Entrevista: Luiz Werneck Vianna
Revista Política Democrática Nº 24
Luiz Werneck Vianna é um “clássico moderno”. Egresso da cultura comunista – do comunismo do antigo PCB –, o cientista social e político dirige-se, no entanto, a todas as forças e personalidades da cena pública, no melhor sentido daquela cultura, e isto desde o seu primeiro livro, Liberalismo e sindicato no Brasil. Os traços da modernização conservadora, ou da revolução-restauração, que assinalam a reconstrução da vida republicana, particularmente a partir de 1930, encontram uma formulação cristalina já neste livro.
Werneck Vianna ajudou assim a compreender, “no calor da hora”, ainda na década de 1970, que a alternativa à incorporação autoritária dos setores subalternos somente poderia ocorrer no Brasil por meio de uma efetiva democratização da vida nacional. Em cada texto que compõe sua já reconhecida obra, política e cultura, ação prática e orientação acadêmica de alto nível se dão as mãos e se fecundam mutuamente.
Este, de resto, o sentido último das “análises de conjuntura” em função das quais o autor tornou-se particularmente conhecido. Análises que, mesmo atenta ao movimento singular dos atores e das forças em campo, sempre se inserem numa “teoria do Brasil” mais ampla, sem que isso em nenhum momento signifique a tentação de deduzir de uma teoria ou doutrina abstrata a realidade necessariamente fluida e contingente em que se mexem aqueles mesmos atores.
Não se trata de concordar com qualquer um dos cenários específicos que estas análises propõem ou propuseram no tempo em que foram formuladas, mas de reconhecer que, pelo arcabouço metodológico e pela amplidão da visão de Brasil que supõem, constituem igualmente peças clássicas no seu gênero, combinando dialeticamente os movimentos lentos da “estrutura” e o teatro vivo em que atuam personagens de carne e osso.
A atenção às diferentes figuras do intelectual e, mais recentemente, ao papel do direito nas sociedades contemporâneas, novamente a partir da circunstância brasileira, caracteriza a fase mais recente da produção de Werneck Vianna. O processo de conversão de interesses em direitos, numa consolidação e ampliação permanente do horizonte democrático do nosso tempo, está no centro das preocupações mais recentes do nosso autor; preocupações que, pela própria natureza, só aparentemente se distanciam da política prática e da própria vida dos cidadãos comuns, uma vez que, através das indispensáveis mediações, articulam-se com os processos contemporâneos de mudança social, capazes, no caso brasileiro, de dar vida e animar uma civilização original e profundamente democrática.
Este aspecto “otimista” do pensamento de Werneck Vianna não tem nada de ingênuo; pelo contrário, talvez seja o mais significativo indicador, hoje, da possibilidade de reconciliação não conservadora entre esquerda e nação, entre intelectuais e cultura, entre “subalternos” e história brasileira, numa chave distinta daquela da modernização autoritária do Estado e da sociedade. As inquietações e dúvidas a respeito do caminho brasileiro para a construção e consolidação da democracia vêm alimentando permanentemente esse “nosso clássico” e, com certeza, compõem o núcleo dessa entrevista, concedida a Caetano Araújo e Luiz Sérgio Henriques.
Acostumamo-nos a ver a sua obra como um conjunto muito coerente de proposições e mesmo de sugestões de método. Gostaríamos de começar falando de Liberalismo e sindicato e do papel específico que neste livro teve sua particular “expropriação” de conceitos de Lenin e Gramsci.
Sua pergunta sobre meu método de trabalho exige de mim uma consciência que desconfio não ter. Vou, então, contar como trabalho a partir de um exemplo. Na verdade, acumulo muita informação fática. Assim, no final dos anos 1960 e início dos 70, quando preparava Liberalismo e sindicato no Brasil, defrontei-me com o problema da Revolução de 1930, e aí me detive. Não poderia prosseguir com a elaboração do estudo sem apresentar uma explicação persuasiva sobre aquele fato de importância capital para uma moderna configuração do mundo trabalho entre nós. Li tudo o que, naquela hora, me era possível ler, tentando uma interpretação que viesse a emprestar. inteligibilidade àqueles fatos, dados, eventos singulares que desafiavam a explicação corrente. De resto, estou sempre consultando os grandes intérpretes brasileiros, testando os conceitos elaborados pela galeria dos clássicos, buscando chaves que me permitam triunfar sobre um cipoal de fatos aparentemente “erráticos”.
