Lula demonstra que PT não aprendeu com seus erros
O Globo
Aporte bilionário na Refinaria Abreu e Lima
revela crença na fábula do investimento estatal salvador
Nenhum eleitor pode esperar que governantes
sejam imunes ao erro. Mas pode — e deve — exigir que aprendam para não
repeti-los. Por isso causou espanto o discurso em que o presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva anunciou investimentos bilionários na Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco.
O anúncio, além de um contrassenso, é prova de que o PT pouco aprendeu com seu
passado.
A ideia da refinaria surgiu no primeiro governo Lula. O projeto contava com a participação da estatal venezuelana PDVSA, mas as promessas do caudilho Hugo Chávez nunca se materializaram. Anunciado em 2005, o orçamento inicial foi estimado em US$ 2,3 bilhões. Em 2014, quando apenas uma das duas unidades previstas entrou em operação, os gastos acumulavam quase US$ 20 bilhões. Como foi documentado por confissões, depoimentos e documentos recolhidos pela Operação Lava-Jato, parte considerável do dinheiro foi simplesmente roubada.
Mesmo que a governança seja agora reforçada a
ponto de evitar mais corrupção, a decisão de investir US$ 8 bilhões para
ampliar a produção de diesel concluindo a segunda unidade de Abreu e Lima não
para de pé. É verdade que o Brasil importa o combustível. Também é certo que o
refino vive momento favorável, e as obras estão pela metade. Mas nada disso
sustenta a viabilidade econômica do investimento.
Primeiro, porque o desperdício da Petrobras em
projetos faraônicos de refino tem sido crônico — um estudo verificou que as
gestões petistas gastaram mais que o quádruplo de tudo o que foi investido no
setor ao longo da história da empresa, para aumentar a capacidade de produção
em apenas 20%. Segundo, a forma mais razoável de ampliar o refino seria abrir
espaço ao capital privado. O plano de privatizar refinarias, abandonado desde a
posse de Lula, deveria ser retomado para trazer fôlego à Petrobras e aumentar a
competição no mercado de combustíveis, onde os preços são ainda ditados pela
empresa. Por fim, não é sensato despejar bilhões em negócios ligados a
combustíveis fósseis num momento em que as petrolíferas do planeta priorizam a
transição energética à economia de baixo carbono.
Mesmo com tantas evidências contrárias, o
governo parece inabalável em sua crença no Estado como indutor do crescimento.
Outro sinal disso é o plano de ampliar o GasLub (antigo Comperj), em Itaboraí
(RJ), para erguer uma unidade de produção de diesel renovável e uma
petroquímica. Lançado no primeiro governo Lula, o polo foi também foco de
corrupção e, até o momento, só dragou dinheiro.
A crença de Lula na fábula do investimento
estatal salvador não é a única a causar espanto. Em seu discurso, ele voltou a
acusar o governo americano de ter atuado contra a Petrobras e classificou a
Lava-Jato como um complô. “Tudo o que aconteceu neste país foi uma mancomunação
entre alguns juízes e procuradores, subordinados ao Departamento de Justiça dos
Estados Unidos, que nunca aceitaram o Brasil ter uma empresa como a Petrobras”,
disse. Tais acusações, apresentadas sem nenhuma prova, não resistem à realidade
dos fatos.
E em nada mudam o essencial: as decisões de
investimento da Petrobras nos governos do PT geraram o maior endividamento do
mundo, obras caras, inacabadas e o maior escândalo de corrupção da História do
Brasil. Passou da hora de reconhecer os próprios erros.
Nova lei torna mais eficaz combate ao
bullying dentro e fora da internet
O Globo
Endurecimento de penas é essencial para
coibir prática, mas ainda falta responsabilizar plataformas digitais
Foi um avanço a sanção do presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva à lei que criminaliza o bullying no Brasil. Houve atualização nas penas
de crimes contra menores e a tipificação de delitos nas redes sociais. A nova
legislação fazia falta e já estaria em vigor há tempos se os parlamentares
estivessem mais atentos ao que acontece no mundo digital. Embora tenha
demorado, a resposta do Legislativo foi razoável.
