terça-feira, 9 de maio de 2023

Andrea Jubé - Acordos, cargos e emendas no fio do bigode

Valor Econômico

Com direito a recursos estimados em até R$ 50 milhões, nenhum parlamentar deixará de votar como quiser em troca de tostões do governo

No século 19 e começo do século 20, o bigode atestava a força da palavra de um homem. Um aperto de mãos selava acordos, mas naquela época, os pactuários arrancavam, literalmente, um fio do bigode para simbolizar a palavra empenhada. Era o pacto “no fio do bigode”.

A prática era comum nos tempos do coronelismo nos sertões de Minas Gerais, como João Guimarães Rosa (1908-1967) retratou em sua literatura. Por exemplo, ao introduzir o respeitado Joca Ramiro, pai de Diadorim, e líder de jagunços visto como um cumpridor de acordos:

“Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha. Bastava vozear curto e mandar”, descreveu Rosa. “Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante, com um modo manso muito proveitoso: - Meus filhos...”

Em outra passagem do clássico Grande sertão: veredas (1956), o major Amaral prendeu o Andalécio, e cortou seus grandes bigodes. Na batalha, garrucha engatilhada, o jagunço reagiu: “Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!”

O bom observador da cena política reconhece o tique do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de pentear os bigodes com o indicador e o polegar quando está prestando atenção em algo, ou refletindo sobre algum dilema. Políticos experientes afirmam que Lula tem defeitos, como qualquer um, mas na política, é identificado como cumpridor de acordos.

Foi por isso que ao voltar de Londres, Lula chamou ministros palacianos e a cúpula petista para discutir a insatisfação da base aliada, e reafirmar que é preciso honrar acordos. Sobretudo entre homens de bigodes.

“O governo faz um acordo com a Câmara ou o Senado sobre a aprovação de uma medida e tem que cumprir", declarou Lula à imprensa no sábado, em Londres. “O que estão se queixando os deputados? De que o governo tarda a atender as reivindicações. Não pode prometer e não fazer”, reforçou.

Na semana passada, por 295 votos a favor e 136 contrários, a Câmara derrubou trechos de dois decretos do governo que alteraram o novo marco legal do saneamento. A base também não reuniu votos suficientes para aprovar o projeto de lei das Fake News, obrigando o presidente Arthur Lira (PP-AL) a adiar a apreciação da matéria. A proposta não tem o carimbo governista, mas também é de interesse do Planalto.

O recado foi absorvido. Em reação, o governo abriu nesta segunda-feira o cadastro de novas emendas junto a quatro ministérios (Agricultura, Saúde, Cidades e Desenvolvimento Regional), e junto à Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), feudo do Centrão.

Deputados e senadores estão irritados porque o governo prometeu pagar no começo do ano, em média, R$ 13 milhões em emendas de restos a pagar aos deputados de primeiro mandato, e R$ 8 milhões aos reeleitos, segundo uma fonte credenciada do Congresso. Essa promessa não se realizou.

Em paralelo, o Ministério da Saúde editou portaria com critérios para a destinação de cerca de R$ 3 bilhões para o setor. Emendas para a saúde têm transferência automática para as prefeituras.

Há reclamação também de que as nomeações para cargos estariam sendo travadas pela Casa Civil. Governistas rebatem que existe a burocracia natural da máquina pública. Além disso, algumas indicações morrem nos escaninhos da Casa Civil, porque o apadrinhado tem, por exemplo, condenações judiciais transitadas em julgado.

Em outra frente, Lula alertou os ministros de que a base aliada também deu o fio do bigode, ou seja, a palavra de ser leal ao governo. Por isso, pediu que seus ministros cobrem fidelidade dos correligionários.

Ontem o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse em entrevista que não é “marinheiro de primeira viagem” no cargo de articulador político do governo. O problema, segundo alguns líderes, é que Padilha encarou outro perfil de Congresso quando exerceu a mesma função no segundo mandato de Lula.

“Hoje você tem 2/3 do Congresso de centro-direita, tem um ambiente de radicalização que nunca foi visto no país”, argumentou à coluna Felipe Carreras (PSB), líder do maior bloco da Câmara, que reúne nove partidos (inclusive o PP de Arthur Lira) e 173 deputados.

“A área política do governo tem que trabalhar redobrada, com muito mais sensibilidade. Se já foi difícil em outros tempos, agora é muito mais”, completou. Ele lembrou que Lula herdou um Congresso que vinha no “piloto automático” das emendas RP-9, ou seja, as emendas de relator, cuja distribuição era controlada pelos presidentes da Câmara e do Senado.

Outra diferença, segundo Carreras, é que nos primeiros mandatos de Lula, deputados e senadores gastavam solas de sapato indo ao Planalto para pressionar pela liberação das emendas individuais, estimadas em R$ 12 milhões. Com as mudanças dos últimos anos, um parlamentar tem direito, atualmente, a recursos estimados em até R$ 50 milhões. Isso somadas as emendas individuais de R$ 30 milhões, mais emendas de bancadas, que se tornaram impositivas, que podem chegar a R$ 20 milhões, dependendo do Estado de origem do parlamentar. Ou seja, ninguém votará como não quiser em troca de tostões do governo.

 

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