Portanto, desconfio que o importante em todo o procedimento de método seja cotejar a acumulação de informações com a bibliografia existente. Somente desse modo sabemos se as explicações correntes dão conta dos problemas que nos atormentam. Sobre 1930, por exemplo, a bibliografia existente no período mencionado, nas décadas de 1960 e 70, “patinava” muito. Tínhamos uma noção da autonomia do político, derivada de certa leitura do Poulantzas, que foi dominante na época. Havia também certas interpretações conceituais a respeito de categorias sociais determinadas: por exemplo, as Forças Armadas poderiam ser consideradas um fenômeno de camadas médias, ou seriam uma burocracia strictu sensu operando a partir de sua própria lógica? Houve uma literatura muito abundante sobre isso, e essa biografia não me satisfazia.
Vocês me perguntam também sobre Gramsci. A leitura de Gramsci foi, para mim, para minha geração, uma verdadeira iluminação, entre outras coisas porque havia algo em comum entre a Itália e o Brasil: o corporativismo, que foi uma ideologia forte e que Gramsci analisa muito bem. Por outro lado, entre nós havia até algum germe de americanismo. Pode não ter sido um tema central, mas também tinha vínculos aqui na nossa sociedade. Antes mesmo de 1930, empresários de São Paulo experimentaram formas de dominação de estilo americano – Jorge Street e outros. Na discussão sobre o trabalho do menor, na discussão sobre a legislação social, o liberalismo dos empresários brasileiros era de estilo americano. Bem, havia nossa vizinhança com os EUA. Mas penso que essa vizinhança não era apenas geográfica. Havia uma proximidade real entre os EUA e o sentido da política getuliana, que era o de desenvolver novas formas organizacionais. A vinda de Roosevelt para cá não foi um gesto apenas de boa vizinhança, foi uma declaração funda de intenção por parte do governo americano.
Oswaldo Aranha, um americanista, era uma presença estratégica no interior do governo Getúlio. Isso para não falarmos de outros personagens que a história perdeu de vista, como Valentim Bouças, assessor pessoal, nos anos 1930, em matéria econômica de Vargas, mais tarde personalidade relevante na criação da IBM no país. Esse era claramente do “partido” americano.
Revista Política Democrática Nº 24
Luiz Werneck Vianna é um “clássico moderno”. Egresso da cultura comunista – do comunismo do antigo PCB –, o cientista social e político dirige-se, no entanto, a todas as forças e personalidades da cena pública, no melhor sentido daquela cultura, e isto desde o seu primeiro livro, Liberalismo e sindicato no Brasil. Os traços da modernização conservadora, ou da revolução-restauração, que assinalam a reconstrução da vida republicana, particularmente a partir de 1930, encontram uma formulação cristalina já neste livro.
Werneck Vianna ajudou assim a compreender, “no calor da hora”, ainda na década de 1970, que a alternativa à incorporação autoritária dos setores subalternos somente poderia ocorrer no Brasil por meio de uma efetiva democratização da vida nacional. Em cada texto que compõe sua já reconhecida obra, política e cultura, ação prática e orientação acadêmica de alto nível se dão as mãos e se fecundam mutuamente.
Este, de resto, o sentido último das “análises de conjuntura” em função das quais o autor tornou-se particularmente conhecido. Análises que, mesmo atenta ao movimento singular dos atores e das forças em campo, sempre se inserem numa “teoria do Brasil” mais ampla, sem que isso em nenhum momento signifique a tentação de deduzir de uma teoria ou doutrina abstrata a realidade necessariamente fluida e contingente em que se mexem aqueles mesmos atores.