O endurecimento da legislação, além de elevar
as penas, enquadrou como crimes hediondos pornografia infantil, sequestro,
cárcere privado de menores, tráfico de crianças e adolescentes e indução à
automutilação e ao suicídio. Com isso, esses crimes perdem o direito à fiança
ou à anistia. A nova legislação, acertadamente, dobra a pena do condenado se
ele for responsável por grupo, comunidades ou redes virtuais.
O bullying, em especial na vertente digital
conhecida como cyberbullying, é prática disseminada pelo país. Cerca de 11% dos
brasileiros entrevistados em 2022 para a prova do Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes (Pisa) disseram sofrer bullying com frequência na
escola — ante 8% dos estudantes dos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entre as meninas, 22% relataram enfrentar o
problema algumas vezes ao longo do mês (menos que os 20% em média na OCDE), assim
como 26% dos meninos (21% para a OCDE).
Em relato ao portal g1, um adolescente de 13
anos do Guarujá, litoral de São Paulo, falou de sua tristeza ao sofrer bullying
e cyberbullying por excesso de peso: “Eu postava fotos e me xingavam de gordo,
bolo fofo, saco de areia, baleia, entre outras coisas”. A mãe tentou entrar em
contato com os agressores, sem êxito. Depois de informar a escola, a secretaria
municipal de ensino programou palestras para os 2.082 alunos da rede sobre como
evitar e se proteger das agressões. O objetivo era conscientizar as crianças e
jovens e informar-lhes as punições e mecanismos para encaminhar denúncias.
A nova legislação institui a Política
Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e à Exploração Sexual da Criança e do
Adolescente, atualizada a cada dez anos. De nada adiantará sem a atuação de
diretores e de professores nas salas de aula e dos pais em casa. Como famílias
de renda mais baixa costumam ser constituídas por mãe e filhos, o apoio do
Estado é vital.
Outro perigo é as redes sociais terem se
transformado em espaço livre para incitação da violência,
do ódio, do culto às armas. Nos últimos três anos houve no Brasil 36 ataques a
escolas, a maioria com arma de fogo. Por trás deles, estava a interação nociva
de jovens com redes sociais, sobretudo vítimas de bullying e cyberbullying. Daí
a relevância da nova legislação. O que ainda falta é a atribuição às
plataformas digitais de responsabilidades compatíveis com os danos causados
pelo ambiente que mantêm. Isso ainda é tarefa para os legisladores.
Imposto de volta
Folha de S. Paulo
Cashback da reforma tributária substitui com
êxito a desoneração da cesta básica
A Receita Federal prevê que o governo deixará
de arrecadar R$ 39 bilhões neste ano por causa da renúncia à cobrança de
tributos sobre a cesta básica —e trata-se aqui apenas de contribuições e
impostos recolhidos pela União.
Esse benefício é indiscriminado, pois reduz
custos para qualquer consumidor, não importa seu rendimento. Abrange inclusive
produtos que de básicos não têm nada e são adquiridos em geral ou apenas por
pessoas de renda alta.
A reforma tributária pode reduzir essa
distorção iníqua e, além do mais, daninha para o erário.
O texto ainda prevê uma Cesta Básica
Nacional, e os produtos nela listados estarão isentos do futuro imposto federal
sobre o consumo. A relação será definida na regulamentação da reforma, que o
governo pretende enviar até fins de março ao Congresso, e o Ministério da
Fazenda prefere que a nova cesta conte com poucos itens.
Reduções de impostos sobre demais bens de
consumo essencial seriam focalizadas, dirigidas aos mais pobres, que receberiam
de volta o valor pago —devolução ora
conhecida como cashback.
