O Estado de S. Paulo
Não, isso não é democracia. Isso é convulsão
institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada
Agora, quem usa a palavra “fascismo” para se referir ao governo de Donald Trump é Robert B. Reich, um intelectual sem nenhum histórico de surtos esquerdistas. Longe disso, Reich tem uma trajetória de ponderada coerência. Advogado, foi secretário do Trabalho (cargo equivalente ao de ministro no Brasil) durante o governo de Bill Clinton, de 1993 a 1997. Era cordial e atencioso no trato com jornalistas – brasileiros, inclusive. Reich foi também professor de Políticas Públicas em Berkeley. Hoje, aposentado, segue em destaque como autor de livros, alguns deles best-sellers e como articulista frequente em jornais e revistas como The New York Times, The New Yorker, The Washington Post, The Wall Street Journal, e The Atlantic. Sua voz não costuma ceder a radicalismos e destemperos.
Pois esse sujeito, lúcido e sensato, publicou
no início do mês, em sua newsletter com mais de um milhão de assinantes, uma
crítica ácida à lei orçamentária que o presidente dos Estados Unidos conseguiu
aprovar no Congresso. Reich diz que o pacote vai tornar “os Estados Unidos mais
cruéis” do que já são. Não é para menos. A peça orçamentária retira mais de US$
1 trilhão do Medicaid (assistência médica pública). Até 2034, vai condenar ao
abandono um contingente de 12 milhões de americanos. Além disso, providencia
uma substanciosa redução de impostos para os mais ricos e turbina o caixa das
ações militares de combate à imigração.
O sadismo é tanto que Robert Reich compara
Donald Trump com os chamados “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin,
Mussolini e Franco”, e conclui: “O fato de uma legislação tão regressiva,
perigosa, gigantesca e impopular ter sido aprovada no Congresso demonstra o
quanto Trump arrastou os Estados Unidos para o fascismo moderno.” O parlamento
abaixa a cabeça à prepotência do Executivo. A Suprema Corte, pelo que se vê,
tomará caminho parecido. Fascismo é a palavra.
Não foi por falta de aviso. Há cinco anos,
num longo artigo publicado no New York Review of Books, Sarah Churchwell,
professora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Londres,
definiu, logo no título, o resumo do primeiro governo Trump: “Fascismo
americano: aconteceu aqui”.
Depois de registrar que o presidente andara
posando com uma Bíblia na mão, Bíblia que nunca leu, a autora lembrou um velho
ditado: “Quando o fascismo chegar à América, estará envolto na bandeira e
carregando uma cruz”. Ela alertou que a frase, comumente atribuída a Sinclair
Lewis, tem sua origem mais provável nos discursos de James Waterman Wise, filho
do rabino Stephen Wise. Há quase um século, James Wise avistou o perigo e
antecipou: o fascismo chegaria às terras do Tio Sam “embrulhado na bandeira
americana ou em um jornal de Hearst”.
William Randolph Hearst, ganancioso e
narcisista, foi o magnata da imprensa retratado com genial mordacidade no filme
Cidadão Kane, de Orson Welles, lançado em 1941. Aos olhos de Wise, a América de
Hearst desejava o fascismo, mas de um tipo diferente. Bingo: no paraíso das
celebridades, do consumismo pantagruélico, do entretenimento fútil e do glamour
aloirado, a tintura capilar de Marilyn Monroe ganhou uma estranha ressurreição
sobre o cocuruto de Donald Trump e as piores vocações autocráticas encontraram seu
ponto de equilíbrio – um equilíbrio meio desequilibrado, por definição.
Há algo de imperialista na fórmula, como
comprovam as ordens do inquilino da Casa Branca para que fossem revogados os
vistos de ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os Estados Unidos,
hoje, assumem a forma de um regime arrogante que confere ou retira autorizações
de viagem não mais segundo normas impessoais, como recomenda o melhor Direito
Internacional, mas segundo as manias irracionais do chefe. Absolutismo é pouco.
O que estamos vendo lá é um fascismo tipo exportação.
Muitas outras características trumpeteiras
ecoam os “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e
Franco”. O imperador blonde faz uso do aparato policial público para perseguir
desafetos privados, copiando práticas adotadas do nazismo e do fascismo
históricos. Em seu livro clássico Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt
apontou esse traço distintivo quando descreveu as ditaduras do Duce, na Itália,
e do Führer, na Alemanha. Trump, hoje em feitio desarvorado, replica o mesmo
traço: mobiliza tropas estatais para reprimir e prender estudantes desarmados,
ameaça escritórios de advocacia que abracem causas incômodas aos seus
interesses e veta a presença dos jornais de que não gosta na cobertura dos atos
de governo.
Não, isso não é democracia. Isso não é nem
mesmo um autoritarismo que procura se disfarçar de democracia. Isso é convulsão
institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada. Isso é um poder
que, de forma consciente, deliberada e ostensiva, dispara ataques sucessivos
contra as democracias organizadas do mundo. O Tio Sam empunha o fascio e o
Brasil é só mais uma de suas vítimas. O estrago político será maior do que o
descalabro econômico.
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