quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Os nababos e o Estado sustentável, por Felipe Salto

O Estado de S. Paulo

A responsabilidade fiscal é a chave para crescer e fortalecer a responsabilidade social

Os críticos do ajuste fiscal estrutural penduram-se numa falácia. A busca da sustentabilidade das contas públicas não equivale a perseguir uma espécie de Estado mínimo. O equilíbrio fiscal é uma condição necessária, embora insuficiente, para colher crescimento e prosperidade.

A “Constituição Cidadã” revela um pacto social amplo em garantias de direitos, das quais derivam políticas públicas importantes. Esse modelo de Estado de bem-estar social não está em questão. A discussão de relevo é como financiá-lo, daqui em diante, dadas as restrições orçamentárias, isto é, dados os altos níveis de endividamento e de carga tributária.

A saída passa pela surrada discussão da eficiência. Falta, em boa medida, um choque de gestão. Gastar melhor o recurso disponível, reduzir excessos, descontinuar programas inúteis e caros, acabar com regras ultrapassadas de correção automática de orçamentos de áreas específicas e devolver ao processo de discussão da alocação dos recursos públicos a sua essência democrática.

O processo orçamentário transformou-se numa feira livre de emendas parlamentares combinada com um piloto automático para o restante dos principais gastos, marcados pelas vinculações e indexações. Sim, as vinculações exerceram papel importante para garantir recursos mínimos a áreas como saúde e educação, mas isso não significa que tal modelo seja o ideal para frente. Essas vacas sagradas precisam sair de cena.

Não se trata, apenas, de rediscutir regras fiscais. Já há normas aos montes. Faltam o compromisso político e o espalhamento do espírito da responsabilidade fiscal. Ela é a chave para crescer e fortalecer a responsabilidade social.

O ministro Fernando Haddad enfrenta resistência para um ajuste de maior fôlego. Aprovou uma regra bastante razoável, o novo arcabouço fiscal, baseada em controle do crescimento do gasto público e aumento do resultado primário (receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida).

Aliás, é curioso notar que os políticos costumam aprovar novas regras fiscais propostas por governos de diferentes matizes. Foi assim com o teto de gastos, no governo Michel Temer e com a Lei de Responsabilidade Fiscal, no governo FHC. O diabo está no enfrentamento dos problemas reais, quando da aplicação das regras.

A chiadeira começa quando se propõe a contenção do gasto ou a elevação de receita para cumprir a regra aprovada. A brasa para as graúdas sardinhas é disputada a tapas. O interesse público, por vezes, fica em último plano.

O exemplo da Medida Provisória n.º 1.303 é didático. Ela preconizava conter o gasto do Comprev (despesas previdenciárias ocasionadas por Estados e municípios que usam o INSS), da educação, do auxílio-doença e do seguro-defeso. O Congresso não quis saber. Desprezou tudo, sob diferentes alegações (e pressões).

O governo também apresentou, por meio do deputado José Guimarães, uma proposta para cortar os gastos tributários. Esse projeto tramita no Congresso, mas as lideranças não parecem empolgadas. Os donos das benesses tributárias estão a postos para protegê-las com unhas e dentes.

Muitos políticos ainda comungam com a falaciosa ideia de que o ajuste fiscal não gera prosperidade, mas recessão. Esse argumento vale tanto quanto a falácia do Estado mínimo.

Por sua vez, certos defensores do ajuste fiscal pecam por falar em redução de despesas, quando o que se precisa é conter seu crescimento em relação ao Produto Interno Bruto. Já os gastadores, bem ou mal-intencionados, aproveitam a atrapalhação do outro lado para nadar de braçada, vendendo terreno na lua, acusando que o ajuste fiscal equivaleria a reduzir o Estado e a acabar com as conquistas da “Constituição Cidadã”.

Vamo-nos entender: é preciso gastar com políticas sociais bem-acabadas, previdência social digna, educação, saúde, segurança, etc. Mas não há mais espaço para o gasto ineficiente; ele não chega na ponta e pressiona a dívida pública.

O Estado deve ser sustentável, financeira e economicamente, porque este é o único caminho para garantir, precisamente, maior volume de recursos para ampliar políticas públicas de boa qualidade e para criar tantas outras. O tamanho ótimo do endividamento é função das condições de sustentabilidade. A dívida já se aproxima de 80% do PIB, nível escancaradamente insustentável, porque os juros reais superam – e muito – o crescimento econômico.

Falta quem defenda, na arena política, o caminho do ajuste fiscal como válvula principal da prosperidade e da preservação do Estado de bem-estar social garantidor de amplos direitos sociais, políticos, econômicos, ambientais e civis. Isso só será possível se eliminarmos os vazamentos, fecharmos os ralos e contivermos a alta real das despesas.

O Congresso, hoje, dá de ombros às boas iniciativas de Haddad para segurar o gasto e o acusa de elevar impostos. Ao contrário, ele aponta para o caminho correto, já que busca tocar a ferida aberta da injustiça tributária. A hipocrisia é o mal maior de certos atores. Tudo isso se tempera com o poderio econômico jamais visto no Orçamento, refletido em emendas parlamentares dignas de verdadeiros nababos.

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