O ressarcimento de tributos no consumo de
energia elétrica e gás de cozinha já foi determinado pelo texto básico da
reforma. Fornecimento de água e esgoto devem receber tratamento semelhante. Nos
casos de serviços de utilidade pública, a devolução pode ser imediata, já na
conta de cobrança.
Em todas as hipóteses, resta definir os
beneficiários e com que critério serão identificados.
O cashback, de qualquer modo, é um instrumento muito mais eficaz de
distribuição de benefícios sociais do que a isenção de impostos. Reduz o gasto
tributário, torna o sistema mais justo e diminui a distorção de preços.
Importante agora é que se facilite a
implementação do mecanismo. Em primeiro lugar, é preciso limitar o número de
itens na nova Cesta Básica Nacional a fim de evitar a distribuição
indiscriminada de subsídios. Quanto maior a desoneração geral, menos cashback
haverá para os mais pobres.
Segundo, cumpre que pequenos negócios sejam
formalizados e emitam notas fiscais —sem isso, não será possível devolver
integralmente os impostos pagos.
Por fim, a lista de beneficiários deve de
alguma forma se relacionar com o cadastro de pessoas que podem receber
transferências diretas de renda, como o Bolsa Família.
Nesse caso, o governo está na direção certa.
Ainda terá de lidar com mais alguns dos tantos lobbies que
se bateram pelos benefícios particulares, em geral nocivos, de
regimes especiais de taxação. Essa continua a ser a batalha mais importante na
defesa de uma boa reforma tributária.
Desmistificar o átomo
Folha de S. Paulo
Mudança climática exige debate baseado em
evidências sobre a energia nuclear
Em 27 de junho de 1954, o reator soviético de
Obninski tornou-se o primeiro do mundo a gerar energia atômica para uso civil.
Passados 70 anos, há 413 usinas em operação no planeta, responsáveis por cerca
de 10% da produção de eletricidade. Mas, em 1996, eram 17,5%.
Essa matriz sempre esteve envolta em
polêmicas, a começar, claro, pelo uso bélico devastador em Hiroshima e Nagasaki
ao final de Segunda Guerra Mundial.
Em entrevista à Folha, o diretor-geral da
Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) da ONU, Rafael Grossi, disse
que "ao longo da história, houve uma demonização da energia nuclear".
O aquecimento global, contudo, impõe um
debate sensato sobre o tema. Isso porque usinas nucleares geram emissão ínfima,
quase nula, de carbono e um terço da energia limpa do mundo. Segundo
Rossi, "abordar
a mudança climática rechaçando a energia nuclear é, francamente,
incompreensível".
Números associados à letalidade dessa matriz
também estão entre os mais baixos, com 0,03
mortes por terawatt-hora (TWh) produzida —só acima da solar
(0,02) e a uma distância abissal do carvão (24,60) e do petróleo (18,4).
Há, claro, risco de acidentes, mas são raros
quando considerada a extensão do uso. A França concentra a maior quantidade de
reatores da Europa (56), que geram 70% da eletricidade do país. Os Estados
Unidos são líderes globais, com 92.
Tentar banir a energia nuclear por causa de
tragédias como as de Tchernóbil e Fukushima assemelha-se a combater o
transporte aéreo devido a quedas de aviões.
Há, sem dúvida, o problema dos resíduos
radioativos, que precisam de estocagem por milhares de anos, mas protocolos
baseados em evidências científicas podem ser incrementados para manter a
segurança ambiental desse descarte.
A AIEA organizou a primeira cúpula sobre o
tema, a ser realizada em março. Trata-se de iniciativa necessária para que o
mundo possa debater os prós e contras da energia nuclear à luz da crise do
clima.
Para cumprir a meta do Acordo de Paris, de
manter a alta da temperatura global até 1,5°C, é preciso cortar a liberação de
carbono em 43% até 2030 e eliminá-la até 2050.
E, se os combustíveis fósseis são responsáveis por 75% das emissões, urge que a comunidade internacional avalie com sensatez e sem mistificações as alternativas que substituirão a queima de carvão, petróleo e gás natural.