Não se trata de concordar com qualquer um dos cenários específicos que estas análises propõem ou propuseram no tempo em que foram formuladas, mas de reconhecer que, pelo arcabouço metodológico e pela amplidão da visão de Brasil que supõem, constituem igualmente peças clássicas no seu gênero, combinando dialeticamente os movimentos lentos da “estrutura” e o teatro vivo em que atuam personagens de carne e osso.
A atenção às diferentes figuras do intelectual e, mais recentemente, ao papel do direito nas sociedades contemporâneas, novamente a partir da circunstância brasileira, caracteriza a fase mais recente da produção de Werneck Vianna. O processo de conversão de interesses em direitos, numa consolidação e ampliação permanente do horizonte democrático do nosso tempo, está no centro das preocupações mais recentes do nosso autor; preocupações que, pela própria natureza, só aparentemente se distanciam da política prática e da própria vida dos cidadãos comuns, uma vez que, através das indispensáveis mediações, articulam-se com os processos contemporâneos de mudança social, capazes, no caso brasileiro, de dar vida e animar uma civilização original e profundamente democrática.
Este aspecto “otimista” do pensamento de Werneck Vianna não tem nada de ingênuo; pelo contrário, talvez seja o mais significativo indicador, hoje, da possibilidade de reconciliação não conservadora entre esquerda e nação, entre intelectuais e cultura, entre “subalternos” e história brasileira, numa chave distinta daquela da modernização autoritária do Estado e da sociedade. As inquietações e dúvidas a respeito do caminho brasileiro para a construção e consolidação da democracia vêm alimentando permanentemente esse “nosso clássico” e, com certeza, compõem o núcleo dessa entrevista, concedida a Caetano Araújo e Luiz Sérgio Henriques.
Acostumamo-nos a ver a sua obra como um conjunto muito coerente de proposições e mesmo de sugestões de método. Gostaríamos de começar falando de Liberalismo e sindicato e do papel específico que neste livro teve sua particular “expropriação” de conceitos de Lenin e Gramsci.
Sua pergunta sobre meu método de trabalho exige de mim uma consciência que desconfio não ter. Vou, então, contar como trabalho a partir de um exemplo. Na verdade, acumulo muita informação fática. Assim, no final dos anos 1960 e início dos 70, quando preparava Liberalismo e sindicato no Brasil, defrontei-me com o problema da Revolução de 1930, e aí me detive. Não poderia prosseguir com a elaboração do estudo sem apresentar uma explicação persuasiva sobre aquele fato de importância capital para uma moderna configuração do mundo trabalho entre nós. Li tudo o que, naquela hora, me era possível ler, tentando uma interpretação que viesse a emprestar. inteligibilidade àqueles fatos, dados, eventos singulares que desafiavam a explicação corrente. De resto, estou sempre consultando os grandes intérpretes brasileiros, testando os conceitos elaborados pela galeria dos clássicos, buscando chaves que me permitam triunfar sobre um cipoal de fatos aparentemente “erráticos”.
Portanto, desconfio que o importante em todo o procedimento de método seja cotejar a acumulação de informações com a bibliografia existente. Somente desse modo sabemos se as explicações correntes dão conta dos problemas que nos atormentam. Sobre 1930, por exemplo, a bibliografia existente no período mencionado, nas décadas de 1960 e 70, “patinava” muito. Tínhamos uma noção da autonomia do político, derivada de certa leitura do Poulantzas, que foi dominante na época. Havia também certas interpretações conceituais a respeito de categorias sociais determinadas: por exemplo, as Forças Armadas poderiam ser consideradas um fenômeno de camadas médias, ou seriam uma burocracia strictu sensu operando a partir de sua própria lógica? Houve uma literatura muito abundante sobre isso, e essa biografia não me satisfazia.
