Não há solução fácil para o desafio ambiental
Valor Econômico
Choques climáticos podem levar até 3
milhões de brasileiros à pobreza extrema até o fim da década
O presidente Lula não voltou de mãos
abanando da viagem ao Reino Unido, onde foi assistir à coroação do rei Charles
III. O Brasil recebeu a oferta de contribuição de R$ 500 milhões para o Fundo
Amazônia e o pedido do próprio rei Charles III para cuidar da floresta
amazônica. Os dados mais recentes mostram as dificuldades da tarefa e que o
desmatamento vem aumentando.
A eleição de Lula e a reafirmação de seus compromissos com o meio ambiente reacendeu na comunidade internacional a esperança de contar com o Brasil nos esforços de frear o temido aquecimento global. Afinal, o País aderiu ao Acordo de Paris em 2015, se comprometendo a reduzir a emissão de gases de efeito estufa em 37% abaixo dos níveis de 2005 em 2025, e em 43% em 2030. Também prometeu zerar o desmatamento até 2030 e atingir a neutralidade das emissões de carbono até 2050. Para isso, entre outras medidas, precisa restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas.
Essas promessas foram colocadas de escanteio
durante a gestão de Jair Bolsonaro, mas foram retomadas por Lula que, antes
mesmo de sua posse, participou da COP27, no Egito, em novembro de 2022,
reafirmando a prioridade da agenda do clima. Em manifestação de confiança no
país, as nações desenvolvidas retomaram as contribuições ao Fundo Amazônia.
O Reino Unido é a mais recente delas. No
fim de abril, os Estados Unidos haviam anunciado o aporte de US$ 500 milhões ao
longo de cinco anos. Os dois países se juntam à Noruega, maior contribuinte,
que já doou US$ 1,2 bilhão desde que o fundo foi lançado, em 2008, no segundo
mandato de Lula; e à Alemanha, que contribuiu com US$ 68,14 milhões, e, em
janeiro, anunciou a liberação de mais € 35 milhões de euros. Além disso, a
própria União Europeia deve entrar no Fundo Amazônia, reafirmou o lituano
Virginijus Sinkevicius, comissário europeu de Meio Ambiente, Oceanos e Pesca,
ao Valor (3/5).
O Fundo Amazônia financiou 102 projetos de
conservação e revitalização da Amazônia no valor total de R$ 1,8 bilhão em sua
primeira década de existência, envolvendo o Ibama, programas de proteção
florestal e instituições que fazem o monitoramento ambiental. As atividades, no
entanto, pararam em abril de 2019, quando a Noruega e a Alemanha congelaram
seus fundos devido às políticas ambientais do governo de Bolsonaro, que
extinguiu os dois comitês gestores do fundo sem consultar os países
financiadores. O funcionamento do fundo foi normalizado no início do governo
Lula, assim como foi reativado o Plano de Ação para Prevenção e Controle do
Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
Apesar das boas intenções e das medidas já
tomadas pelo novo governo, o desmatamento continua avançando. O aumento foi de
cerca de 60% na Amazônia Legal nos quatro anos do governo Bolsonaro na
comparação com os quatro anos anteriores, segundo monitoramento do Prodes,
feito anualmente por satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe). Os dados mensais do sistema de alertas do Deter, também do Inpe,
mostram queda de 41% de janeiro a abril deste ano na Amazônia na comparação com
o mesmo período de 2022, mas os resultados foram vistos com otimismo cauteloso
pelos especialistas. O desmatamento avançou 14,5% no cerrado, especialmente na
fronteira agrícola.
Desmantelado no governo Bolsonaro, o Ibama
ainda não se reestruturou para combater o desmatamento. Depois de ter tido 1,7
mil fiscais, está reduzido a 700, sendo que apenas 300 têm condições de ir a
campo.
A agenda ambiental tem repercussão direta
nas relações internacionais, dada a importância conferida pela UE ao tema para
a conclusão do acordo com o Mercosul, e a legislação europeia que vai impedir a
importação de produtos ligados a desmatamento e degradação de florestas no
mundo todo.