A história oficial
O Estado de S. Paulo
Iniciativa digital para construção do Museu
da Democracia reafirma vício do governo de Lula da Silva em pensar a história
segundo sua noção particular de memória, verdade e justiça
Na esteira do aniversário de primeiro ano do
fatídico dia em que golpistas tentaram levar o caos à Praça dos Três Poderes
para deflagrar uma ruptura institucional, o governo anunciou a criação de um
“Museu da Democracia”, instituição destinada a oferecer um “olhar abrangente
sobre a história da democracia”. Segundo se soube, serão usados R$ 40 milhões
para as obras do museu, com previsão de conclusão para 2027, com sede em
Brasília. Até lá, uma iniciativa do Ministério da Cultura e do Instituto
Brasileiro de Museus acolherá contribuições diversas num espaço digital.
Não fosse a explícita tentativa lulopetista
de apropriar-se do 8 de Janeiro e converter a data em louvor ao presidente Lula
da Silva e ao PT, o objetivo declarado até soaria louvável: criar um
repositório digital para a “construção coletiva” de um museu destinado a contar
a trajetória da democracia no Brasil.
Ocorre que estamos falando de um governo
petista e de um DNA vocacionado a reescrever a história segundo a própria noção
de memória, verdade e justiça. Além da defesa do protagonismo de Lula da Silva
na resistência contra os atos – ignorando-se o fato de que a democracia
resistiu por um esforço coletivo das instituições nacionais contra delírios
golpistas –, a iniciativa exibe cores bem evidentes de partidarismo e viés. No
repositório digital lançado pelo governo, que pode ser visto no link
https://democracia.museus.gov.br, há diversos projetos de memória “voltados à
compreensão das questões contemporâneas da democracia brasileira” que só estão
ali porque foram chancelados por curadores governamentais. Uma chancela
fartamente tendenciosa.
Um desses exemplos é especialmente eloquente
na revelação da providencial mistura entre Estado e governo ou entre a
discussão e a difusão da história e certo revisionismo em benefício próprio: o
chamado “Museu da Lava Jato”. Iniciativa de um grupo de juristas, jornalistas e
historiadores “sobre a operação que passou de uma iniciativa de grande apelo
popular para um grande escândalo internacional a partir do conluio entre
procuradores e magistrado”, o tal “Museu da Lava Jato” ataca o “viés político”
da operação e menciona a “perseguição” à esquerda, sobretudo ao PT. Também
reúne acervo jurídico e jornalístico sobre a operação, além de um núcleo de
pesquisa de lawfare, isto é, a manipulação de leis e procedimentos legais para
perseguir adversários – exatamente a acusação que os petistas faziam
sistematicamente contra a Lava Jato.
O repositório digital abriga ainda o Memorial
da Democracia, museu virtual do Instituto Lula para “o resgate da memória das
lutas de nosso povo pela democracia, pela igualdade e pela justiça social”.
Neste caso, previsivelmente, “povo e Lula” e “democracia e PT” são categorias
que se fundem deliberadamente. Na linha do tempo com que o projeto apresenta
capítulos de “defesa da democracia”, vê-se que greves de sindicatos e ações do
MST ocupam mais espaço que avanços institucionais. Que o Plano Real venceu a batalha
contra a inflação e estabilizou a moeda, “mas o país paga um preço alto” (seja
lá o que isso signifique). Que o governo de Fernando Henrique “intimidou
trabalhadores” que se mobilizaram contra privatizações. E que o Brasil “se
reencontra na posse de Lula...”.