Vocês me perguntam também sobre Gramsci. A leitura de Gramsci foi, para mim, para minha geração, uma verdadeira iluminação, entre outras coisas porque havia algo em comum entre a Itália e o Brasil: o corporativismo, que foi uma ideologia forte e que Gramsci analisa muito bem. Por outro lado, entre nós havia até algum germe de americanismo. Pode não ter sido um tema central, mas também tinha vínculos aqui na nossa sociedade. Antes mesmo de 1930, empresários de São Paulo experimentaram formas de dominação de estilo americano – Jorge Street e outros. Na discussão sobre o trabalho do menor, na discussão sobre a legislação social, o liberalismo dos empresários brasileiros era de estilo americano. Bem, havia nossa vizinhança com os EUA. Mas penso que essa vizinhança não era apenas geográfica. Havia uma proximidade real entre os EUA e o sentido da política getuliana, que era o de desenvolver novas formas organizacionais. A vinda de Roosevelt para cá não foi um gesto apenas de boa vizinhança, foi uma declaração funda de intenção por parte do governo americano.
Oswaldo Aranha, um americanista, era uma presença estratégica no interior do governo Getúlio. Isso para não falarmos de outros personagens que a história perdeu de vista, como Valentim Bouças, assessor pessoal, nos anos 1930, em matéria econômica de Vargas, mais tarde personalidade relevante na criação da IBM no país. Esse era claramente do “partido” americano.
Com tudo isso, encontramos aqui a ideia de realizar a americanização “por cima”, que foi uma das hipóteses contempladas por Gramsci. Por isso não fiz exatamente uma importação de conceitos. Eu apenas percebi que alguém tinha estudado uma conjunção fática muito semelhante à que me preocupava e tinha chegado a uma explicação convincente, embora não entendida pelos seus contemporâneos e nem mesmo por muitos que vieram depois, até mesmo nos anos 1970. Tanto assim que o veio principal da leitura de Gramsci, naquele momento, ainda nos anos 1970, enfatizava a guerra de movimento, a guerra de posição, categorias que estavam orientadas por um outro momento histórico.
Acho que é assim que opero – eu não trago previamente o conceito. Uma vez, há muito tempo, um colega marxista me desafiou com a seguinte observação: “Você, nos seus textos, cita muito pouco Marx”. Eu pensei: “É verdade, mas tudo ali é Marx”.
Sobretudo a possibilidade da inteligibilidade do real. Neste caso do “real concreto”, a melhor orientação que encontrava era a do Lenin. Mas o Lenin que me guiou no período em que escrevi Liberalismo e sindicato no Brasil, o Lenin determinante para mim, naquele contexto, foi o Lenin sociólogo, o dos textos de sociologia agrária, o autor de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Foi na macrossociologia de Lenin, construída com precisão cirúrgica na virada do século XIX para o XX, que fui buscar duas categorias muito poderosas para entender o nosso caso, para apreciar o desenvolvimento capitalista: o modelo americano e o prussiano. E o que é que nós tínhamos aqui para explicar os anos 1930? De fato, 1930 era um enigma: como é que os homens do latifúndio do Rio Grande do Sul comandam o processo revolucionário que leva à industrialização do país, e o fazem sem romper com a estrutura agrária, conservando a coalizão empresários industriais-elites agrárias, como na Alemanha ou no Japão? O que faltava, a meu ver, na nossa bibliografia, era alargar a galeria de casos elencados, porque, na verdade, nossa dificuldade derivava da existência de dois paradigmas apenas – o da Revolução Francesa e o da Revolução Americana, sem que nos encaixássemos em nenhum dos dois.