Tão ou mais importante são as repercussões
dentro do próprio país como ressaltou estudo recente do Banco Mundial, que
propõe a implementação de um plano para proteger a Amazônia e a população, além
de estimular as energias renováveis (Valor 4/5). Segundo o Banco Mundial,
os choques climáticos podem levar até 3 milhões de brasileiros à pobreza
extrema até o fim da década, com o aumento dos preços dos alimentos, inundações
e deslizamentos de terra, que atingem principalmente os mais vulneráveis.
Em entrevista ao Valor (5/5), o climatologista Carlos Nobre desenhou um quadro complexo, que explica a demora na solução da crise que aflige os povos Yanomamis. Segundo ele, o desmatamento não recua por causa da atuação do crime organizado, que financia a mineração ilegal, o desmatamento e a grilagem de terra. A proposta de Nobre é a implantação de políticas socioambientais, que incluam não só parar o desmatamento e a degradação da Amazônia, mas também restaurar 500 mil km2 de floresta, em sua maior parte em área brasileira, mas também em países da região, ao custo de nada menos que US$ 20 bilhões. Não é sem razão que o presidente Lula reafirmou em Londres que precisa de muita ajuda dos países ricos para cuidar da Amazônia.
Ao tentar reestatizar Eletrobras, Lula
sabota seu governo
O Globo
Iniciativa mistura conveniência de manter
indicações políticas à convicção ideológica dos petistas
Com tantos desafios, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva resolveu criar um novo problema para o próprio governo ao
elevar o risco regulatório no setor elétrico. A
Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade
questionando a privatização da Eletrobras em junho de 2022. Embora o
governo negue, o objetivo é reestatizar a empresa. Sem força para fazer o
pleito avançar no Congresso, recorreu ao Judiciário. A insistência de Lula
revela que não se trata de mero jogo de cena para radicais. Há um misto de
conveniência (desejo de recuperar poder e o cabide de empregos) e convicção ideológica
no investimento estatal.
A expectativa é que o Supremo rejeite a
ação peremptoriamente, já que o modelo de privatização, mesmo imperfeito, foi
discutido a fundo, aprovado no Congresso e sancionado pelo Tribunal de Contas
da União (TCU). Mas o simples fato de Lula insistir no retrocesso contribui
para deteriorar o ambiente de negócios. Em menos de um ano, uma privatização
referendada por todas as instituições da República é atacada pelo novo governo.
Quem arriscará investir no país com tal insegurança?
Na superfície, o argumento de Lula parece
fazer sentido. A União tem 45% das ações ordinárias, considerando os papéis em
poder do BNDES, de bancos públicos e dos fundos de pensão de estatais alinhados
com o governo. Mas uma regra, que vale para todos os acionistas, limita o poder
de voto a 10%. Na visão da AGU, “a regra limitadora do direito de voto gera
ônus desproporcional à União e grave lesão ao interesse público, em clara
violação ao direito de propriedade do ente federativo”.
Não é bem assim. O modelo escolhido para a
privatização foi aumentar o capital e pulverizá-lo, sem dar a nenhum acionista
poder absoluto. É prática corporativa comum, que aposta na qualidade da gestão
com controle compartilhado. Não há cerceamento algum ao direito de propriedade.
E é razoável haver teto para o direito a voto de uma companhia com o tamanho da
Eletrobras. “Sem limite, empresas presentes ou com interesses no setor elétrico
poderiam elevar a participação para influenciar as decisões em detrimento da
própria Eletrobras”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel).
Quanto a brandir o argumento do interesse
público, parece até piada da AGU. Por décadas a Eletrobras foi um cabide de
empregos para quem tinha conexão política. Chegou a ter 26 mil funcionários. Só
não quebrou em 2016 porque era da União. Às vésperas da privatização, em março
de 2022, tinha 10.500 empregados. Em março passado eram 8.500. Sem nenhum
prejuízo aos serviços. Ao contrário. No primeiro trimestre, os investimentos
foram 200% superiores aos registrados no mesmo período de 2022. O resultado
financeiro cresceu 44%. Não há dúvida de que, para a sociedade, é melhor uma
empresa mais enxuta, mais lucrativa e com maior capacidade de investimento. É
esse o interesse público.
