprestador de última instância. Ao transferirem ativos
privados dos balanços dos bancos para o seu próprio balanço, os BCs incorrem em
operações “quasi fiscal”, pois junto com esses títulos (de renda fixa ou
variável) passam a incorporar também os riscos que estão ali embutidos.
Não apenas isso. A compra indiscriminada de
ativos da carteira dos bancos por parte das autoridades monetárias pressupõe
outros problemas que não têm sido propriamente enfrentados. Além de estar
sujeita às pressões do governo e dos políticos em geral, a intervenção dos
bancos centrais pode beneficiar indiretamente setores que não sejam
“enquadráveis” na lista dos mais recomendados do ponto de vista, por exemplo,
da política de proteção ambiental. Também há a possibilidade de o QE
influenciar no melhor retorno de alguns bancos em detrimento de outros. Portanto,
aquela prática nada convencional tem implicações políticas de toda a ordem.
Objetivamente, o que se tem desde a
introdução do mecanismo do QE é um tremendo crescimento do balanço dos bancos
centrais que recentemente se viram diante do aumento de uma inflação
inesperada, nascida a reboque dos efeitos econômicos da pandemia agravados pela
guerra na Ucrânia.
Estima-se que no final de março o balanço
do Fed atingiu o equivalente a cerca de 33% do PIB, enquanto que o balanço do
Banco Central Europeu (BCE) representava 56% do PIB. Em ambos os casos, chegou
a ser maior, com o auge entre 2021 e 2022 devido às políticas de estímulo
perpetradas como alternativas à paralisia causada pela covid-19.
No caso do Japão, a situação é
particularmente especial. Com a economia mergulhada em uma grave e longa apatia
por anos a fio, o governo apelou para a emissão monetária com vistas a
estimular a inflação e, através dela, o crescimento. Antes da pandemia, o
balanço do Banco Central do Japão equivalia a cerca de 100% do PIB, tendo
chegado a 130% do PIB em março passado. O resultado dessa política não tem sido
grandioso. O envelhecimento da população em cenário de baixa imigração de mão
de obra mantém a demanda reduzida e contribui para a estagnação da economia.
Diz-se que os bancos centrais voltaram a
viver uma época de predominância depois da acomodação da chamada Grande
Moderação, caracterizada pelo crescimento com baixa inflação da segunda metade
dos anos 90 e início deste século. Tem-se vivido desde 2008 na era dos
experimentos monetários, em especial nos países desenvolvidos, marcada pela
maior influência dos bancos centrais, cujos mandatos agregaram novas
atribuições a respeito das quais carecem de conhecimento específico.
As questões que se colocam hoje na esfera
da execução da política monetária são inúmeras e nada triviais. Afinal, como
previu Blinder, o instrumento do QE veio para ficar? Se sim, novas regras de
monitoramento precisariam ser definidas como, por exemplo, a obrigatoriedade de
os bancos centrais divulgarem regularmente a característica dos ativos privados
que carregam em seus balanços.
Não há problema de risco com os papéis
públicos, mas também os detalhes destes ativos deveriam ser periodicamente
informados pelas autoridades monetárias aos contribuintes em geral.
As práticas monetárias não convencionais
têm suscitado muita discussão a respeito da forma como os bancos centrais
deveriam atuar de modo a que se possa recuperar o melhor dos mundos: economias
em crescimento com pouca inflação e, claro, taxas de juros baixas. Uma das
ideias em debate prevê maior entrosamento entre as políticas monetária e
fiscal, uma vez que ambas podem atuar no sentido de manipular a demanda, seja
através dos juros, seja através dos impostos. Seria algo novo, pois, até aqui,
ambas as políticas caminharam em paralelo sem nunca terem se cruzado.
São tantas e tão sofisticadas as ideias em
discussão relacionadas à atuação dos bancos centrais no resto do mundo,
especialmente no meio acadêmico, que não se compreende o estado de inércia que
parece dominar a mente da maioria dos economistas brasileiros. Tudo o que se
ouve e lê a respeito de política monetária no país é um repeteco carregado de
conceitos pré concebidos, distantes das abordagens que circulam lá fora.
Não se está a dizer aqui, registre-se, que
as novidades em debate sejam boas ou más. Apenas que se vive no exterior um
rico processo de troca de pontos de vista sobre a questão monetária e que isso
passa ao largo do debate no país, com raríssimas e brilhantes exceções.
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