A leitura de Gramsci, para voltarmos a ele, se torna ainda mais relevante porque alarga o elenco de casos a serem comparados. Não dá para entender a revolução brasileira na chave francesa ou na chave americana. Ela tem outra conotação, tem outra forma de qualificação. E nela o mundo agrário é essencial, não como algo que vai ser reduzido, que vai ser enfrentado e abatido, mas como elemento partícipe do processo da modernização. Quer dizer, uma modernização feita com a preservação de setores retardatários das elites. E o interessante é que essa apropriação de Gramsci se dava em um momento em que era lançado o livro de Barrington Moore, Origens sociais da ditadura e da democracia, que, afinal, embora trabalhando em continente próprio, com categorias e conceitos próprios, visão de mundo própria, se avizinhava das construções marxistas, das construções leninistas sobre a questão agrária. Não sei se foi por isso, pela idoneidade de uma perspectiva como a de Moore, pelo fato de o argumento não estar comprometido com autores apenas marxistas, mas a verdade é que minha interpretação teve bastante aceitação, na época. Outros também trouxeram à tona o mesmo ponto, como o Luciano Martins, o primeiro de todos, na tese defendida na Sorbonne, o Octavio Velho, em O capitalismo autoritário e o campesinato, e, mais à frente, a Elisa Reis. Houve um conjunto de trabalhos voltados para esta nova direção. A minha marca em relação a esses trabalhos é apenas uma: é que eu utilizei Barrington Moore mais como uma escora de proteção em relação à cultura da época, mas os alicerces visíveis do meu argumento são Lenin e Gramsci.
Continuemos com Gramsci. Você vê em 1930, e em vários outros momentos cruciais da história brasileira, um andamento do tipo revolução passiva, de revolução-restauração, em que o ator se vê como que ultrapassado pelos fatos e o processo político parece caminhar por si mesmo. E, num mesmo movimento, parece tomar o conceito de revolução passiva não só como critério de interpretação, mas também como programa político, a ser adotado por atores mais realistas e sábios. Não seria uma forma sofisticada de transformar necessidade em virtude?
Na discussão sobre o caso italiano, em que Cavour é o vencedor e Mazzini o perdedor, Gramsci afirma que, se Mazzini fosse um político realista, ele teria desconstruído a armação passiva do Risorgimento. Teria feito, alternativamente, com que ela fosse menos onerosa para as classes subalternas, com que houvesse rendimentos de outra natureza. Ora, essa não foi uma leitura indevida de Gramsci, produzida artificialmente por mim. Gramsci, nessa hora crucial, em que Cavour acaba de ganhar, afirma que, se Mazzini tivesse agido de modo diferente, não teria perdido tanto. Teria perdido, inevitavelmente, mas não tanto. Eu me refiro a isso quando enfatizo o tema da revolução passiva.
Trago a discussão para a nossa história e para perto de nós: estamos num momento muito particular, e isso vale para o mundo inteiro, eu acho, mas, seguramente, para o Brasil: tem-se uma pesada tradição autoritária na política, uma sociedade imobilizada politicamente, mas, de outro lado, livre, inteiramente livre na sua sociabilidade, sem nenhum controle, sem formas explícitas de controle. O que faz entender que, na medida em que se luta pela democratização da política e de suas instituições, esse movimento maciço que trabalha a base da sociedade vai ganhar maiores posições. E isto numa dimensão “revolucionária”, importando mudanças de vulto de posições no interior da sociedade. Uma coisa por aí, algo que decorre até de uma observação puramente demográfica. Além disso, esse mundo é afirmador de direitos e traz com ele novos interesses. Então, na medida em que você encontrar passagem e legitimação para esses interesses, mesmo que a ordem excludente persista, você vai minando o campo adversário e ganhando terreno molecularmente. Se “Mazzini” agir segundo um cálculo – um Maquiavel da sociedade civil –, senhor da sua circunstância, que não lhe permite uma vitória final, aproveitando as oportunidades para a defesa de sua identidade e dos seus propósitos, ele pode impor ao seu antagonista uma parte da sua agenda enquanto acumula forças para novos avanços, sem que se entregue à passividade. Com isso, ele se credencia a interditar a cooptação dos seus quadros por parte de Cavour.