Foi buscando reescrever a história que o
então presidente Jair Bolsonaro patrocinou iniciativas destinadas a recontar o
regime instaurado em 1964 e o papel dos militares – incluindo a negação de que
o regime militar tenha sido uma ditadura, a celebração do golpe e a tentativa
de criminalização das comissões nacionais da verdade instaladas no País. O
ex-capitão pregou a desconstrução da história e das instituições para dar
legitimidade a seus delírios antidemocráticos. Já Lula da Silva parece se
empenhar em ser reconhecido como o maior brasileiro da história, de quem o País
é devedor. De um jeito ou de outro, para líderes messiânicos como Lula e
Bolsonaro, a história é sempre subsidiária de um projeto autoritário de poder.
O conselho do TCU ao governo
O Estado de S. Paulo
Análise da corte expõe fragilidades do
Orçamento e aponta inconsistências estruturais do arcabouço fiscal para cumprir
objetivo de conter trajetória de crescimento da dívida pública
O Tribunal de Contas da União (TCU) avaliou
as receitas e despesas do Orçamento deste ano e calculou que, na melhor das
hipóteses, o governo conseguirá alcançar um déficit primário de R$ 55,3
bilhões. De acordo com a Corte de Contas, a peça conta com receitas muito
otimistas e estimativas de economia de despesas que não parecem viáveis. Para
cumprir a meta de zerar o déficit neste ano, portanto, o governo teria de
contingenciar gastos acima do limite de R$ 23 bilhões.
Questionada, a ministra do Planejamento,
Simone Tebet, disse que sua pasta elaborou o Orçamento com base nas projeções
de receitas apresentadas pelo Ministério da Fazenda em julho do ano passado –
cálculos que foram checados e considerados plausíveis pelos técnicos. Já o
secretário executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, afirmou que o
Orçamento está equilibrado e manifestou confiança de que o governo vai
conseguir cumprir a meta.
Independentemente do discurso oficial do
governo, o relatório do TCU, aprovado pelo plenário de ministros nesta semana,
traz detalhes que mostram que o ceticismo generalizado dos analistas em torno
da meta não tem nada de desarrazoado.
Para este ano, o governo espera uma
arrecadação da ordem de 19,2% do Produto Interno Bruto (PIB), um patamar muito
acima do observado nos últimos anos. No ano passado, as receitas atingiram
cerca de 17,8% do PIB. Para ter uma ideia do tamanho do otimismo do governo,
desde 1997 somente uma vez as receitas superaram essa marca e atingiram 20,2%
do PIB – e isso no ano de 2010, quando a economia crescia a 7,5%.
Os problemas do Orçamento vão muito além da
renúncia com a desoneração da folha de pagamento para alguns setores da
economia, que ensejou a edição de uma desastrada medida provisória após a
derrubada do veto presidencial pelo Congresso. Há também incertezas sobre a
metodologia que o governo usou para estimar a arrecadação que terá com a
tributação dos fundos de alta renda, uma vez que o projeto original sofreu
alterações ao ser aprovado pelo Legislativo.
Não se sabe como o Executivo pretende
economizar R$ 12,5 bilhões na revisão de benefícios pagos pelo Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS), mesmo porque há um estoque de mais de 1
milhão de pedidos de aposentadoria a serem analisados. De forma elegante, o TCU
disse apenas que não foi possível chegar a conclusões sobre “a viabilidade, a
razoabilidade e a factibilidade do valor estimado” – que, tudo indica, não
passa de delírio.
A principal preocupação do TCU, no entanto,
diz respeito aos pilares do próprio arcabouço fiscal. Para o tribunal, o
governo terá necessariamente de rever para baixo o aumento das despesas
primárias se quiser garantir a sustentabilidade da dívida líquida do setor
público nos próximos dez anos.
O atingimento das metas, afinal, não é o
objetivo final do arcabouço, mas um instrumento para conter a curva de
crescimento da dívida e conduzi-la à estabilidade – e, se isso não acontecer
ainda que as metas sejam atingidas, é porque há um problema estrutural na
concepção do arcabouço.
