sábado, 20 de janeiro de 2024

Fareed Zakaria - A inquietude global com a eleição

O Estado de S. Paulo

Vitória do ex-presidente colocaria em risco a longa paz americana e a economia global aberta

Estrangeiros acompanham nervosamente e obsessivamente as prévias republicanas

As conversas nos ares gelados das montanhas de Davos, na Suíça, insistem em revolver um mesmo tema. “Em 2024, mais ou menos 50 eleições ocorrem ao redor do mundo. Mas todos nós falamos só de uma: a dos EUA”, me disse o ex-primeiro ministro sueco Carl Bildt.

Quando no exterior, americanos podem com frequência mostrar-se provincianamente atentos à sua própria política, aborrecendo interlocutores estrangeiros com longas digressões sobre política partidária no Senado ou prospectos para algum novo governador. Mas, desta vez, estou encontrando americanos cansados do drama político de seu país, enquanto os estrangeiros se apavoram com o que poderá ocorrer em novembro.

A eleição americana ocorre num momento crucial. Em todo o mundo, estamos vendo vários desafios à ordem internacional com base em regras que serviram bem à humanidade por décadas. Na Europa, o conflito mais sangrento que o continente viu desde a 2.ª Guerra ameaça subverter seu sistema de segurança. No Oriente Médio, o Irã e seus aliados – Hamas, Hezbollah, houthis e outros – estão testando sua capacidade de perturbar o equilíbrio de poder na região. E na Ásia, a ascensão da China é a principal perturbação de longo prazo, à qual devemos acrescentar o fortalecimento em aceleração do arsenal da Coreia do Norte e sua retórica cada vez mais beligerante.

Todos esses fatores viraram testes para a determinação dos EUA, que enfrentam dificuldades para mobilizar seus aliados na Europa, na Ásia e no Oriente Médio para ajudar a dissuadir essas ameaças e resolver crises.

Mas muitos aliados preocupam-se com a possibilidade de, em novembro, os EUA darem um basta – decidam que esses muitos problemas talvez não ameacem o país e, portanto, não vale a pena confrontá-los. Grande parte da retórica de Donald Trump e algumas de suas almas gêmeas ideológicas alimentam esse medo.

MEDO. E se Trump vencer a eleição e praticar o que prega? O que acontece com os aliados que arriscaram o pescoço para se tornarem parceiros de Washington? “Considere meu país e a Finlândia”, me disse Bildt. “Demos um passo enorme aderindo à Otan, que nos coloca em posição de confronto contra a Rússia. Fizemos isso acreditando que tínhamos o apoio das Forças Armadas dos EUA. O que acontece se Trump vencer e decidir sair da Otan? Ficaríamos expostos e teríamos de pensar profundamente e longamente a respeito das nossas opções.”

A Finlândia, de sua parte, abandonou a política de neutralidade que lhe serviu bem por mais de 70 anos, mas poderia se encontrar profundamente vulnerável a ataques da Rússia ao longo de sua fronteira de 1.340 km com o país. Sua capital, Helsinque, fica a 300 km de São Petersburgo.

AMEAÇA. Eu detectei preocupações similares quando estive na Austrália, algumas semanas atrás. Na superfície, autoridades e analistas australianos estavam otimistas com sua nova aliança reforçada com os EUA e orgulhosos por passarem a receber submarinos nucleares de Washington, uma tecnologia que, até então, os americanos só haviam compartilhado com o Reino Unido.

Mas há uma inquietação sob a bravata. Nos anos recentes, a Austrália se movimentou decisivamente para se aliar com Washington e, nesse processo, enfureceu a China, sua maior parceira econômica. Trata-se de um ato de equilíbrio que deixa alguns estrategistas nervosos.

Sam Roggeveen é acadêmico do Instituto Lowy, o principal centro de análise de relações internacionais da Austrália. Ele escreveu um livro, The Echidna Strategy: Australia’s Search for Power and Peace (“A estratégia equidna: a busca da Austrália por poder e paz”), que articula melhor esse nervosismo.

Roggeveen argumenta que a Austrália está cometendo um grande erro achando que poderá contar com os EUA nas próximas décadas. Ele acredita que, com o tempo, os americanos concluirão que não vale a pena o custo enorme e constante de confrontar a China na Ásia, que a segurança dos EUA não exige isso e os EUA diminuirão seus compromissos internacionais.

Isso deixará a Austrália em uma posição terrível, tendo enfurecido e alienado os chineses, mas sem o guarda-chuva de segurança dos EUA em troca (ele defende que a Austrália se transforme numa equidna, uma versão australiana de porco-espinho: difícil de atacar e ainda mais difícil de digerir).

Desde a 2.ª Guerra, Washington adotou, de maneira bipartidária, uma visão expansiva sobre sua própria segurança, reconhecendo que poderia ajudar a sustentar a estabilidade de regiões importantes no mundo. Esse papel global ajudou a criar o que os historiadores chamam de “a longa paz” e a economia global aberta.

Se Trump vencer e rejeitar essa visão maior dos EUA no mundo, um recuo poderá criar vácuos de poder, deixar aliados expostos e tentar adversários a acelerar seus ataques e elevar suas ambições. E é por isso que, desta vez, são os estrangeiros que acompanham nervosamente as prévias republicanas. 

Tradução de Guilherme Russo

*É colunista do Washington Post

 

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