Na verdade, tudo isso é uma revolução passiva numa escala que Gramsci não pôde conhecer. Todos esses processos são posteriores a ele. Mesmo de forma passiva, nosso país produziu esta imensa mudança de posições, inclusive no tema do gênero, com a emancipação feminina, a chegada da mulher no mercado de trabalho e a perda de controle social em todos os níveis. Também no campo, houve mudanças na relação de propriedade. Então, por que não ser, hoje, um “perdedor” diferente do que foi Mazzini?
Por que não ser um político realista, no nosso caso? Por que não introduzir Maquiavel, que é sempre mobilizado como teórico do Estado, nessa dimensão societal? Diga-se de passagem que, quando eu comecei a estudar o tema do direito, também foi essa a direção. Considerei assim os novos institutos criados pela Constituição e até mesmo antes dela. E começamos a compreender esses institutos e a procurar seguir por esses caminhos. São caminhos de pequenas rupturas.
Acho que é assim que opero – eu não trago previamente o conceito. Uma vez, há muito tempo, um colega marxista me desafiou com a seguinte observação: “Você, nos seus textos, cita muito pouco Marx”. Eu pensei: “É verdade, mas tudo ali é Marx”.
Sobretudo a possibilidade da inteligibilidade do real. Neste caso do “real concreto”, a melhor orientação que encontrava era a do Lenin. Mas o Lenin que me guiou no período em que escrevi Liberalismo e sindicato no Brasil, o Lenin determinante para mim, naquele contexto, foi o Lenin sociólogo, o dos textos de sociologia agrária, o autor de O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Foi na macrossociologia de Lenin, construída com precisão cirúrgica na virada do século XIX para o XX, que fui buscar duas categorias muito poderosas para entender o nosso caso, para apreciar o desenvolvimento capitalista: o modelo americano e o prussiano. E o que é que nós tínhamos aqui para explicar os anos 1930? De fato, 1930 era um enigma: como é que os homens do latifúndio do Rio Grande do Sul comandam o processo revolucionário que leva à industrialização do país, e o fazem sem romper com a estrutura agrária, conservando a coalizão empresários industriais-elites agrárias, como na Alemanha ou no Japão? O que faltava, a meu ver, na nossa bibliografia, era alargar a galeria de casos elencados, porque, na verdade, nossa dificuldade derivava da existência de dois paradigmas apenas – o da Revolução Francesa e o da Revolução Americana, sem que nos encaixássemos em nenhum dos dois.
A leitura de Gramsci, para voltarmos a ele, se torna ainda mais relevante porque alarga o elenco de casos a serem comparados. Não dá para entender a revolução brasileira na chave francesa ou na chave americana. Ela tem outra conotação, tem outra forma de qualificação. E nela o mundo agrário é essencial, não como algo que vai ser reduzido, que vai ser enfrentado e abatido, mas como elemento partícipe do processo da modernização. Quer dizer, uma modernização feita com a preservação de setores retardatários das elites. E o interessante é que essa apropriação de Gramsci se dava em um momento em que era lançado o livro de Barrington Moore, Origens sociais da ditadura e da democracia, que, afinal, embora trabalhando em continente próprio, com categorias e conceitos próprios, visão de mundo própria, se avizinhava das construções marxistas, das construções leninistas sobre a questão agrária. Não sei se foi por isso, pela idoneidade de uma perspectiva como a de Moore, pelo fato de o argumento não estar comprometido com autores apenas marxistas, mas a verdade é que minha interpretação teve bastante aceitação, na época. Outros também trouxeram à tona o mesmo ponto, como o Luciano Martins, o primeiro de todos, na tese defendida na Sorbonne, o Octavio Velho, em O capitalismo autoritário e o campesinato, e, mais à frente, a Elisa Reis. Houve um conjunto de trabalhos voltados para esta nova direção. A minha marca em relação a esses trabalhos é apenas uma: é que eu utilizei Barrington Moore mais como uma escora de proteção em relação à cultura da época, mas os alicerces visíveis do meu argumento são Lenin e Gramsci.