A análise do tribunal também deixa claro o
quanto as convicções perdulárias do presidente Lula da Silva e da maioria dos
membros de seu partido são contraproducentes. Adotar uma política fiscal mais
austera não é um objetivo em si mesmo, mas a melhor maneira de contribuir para
o controle da inflação, para a redução dos juros e para o crescimento
sustentável da economia.
“O reiterado desequilíbrio das contas
públicas e o consequente crescimento/descontrole da dívida se revertem em
pressão inflacionária e na necessidade de manutenção de patamar elevado de taxa
de juros reais, fatores que constituem elevado ônus para a sociedade como um
todo e, em especial, para as classes menos favorecidas”, afirmou o TCU.
Na ânsia de promover o crescimento a qualquer
custo, mesmo que efêmero, parte do governo se opõe a qualquer iniciativa que
promova um controle mínimo de gastos e trabalha para desidratar um arcabouço
que já nasceu frouxo. Ao fim e ao cabo, boicotam a si mesmos.
Bola cantada
O Estado de S. Paulo
Haddad não pode se dizer surpreso nem
decepcionado com a rejeição do Congresso à reoneração
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), disse que o governo se comprometeu a revogar a medida provisória (MP)
que reonerava a folha de pagamento de 17 setores da economia. Segundo ele, o
Executivo deve enviar uma nova MP para revogá-la e restabelecer os efeitos do
projeto de lei que prorrogou a desoneração até o fim de 2027.
Tomado pela autoconfiança de quem teve
praticamente todos os itens de sua agenda aprovados pelo Legislativo, talvez o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenha pensado que venceria o debate sem
dificuldade. Afinal, conquistou apoio para tributar fundos exclusivos e
offshore, que governos anteriores tentaram taxar sem sucesso, e até para
retomar o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
(Carf), extinto pelo Congresso em 2020.
Foram muitos os equívocos que o ministro
cometeu ao longo desse debate. O primeiro foi ignorar as sinalizações enviadas
pelo Legislativo desde o início da tramitação da proposta, aprovada por 14
votos a 3 na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado em junho. Bastaria
que um senador da base tivesse feito um requerimento para submeter o tema ao
plenário de senadores, o que ao menos retardaria a tramitação do projeto, mas
nem isso ocorreu.
A proposta seguiu então diretamente para a
Câmara, onde o governo acreditava que o clima seria mais favorável – não se
sabe baseado em quê. Entre os deputados, a proposta foi muito bem recebida,
sobretudo porque incluía entre os contemplados pela desoneração municípios de
menor porte, com enormes dificuldades para pagar suas contas, na véspera de um
ano eleitoral. Quando o texto voltou ao Senado, a aprovação se deu de maneira
simbólica, sinônimo de consenso no Legislativo.
Se quisesse ter alguma chance nesse
imbróglio, o governo poderia ter negociado um prazo menor para a extensão da
medida, de dois anos em vez dos quatro aprovados. Poderia, também, ter retirado
os municípios em troca de um aumento nos repasses via fundos constitucionais.
Vetar integralmente a proposta era a pior das
alternativas, pois o veto seria facilmente derrubado, como de fato foi. Ao
editar a MP, Haddad errou novamente, mas, sobretudo, na forma. Por mais justos
que fossem seus argumentos em favor da reoneração da folha de pagamento, jamais
poderia ter editado a proposta sem avisar previamente as lideranças do
Congresso. Foi, inclusive, alertado pela ala política do governo sobre o enorme
risco de ser derrotado.
O governo ainda tentará convencer os
parlamentares a apoiar a reoneração gradual, mas Pacheco já sinalizou que ela
valeria apenas em 2028. Além disso, cobrou o envio de projetos de lei que
tratem dos temas que a MP reunia em separado, como os benefícios ao setor de
eventos e os limites ao uso de créditos tributários obtidos por empresas em
disputas judiciais.
Haddad não pode se dizer surpreso nem decepcionado. Afinal, Pacheco ainda teve a delicadeza de não devolver a MP ao Executivo, a despeito da enorme pressão que sofreu de colegas que viram na proposta uma afronta ao Congresso.