O ano de 2023 tinha tudo para ser um dos
melhores do setor elétrico em muito tempo. O nível dos reservatórios das
hidrelétricas está em patamar acima dos 80%. Em março, o país ultrapassou a
marca de 190 gigawatts de capacidade instalada na geração, recorde puxado pelo
capital privado. Investimentos em fontes alternativas estão em fase de
maturação. Pois justamente neste momento o governo resolveu se sabotar. Beira o
incompreensível.
Vitória da extrema direita no Chile é
resultado do descaminho de Boric
O Globo
Ao apostar em Constituinte de forte apelo
esquerdista, presidente chileno abriu caminho ao populismo rival
Eleito há pouco mais de um ano por uma
aliança de esquerda, com os partidos Comunista e Socialista, o governo do
presidente do Chile, Gabriel Boric, levou seu maior baque nas eleições do
último domingo para o Conselho Constitucional, encarregado de
redigir uma nova proposta de Carta para o país. Enquanto a coalizão de Boric
obteve apenas 16 dos 51 assentos em disputa, a extrema direita liderada pelo
populista José Antonio Kast — uma espécie de “Bolsonaro chileno” — saiu
vitoriosa com 23 cadeiras, e a centro-direita do ex-presidente Sebastián Piñera
levou 11 (uma cadeira ficou com um candidato indígena).
Uma aliança entre a extrema direita e os
conservadores não terá dificuldade em comandar as discussões e a confecção da
nova Constituição, pois serão necessários apenas 31 votos (três quintos) para
aprovar o novo texto da Carta, que depois será levado a plebiscito. Além disso,
disporá dos 34 votos (dois terços) exigidos para barrar quaisquer sugestões do
Comitê de Especialistas encarregado de avaliar o resultado. O revés para Boric
é um recado a todos os esquerdistas do continente sobre os efeitos de afastar o
governo dos anseios da sociedade.
A nova Constituição foi oferecida por
Piñera como resposta às manifestações que convulsionaram o país em 2019. A
primeira tentativa de texto, concluída em junho passado, três meses depois da
posse de Boric, era reflexo, tanto nas questões econômicas quanto nas
identitárias, da influência do pensamento esquerdista que saíra vitorioso das
urnas. Numa miríade de artigos, os constituintes atenderam a toda sorte de
demanda por benefícios sociais, direitos ambientais, indígenas, paridade de
gêneros e o que mais fosse possível. Levada a plebiscito com apoio vocal do
novo presidente, foi derrotada por 62% dos chilenos.
Desde o fim da ditadura de Augusto
Pinochet, o Chile é o país com a maior história de sucesso econômico da América
Latina. Ao rejeitar a proposta, os chilenos mostraram não estar dispostos a
sacrificar os princípios que garantiram tal êxito em nome da profusão de
direitos incertos e das garantias a inúmeros grupos de interesse. O crescimento
estagnado e a inflação em 12,5% (taxa mais alta desde 1994) fizeram os ventos
soprar contra Boric.
Agora, a nova redação da Constituição
partirá do campo ideológico oposto. Parece certo que está por ora afastado o
perigo de demolição dos pilares liberais da economia chilena e que não será
criada uma barafunda de direitos inexequíveis ou impagáveis pelo contribuinte.
Ao mesmo tempo, a vitória da extrema direita traz outras ameaças, ligadas não
apenas ao revisionismo histórico sobre os anos Pinochet.
O populismo de Kast não pode interferir na independência das instituições, nem pôr em risco o caráter democrático do Estado chileno. Será preciso que a centro-direita contenha os arroubos autoritários dos mais extremistas para garantir que o texto da nova Constituição não padeça de limitações ideológicas antagônicas às do anterior — e que não haja nova derrota em plebiscito.