Continuemos com Gramsci. Você vê em 1930, e em vários outros momentos cruciais da história brasileira, um andamento do tipo revolução passiva, de revolução-restauração, em que o ator se vê como que ultrapassado pelos fatos e o processo político parece caminhar por si mesmo. E, num mesmo movimento, parece tomar o conceito de revolução passiva não só como critério de interpretação, mas também como programa político, a ser adotado por atores mais realistas e sábios. Não seria uma forma sofisticada de transformar necessidade em virtude?
Na discussão sobre o caso italiano, em que Cavour é o vencedor e Mazzini o perdedor, Gramsci afirma que, se Mazzini fosse um político realista, ele teria desconstruído a armação passiva do Risorgimento. Teria feito, alternativamente, com que ela fosse menos onerosa para as classes subalternas, com que houvesse rendimentos de outra natureza. Ora, essa não foi uma leitura indevida de Gramsci, produzida artificialmente por mim. Gramsci, nessa hora crucial, em que Cavour acaba de ganhar, afirma que, se Mazzini tivesse agido de modo diferente, não teria perdido tanto. Teria perdido, inevitavelmente, mas não tanto. Eu me refiro a isso quando enfatizo o tema da revolução passiva.
Trago a discussão para a nossa história e para perto de nós: estamos num momento muito particular, e isso vale para o mundo inteiro, eu acho, mas, seguramente, para o Brasil: tem-se uma pesada tradição autoritária na política, uma sociedade imobilizada politicamente, mas, de outro lado, livre, inteiramente livre na sua sociabilidade, sem nenhum controle, sem formas explícitas de controle. O que faz entender que, na medida em que se luta pela democratização da política e de suas instituições, esse movimento maciço que trabalha a base da sociedade vai ganhar maiores posições. E isto numa dimensão “revolucionária”, importando mudanças de vulto de posições no interior da sociedade. Uma coisa por aí, algo que decorre até de uma observação puramente demográfica. Além disso, esse mundo é afirmador de direitos e traz com ele novos interesses. Então, na medida em que você encontrar passagem e legitimação para esses interesses, mesmo que a ordem excludente persista, você vai minando o campo adversário e ganhando terreno molecularmente. Se “Mazzini” agir segundo um cálculo – um Maquiavel da sociedade civil –, senhor da sua circunstância, que não lhe permite uma vitória final, aproveitando as oportunidades para a defesa de sua identidade e dos seus propósitos, ele pode impor ao seu antagonista uma parte da sua agenda enquanto acumula forças para novos avanços, sem que se entregue à passividade. Com isso, ele se credencia a interditar a cooptação dos seus quadros por parte de Cavour.
Na verdade, tudo isso é uma revolução passiva numa escala que Gramsci não pôde conhecer. Todos esses processos são posteriores a ele. Mesmo de forma passiva, nosso país produziu esta imensa mudança de posições, inclusive no tema do gênero, com a emancipação feminina, a chegada da mulher no mercado de trabalho e a perda de controle social em todos os níveis. Também no campo, houve mudanças na relação de propriedade. Então, por que não ser, hoje, um “perdedor” diferente do que foi Mazzini?
Por que não ser um político realista, no nosso caso? Por que não introduzir Maquiavel, que é sempre mobilizado como teórico do Estado, nessa dimensão societal? Diga-se de passagem que, quando eu comecei a estudar o tema do direito, também foi essa a direção. Considerei assim os novos institutos criados pela Constituição e até mesmo antes dela. E começamos a compreender esses institutos e a procurar seguir por esses caminhos. São caminhos de pequenas rupturas.
Agora, isso está desconectado da política? Não deveria estar, não, mas está.
Que papel teve a leitura de Gramsci e dos políticos ligados ao eurocomunismo na sua geração e, mais amplamente, na cultura democrática brasileira?
Ao falar de eurocomunismo, a referência imediata é Enrico Berlinguer, que apareceu como a melhor tradução do pensamento gramsciano no plano político e, inclusive, um dos mais audaciosos. Veja só a tese de que o feminismo era a parte mais revolucionária.