Eventos extremos e o novo normal
Correio Braziliense
Sob o risco de devastação, o Brasil tropical
e de proporções continentais não pode contar apenas com bênção, sorte e
caridade. Os tempos são de efetividade climática
Passada a fase mais crítica da pandemia da
covid-19, uma das principais preocupações era com o chamado novo normal. Havia
um planeta tentando sair da excepcionalidade e voltar ao corriqueiro após ser
assolado por um vírus. O desafio parece estar de volta. Agora, devido a uma
ameaça visível e de consequências dramáticas. Não à toa, a Organização das
Nações Unidas usa expressões como "catástrofe" e
"apocalipse" para se referir ao atual momento de "fervimento
global" e tem enfatizado que estar pronto para responder aos extremos
climáticos precisa fazer parte da agenda de todos os governos.
Como quando surgiu o coronavírus, ninguém
está imune à nova crise. Agora, os Estados Unidos — que, em julho, chegaram a
registrar calor de quase 50ºC — lidam com uma onda de frio extremo, próximo aos
40ºC negativos, que colocou em alerta 20% da população, estima o Serviço
Meteorológico Nacional. Na outra ponta do mapa e do ranking de desenvolvimento
econômico e social, Zâmbia enfrenta um preocupante surto de cólera pela
escassez de água potável — a combinação de fortes chuvas em razão da crise
climática e pouco saneamento básico resultou em grande contaminação do recurso
hídrico e na possibilidade de o país africano estar diante da pior crise da
doença contagiosa desde 1977.
O Brasil, assim como a Zâmbia, tem o desafio
de lidar com a junção de suas debilidades estruturais e o aumento dos extremos
climáticos. Quanto ao problema mais antigo, há, no mínimo, lentidão para
enfrentá-lo. Levantamento divulgado, nesta semana, pela Casa Civil da
Presidência da República, por exemplo, indica que 34% dos municípios
brasileiros (1.942) têm parte da população em áreas suscetíveis a
deslizamentos, enxurradas e enchentes. São quase 9 milhões de pessoas morando
nesse cenário — que, em 2012, já se revelava ao governo federal. À época,
relatório também da Casa Civil indicava que moradores de 821 municípios viviam
essa realidade, responsável por 94% das mortes por desastres no país.
Se foram feitas, medidas para ocupação segura
de áreas urbanas, contenção de encostas, mitigação de inundações e coleta
regular de lixo, entre outras respostas indicadas, parecem não ter surtido
efeito. Isso porque o número de municípios com pessoas nessa situação de risco
aumentou 136% de um documento para outro e, nesse período, os desastres
ambientais assolaram muitas dessas regiões repetidamente — inclusive, em
estações já conhecidas. Neste novo normal com extremos climáticos, temos,
portanto, mais áreas fragilizadas pela ineficiência histórica em políticas de
prevenção.
E essa nova ameaça não é tão recente assim. O
mundo fechou 2023 com as maiores temperaturas registradas nos últimos 100 mil
anos, segundo o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus. O mesmo observatório
europeu alertou, no começo de 2023, que os últimos oito anos anteriores tinham
sido de calor recorde. Há 32 anos, a Eco 92, conferência da ONU sobre o meio
ambiente que aconteceu no Rio de Janeiro, já indicava a necessidade de o
planeta adotar uma lógica de desenvolvimento sustentável para sobreviver.
É difícil, dessa forma, colocar apenas na conta do aquecimento global as mortes e as destruições que deixam os brasileiros apreensivos há meses. Segundo o secretário-geral da ONU, António Guterres, o que está acontecendo agora é apenas uma "prévia do futuro catastrófico" reservado ao planeta caso não paremos de "queimá-lo". Sob o risco de devastação, o Brasil tropical e de proporções continentais não pode contar apenas com bênção, sorte e caridade. Os tempos são de efetividade climática.
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