Agenda do retrocesso
Folha de S. Paulo
Lula tenta no STF uma decisão casuística
contra a privatização da Eletrobras
Depois de investidas contra a autonomia do
Banco Central, a Lei das Estatais e o marco do saneamento básico, o governo
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) busca mais um
retrocesso econômico e institucional com a pretensão de retomar o controle da
Eletrobras, a duras penas privatizada no ano passado.
A ação de inconstitucionalidade ajuizada
pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Supremo Tribunal Federal questiona a
legalidade do dispositivo da lei que abriu caminho para a operação, aprovada
pelo Congresso em 2021, e limita a 10% o direito a voto de qualquer acionista,
qualquer que seja sua participação no capital da empresa.
O objetivo da restrição foi
profissionalizar a gestão e o conselho da ex-estatal, evitando a formação de um
bloco de controle com participantes públicos ou privados. Esse formato legal
não constitui novidade, tendo sido utilizado com sucesso na privatização da
Embraer. Também a Vale é hoje regida segundo normas similares.
Como mesmo depois da desestatização a União
ainda reteve cerca de 43% das ações ordinárias da Eletrobras, a AGU pede que a
corte considere ilegal o limite estatutário de voto. Argumenta-se que ele
deveria valer apenas para quem detiver mais de 10% do capital depois da mudança
na lei.
Numa tentativa de minimizar danos e
convencer incautos de que as intenções do governo são benignas, a
Advocacia-Geral da União afirma que não está questionando o mérito da
privatização.
Resta evidente, entretanto, que a intenção
de Lula é reassumir as rédeas da companhia e ampliar seu poder de distribuir
benesses, seja a políticos, a empresários ou a sindicatos aliados.
Em nome de supostos interesses
estratégicos, pretende-se que sejam relegados ao esquecimento os escândalos de
corrupção, a incompetência administrativa, os maus investimentos e o
apadrinhamento político que marcaram a gestão das estatais nas administrações
petistas —e, em graus variados, nos governos anteriores.
No caso em pauta, há agravantes. O que Lula
pede ao Supremo é que desconsidere uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e
rasgue um contrato celebrado pelo governo brasileiro, cujos termos foram
validados pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Não houve
nenhuma ilegalidade na privatização da Eletrobras. Além de
afrontar o Legislativo, uma mudança casuística criaria uma inédita incerteza no
regramento jurídico do país, com graves danos para a atração de investimentos.
Cumprir contratos firmados pelo poder
público é dever de qualquer autoridade, eleita ou não. O STF tem uma excelente
chance para ratificar essa obviedade.
Guinadas chilenas
Folha de S. Paulo
Direita radical avança no país, que precisa
superar polarização e populismo
Depois do fim de uma sangrenta ditadura
militar, em 1990, e até uma onda de protestos populares em 2019, o Chile foi um
exemplo de estabilidade institucional, moderação política e prosperidade
econômica na América do Sul.
Há três anos e meio, porém, o país vive um
turbilhão de crises e incertezas, com mudanças bruscas de humores do eleitorado
e ascensão de forças políticas mais sectárias. A guinada
mais recente foi a vitória da direita radical na eleição, realizada no domingo
(7), para o conselho encarregado de redigir uma nova Constituição
chilena.
A mudança da Carta foi a resposta do então
governo conservador de Sebastián Piñera às manifestações,
não raro violentas, de insatisfação social em 2019 —que tinham
entre os alvos principais as deficiências apontadas nos serviços de previdência
e educação.
O país rumava à esquerda, tanto na escolha
da Assembleia Constituinte quanto na eleição do hoje presidente Gabriel Boric,
um jovem ex-líder estudantil, ao final de 2021. Os ventos políticos, porém,
mudaram rapidamente.
As dificuldades econômicas decorrentes da
pandemia de Covid-19 apressaram o desgaste da popularidade de Boric, ao mesmo
tempo em que refluía o ímpeto esquerdista do eleitorado chileno.
A consequência foi a ampla
rejeição, em consulta popular realizada em setembro, da proposta de nova
Constituição —uma peça que revirava todo o ordenamento jurídico
do país, aí incluídos aborto, ambiente, eleições e gastos públicos.
