Correio Braziliense
O mundo assiste apreensivo a mais um capítulo
da disputa entre interesses nacionais e a governança global. Com consequências
imprevisíveis
A política tarifária voltou ao centro do
debate econômico com a proposta do presidente dos Estados Unidos Donald Trump
de aplicar "tarifas recíprocas" como instrumento de correção de
desequilíbrios comerciais. O que se apresenta como uma medida de justiça
comercial é, na verdade, uma ruptura com as regras do sistema multilateral de
comércio. Em vez de se basear em práticas desleais reconhecidas, como dumping
ou subsídios, Trump propõe tarifas proporcionais ao déficit comercial dos EUA
com cada país, desconsiderando os fundamentos econômicos que explicam esses
desequilíbrios.
Essa abordagem, além de tecnicamente insustentável, ignora os fundamentos da interdependência econômica global e desconsidera as complexas cadeias de valor em que os EUA estão inseridos. Elas não apenas carecem de base jurídica nos tratados da Organização Mundial do Comércio (OMC), como introduzem um critério de aplicação profundamente equivocado. Em vez de se basearem na tarifa média efetiva aplicada por seus parceiros comerciais — como é de praxe nas avaliações técnicas multilaterais —, essas tarifas se pautam unicamente no déficit comercial bilateral dos EUA com cada país.
A lógica é simplificada: quanto maior o
déficit, maior será a tarifa. Em termos práticos, se os Estados Unidos importam
US$ 200 bilhões de um país e exportam apenas US$ 100 bilhões, Trump sugere
aplicar uma tarifa de 50% sobre as importações, para "equalizar" o
volume de comércio. É uma fórmula aritmeticamente direta, mas economicamente
absurda, pois desconsidera as causas estruturais dos deficits, como
especialização produtiva, consumo doméstico, taxas de câmbio, acordos regionais
e inserção em cadeias globais de valor.
Essa estratégia também ignora as regras
fundamentais da OMC, como a cláusula de nação mais favorecida (NMF) e o
princípio do tratamento nacional. E reduz o comércio internacional a uma
relação de soma zero, contrariando os fundamentos básicos da lógica do ganho
mútuo que sustenta o sistema multilateral desde Bretton Woods.
Essa abordagem, além de juridicamente
questionável, pode provocar efeitos adversos, como inflação, desorganização de
cadeias produtivas e escalada retaliatória. Estima-se que as tarifas podem
aumentar a inflação americana em até 0,7% ao ano, pressionando os consumidores
e as indústrias locais. Países como China, Canadá, União Europeia já se
preparam para responder com contramedidas que vão desde a limitação de
exportações estratégicas até projetos de lei que preveem a adoção de tarifas
por reciprocidade.
O Brasil, por sua vez, aprovou o Projeto de
Lei nº 2088/2023 (PL da Reciprocidade Econômica), que visa permitir o aumento
do imposto de importação como medida de retaliação quando o país for alvo de
tratamento desigual em termos de barreiras tarifárias. A proposta prevê que,
sempre que um produto nosso for sobretaxado por um parceiro comercial de
maneira incompatível com os padrões internacionais, poderemos aplicar tarifas
equivalentes sobre produtos originários daquele país.
O futuro é incerto e perigoso. Ao dobrar a
aposta pela guerra tarifária adotada no primeiro mandato (2017-2021) e
recrudescida no alvorecer deste segundo mandato, Trump coloca em jogo não
apenas o saldo comercial dos EUA, mas o próprio funcionamento do sistema
internacional de comércio. As medidas do governo americano marcam uma guinada
unilateralista com potencial de corroer os pilares do multilateralismo e da
previsibilidade que sustentam o comércio global desde o pós-guerra.
Não há respostas fáceis. O Brasil, até o
momento, mesmo com a aprovação do PL da Reciprocidade, adota uma postura de
cautela, optando por negociar e eventualmente recorrer ao mecanismo de solução
de controvérsias da OMC. Contudo, as incertezas são tantas que o comércio
internacional vive, hoje, um verdadeiro "dia de cada vez".
Resta saber se a pressão de grandes empresas
— inclusive de aliados políticos de Trump, como Elon Musk, cujas companhias já
amargam bilhões de dólares em perdas — será suficiente para reverter ou ao
menos moderar essa nova onda protecionista. Enquanto essas questões seguem sem
solução, o mundo assiste apreensivo a mais um capítulo da disputa entre
interesses nacionais e a governança global. Com consequências
imprevisíveis.
*Doutor em direito internacional (USP), mestre em direito econômico (UFPB) e professor do MBA de Relações Governamentais da FGV
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