Agora, a segunda tentativa de mudar a Carta
caberá a um colegiado em que a direita radical terá 22 das 50 cadeiras, e a
direita tradicional, 11, enquanto a esquerda governista ficará com as 17
restantes.
A despeito de todo o vaivém, o Chile está
longe de um cenário de terra arrasada. Sua renda per capita, na casa de US$ 24
mil (ante US$ 15 mil no Brasil, em cálculo que leva em conta o poder de compra
das moedas locais), o aproxima dos países ricos.
A conjuntura econômica, que ora impõe sacrifícios
para o controle da inflação, é difícil, mas administrável. O país tem plenas
condições de expandir os serviços do Estado, de fato precários, e combater a
desigualdade sem abrir mão da responsabilidade orçamentária.
A polarização e o populismo, que hoje grassam no continente, são as maiores ameaças à formação de consensos políticos para retomar a rota do desenvolvimento.
Não cabe ao STF regular redes sociais
O Estado de S. Paulo
Não cabe ao Judiciário definir os tempos do
Legislativo, já que essa definição é parte essencial da própria política. O
silêncio do Congresso é uma opção política perfeitamente legítima
Dias depois de a Câmara dos Deputados adiar
a votação do Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, que dispõe sobre um novo marco
jurídico para as plataformas digitais, o ministro Dias Toffoli, do Supremo
Tribunal Federal (STF), liberou para julgamento a ação que questiona a
constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).
Não poucas pessoas viram no gesto de Dias Toffoli uma resposta do Judiciário ao
adiamento da votação. Seria uma espécie de ameaça: se o Congresso não assegurar
uma maior responsabilidade das plataformas, o STF fará pela via judicial essa
responsabilização, declarando inconstitucional o art. 19.
Seja qual for a disposição do ministro Dias
Toffoli com a liberação para julgamento da ação – medida, em si, corriqueira e
irrepreensível: os processos devem ir a julgamento pelo colegiado da Corte –, o
fato é que o histórico recente do STF suscita preocupação. Cabe, portanto,
adverti-lo sobre os limites de suas competências dentro de um Estado
Democrático de Direito.
Não é papel do Supremo invocar
inconstitucionalidade como forma de pressionar o Legislativo.
Não há dúvida de que o Congresso tem a
responsabilidade de prover um marco jurídico adequado para as redes sociais. A
cada dia fica mais evidente a insuficiência do Marco Civil da Internet para
regular essa nova e plenamente instaurada realidade digital, que produz
incontáveis efeitos sobre a vida social, política e econômica do País. No
entanto, a decisão sobre quando e como fazer essa nova regulação cabe apenas e
tão somente ao Legislativo.
É preciso muito cuidado com as chamadas “omissões
legislativas”. O Congresso também se manifesta politicamente por meio de seus
adiamentos e de suas não decisões. Não cabe ao Judiciário definir os tempos do
Legislativo, já que essa definição é parte essencial da própria política. O
silêncio do Congresso é uma opção política perfeitamente legítima.
No Estado Democrático de Direito, a
Constituição é quem define o concreto equilíbrio entre os Poderes. Nela, não se
encontra nenhuma autorização para o Judiciário substituir o Legislativo. O que
se tem é o exato contrário. Os dois remédios constitucionais para a falta de
regulamentação têm requisitos exigentes e consequências determinadas.
O mandado de injunção deve ser concedido
somente quando “a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5.º, LXXI). No caso de
provimento de ação de inconstitucionalidade por omissão, o STF apenas dá
“ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em
se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias” (art. 103, §
2.º).
No tema sobre a responsabilidade das
plataformas digitais, a situação é muito diferente. Por mais que possa ser
reconhecida sua insuficiência para regular as novas dinâmicas digitais, o Marco
Civil da Internet é perfeitamente constitucional. Não viola a Constituição
estabelecer, tal como faz o art. 19, que o provedor de aplicações de internet
só pode “ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo
gerado por terceiros” se, depois de uma ordem judicial, não tomar as
providências devidas.
Não é tarefa do Judiciário dizer se um
texto de lei está desatualizado ou insuficiente – ou ainda que, dadas as
circunstâncias atuais, suas limitações superam seus benefícios. Isso é uma
decisão política, que deve ser tomada pelos parlamentares eleitos pelo voto
popular. Transformar o controle de constitucionalidade num juízo de
conveniência política é atropelar a democracia representativa.
É fundamental que o Congresso consiga
prover um novo marco jurídico para as plataformas digitais. Mas eventuais
dificuldades na tramitação do PL 2.630/2020 não são pretexto para que o
Judiciário se torne órgão legislador, vendo inconstitucionalidade onde nunca
houve. No Estado Democrático de Direito, a política e a cidadania não precisam
da tutela de juízes.
Lula quer um BC para chamar de seu
O Estado de S. Paulo
Petista quer ver à frente do BC alguém leal
a ele. Pior: alguém que lhe dê conforto para gastar como se não houvesse amanhã
na metade final do mandato. Mas o amanhã sempre chega
O presidente Lula da Silva emite péssimos
sinais ao País ao subir o tom de suas críticas pessoais ao presidente do Banco
Central (BC), Roberto Campos Neto. A cada estocada que dá em Campos Neto,
sobretudo nos termos em que manifesta sua irritação com a condução da política
monetária, Lula demonstra que não lida bem, para dizer o mínimo, com a ideia de
um BC autônomo para cumprir sua missão de trazer a inflação para os limites
definidos pelo próprio governo e, desse modo, preservar o valor da moeda.
Após cumprir agenda oficial na Inglaterra,
no sábado passado, Lula se insurgiu contra a decisão do Comitê de Política
Monetária (Copom) de manter a taxa básica de juros (Selic) em 13,75% ao ano.
Novamente se referindo a Campos como “esse cidadão”, Lula questionou se o
presidente do Banco Central “está louco” e o acusou de ter “compromisso” com o
governo anterior, e não “com o Brasil”. Se é com leviandades desse gabarito que
Lula pretende baixar a taxa Selic, que o País afivele os cintos.
É direito de Lula discordar da política
monetária. Dada a conjuntura econômica, circulam bons argumentos tanto para
defender a manutenção da Selic no atual patamar como para defender que o Copom
já poderia ter iniciado um ciclo de queda gradual da taxa básica de juros. É um
debate legítimo. O que não é legítimo é o presidente da República tratar Campos
Neto de forma desairosa, como se ele fosse um infiltrado bolsonarista na atual
administração, e atacar a autonomia constitucional do BC. Pois é disso que se
trata quando Lula reclama da suposta “falta de compromisso” de Campos Neto com
ele, pessoalmente.
Embora tenha afirmado em Londres que “um
homem sozinho não pode saber mais do que 215 milhões”, Lula sabe muito bem que
o Copom é um órgão colegiado e, portanto, a decisão de manter a taxa Selic em
13,75% ao ano não foi uma escolha pessoal nem isolada de Campos Neto. Então, o
que Lula pretende com essa mentira? Jogar metade do País contra Campos Neto?
Fazer dele um espantalho para ocultar o verdadeiro problema que dificulta a
redução imediata dos juros, a falta de compromisso do governo com uma política
fiscal crível?
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a
ministra do Planejamento, Simone Tebet, estão praticamente sozinhos na defesa
pública do novo arcabouço fiscal. Lula não faz esforço para apoiar seus
ministros e, assim, tentar conter a oposição que até as cabeças mais coroadas
do atraso petista fazem à proposta de política fiscal formulada por seu
governo.
A maneira irresponsável como Lula critica o
presidente do BC – como se a ele, do alto do cargo que ocupa, fosse dado tratar
de tema tão relevante como se estivesse em uma mesa de bar – fragiliza a
dimensão técnica das decisões do Copom e, ao fim e ao cabo, compromete sua
credibilidade. Evidentemente, decisões do Copom sempre têm uma dimensão
política, mas esta nunca deve prevalecer sobre as decisões técnicas.
Não se pode desconsiderar, por fim, que as
desabridas críticas de Lula ao presidente do BC vêm no contexto da sucessão de
Campos Neto, cujo mandato vai até 31 de dezembro de 2024. Haddad acaba de
indicar para a Diretoria de Política Monetária do BC o atual secretário
executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, economista adepto da
heterodoxa “Nova Teoria Monetária” – ideia segundo a qual, resumidamente,
governos que emitem sua própria moeda jamais serão insolventes, pois podem
emitir papel para quitar suas dívidas. Ou, em outras palavras, a síntese feita
pela ex-presidente Dilma Rousseff: “Gasto é vida”.
Ao que tudo indica, o governo quer ver
Galípolo à frente do BC a partir de janeiro de 2025. Ou seja, na condução da
política monetária, Lula dá sinais evidentes de que quer alguém fiel a ele.
Mais: alguém que lhe dê conforto nos dois últimos anos de mandato para gastar
como se não houvesse amanhã. Só há um problema: o amanhã sempre chega, como
mostrou o desastroso alinhamento incondicional do BC aos desmandos de Dilma em
um passado tão recente que ainda cobra o seu preço.
Novela sem fim
O Estado de S. Paulo
Novo atraso no Censo 2022 expõe erros do
governo anterior e fragilidade do Estado brasileiro
O Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) acaba de anunciar mais um adiamento do Censo Demográfico
2022, cuja conclusão deveria ter ocorrido no ano passado. A promessa, agora, é
que os resultados serão divulgados no próximo dia 28 de junho − um atraso que
reflete, acima de tudo, o descaso e a irresponsabilidade do governo anterior na
condução do principal levantamento estatístico do País.
Realizado uma vez a cada década, o Censo
constitui a mais detalhada radiografia das condições de vida da população
brasileira, indicando não apenas quantos são, mas onde e como vivem os
habitantes do País. Como se sabe, o levantamento fornece dados preciosos para o
planejamento e a execução de políticas públicas, capaz de indicar até mesmo a
distribuição populacional por bairro ou região, em cada município.
É com base no Censo − e nos demais estudos
e recortes estatísticos produzidos a partir de seus resultados − que gestores
públicos e até privados definem prioridades, fazem investimentos e otimizam
recursos. Quem não dispõe de dados atualizados está sujeito a escolhas erradas,
com prejuízos que afetam toda a população. Eis o que está em jogo, e é espantoso
que muita gente não perceba a dimensão disso.
Vale notar que há uma triste ironia nos
sucessivos adiamentos do Censo 2022. Incapaz de traçar o perfil demográfico e
socioeconômico da população brasileira até aqui, o levantamento converteu-se em
retrato da incompetência governamental numa área de inequívoca importância para
a gestão do País. Os tropeços, claro, decorrem da falta de visão estratégica e
da incúria administrativa do governo Bolsonaro,
que menosprezou o Censo como reflexo de sua
ojeriza generalizada aos dados da realidade. Ainda assim, é assustador perceber
como a máquina pública pode ficar refém de desmandos num setor de tamanha
relevância.
Ora, o Censo é atividade mais que
previsível e seu prazo decenal não dá margem a que ninguém alegue ter sido pego
de surpresa. Previsto para 2020, foi corretamente postergado para 2021 em razão
da pandemia de covid-19. Dali em diante, porém, o que se viu foi uma sucessão
de erros, a começar pela falta de previsão orçamentária para que pudesse ser
feito em 2021. Adiado para 2022, esbarrou em problemas de todo tipo − até mesmo
em atrasos no pagamento de pessoal, além da falta de recenseadores. Deu no que
deu.
Desde janeiro, o atual governo tenta
corrigir falhas. Para isso, alongou o prazo de coleta e apuração de dados, a
fim de ampliar a cobertura do levantamento, principalmente em favelas e bairros
nobres, bem como na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Não pode passar
desperdebido, no entanto, que o IBGE segue sob o comando de um presidente
interino, e que os últimos adiamentos − de abril para maio e, agora, para junho
− não são bons sinais. O Censo precisa ser encarado como política de Estado, e
isso deve se traduzir em ações concretas. Sem dados atualizados e confiáveis,
como esperar que o País possa romper as amarras do atraso e trilhar o caminho
do desenvolvimento?
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