Quando eu fui apresentado a ela, reagi, mas ficou claro mais para a frente que Berlinguer tinha toda a razão. Agora, uma coisa que me chamou a atenção, que sempre me incomodou na política dos eurocomunistas foi a desatenção deles para com a cena internacional. Foi uma concepção muito autárquica, a deles...
Autárquica e europeísta...
Até italiana, eu diria. As possibilidades deles aqui, que eram imensas, não foram exploradas. Eles se recusaram a uma aproximação mais forte em nome de uma boa relação com o partido soviético e demais satélites, em nome de cálculos políticos, não sei com que sentido preciso. Um blefe era importante: dizer que não iam se envolver com os partidos comunistas no poder, mas sem abdicar de um papel “pontifício”, central, que era necessário que os italianos tivessem naquele momento.
Inclusive em relação ao Brasil.
Inclusive em relação ao Brasil, onde as possibilidades estavam inteiramente abertas. O Giovanni Berlinger, irmão do Enrico, tinha um trânsito enorme por aqui, especialmente na área dos sanitaristas. Mas, quando tentávamos uma aproximação mais forte, eles sempre lembravam os limites a que eram obrigados, em face da amizade entre partidos irmãos. Era só conversa. Eu acho que faltou a eles a percepção de que, para serem mais fortes na Itália, teriam que ter presença em outros lugares. E um bom terreno para eles, naquela época, era o Brasil. Como isso poderia ser atestado? Entre outras coisas, pelo movimento editorial que tomou corpo em torno das obras de Gramsci, pelos inúmeros intelectuais que passaram a se orientar pela leitura gramsciana, enfim, pela “revolução gramsciana” que foi feita na universidade brasileira, a partir dos anos 80. Acho que os italianos não tiveram sensibilidade para perceber isso.
Apesar de tudo, era também um aparelho político velho, o deles. Seu “ministro das Relações Exteriores” era o Gian Carlo Pajetta, um quadro histórico voltado para o Leste europeu, para o velho bolchevismo. Limitado nesse sentido, sem audácia. Na verdade, faltou audácia externa. Mas, e o Brasil? O que significou, no Brasil, dentro do PCB, a corrente eurocomunista? Gostaríamos de saber sua relação com Armênio Guedes, por exemplo, e com todo o processo de luta interna...
Apenas digo que esta foi uma possibilidade que se frustrou também por volta de 1980, 1981. Quando a direção do partido voltou ao Brasil, a minha posição foi abrir um terceiro caminho. Prestes de um lado, Giocondo do outro, e nós numa terceira posição.
Fizemos, àquela altura, uma reunião, e fui amplamente derrotado. A ideia vitoriosa foi a de que deveríamos nos associar ao Giocondo, que era o caminho possível, etc. Eu me bati por um terceiro caminho, mas era inteiramente dependente do David [Capistrano Filho] para fazer esse movimento, pois ele tinha o controle de São Paulo. Mas aí o passado pesa, não é? Houve quem dissesse que não faria esse movimento para não virar “renegado” e coisas do gênero. O fato é que, se isso tivesse sido feito, nada garante, a meu ver, que teria dado certo, mas pelo menos teríamos tentado um movimento garibaldino e não um movimento mazziniano. Porque dentro do partido havia esse movimento mazziniano. Bom, eu não vou identificar a essa altura quem, a meu ver, consagrava melhor isso. Não faz sentido. Mas havia. E, nesse sentido, a “Declaração de Março de 1958”, com todos os elementos de revolução passiva que ela, inconscientemente, estimulava, também não ajudava, principalmente no seu determinismo que induzia a crença de que “os fatos” trabalhavam a nosso favor. Não houve o corte ali, e, nisso, Gramsci tornou-se mais vivo nos cenáculos da cultura universitária do que na política. Porque ele ficou sem portador dentro da política..
Enfim, o “grupo eurocomunista” não se constituindo como tal, Gramsci vai sair da política, vai ser capturado pelo campo da educação, dos estudos sobre folclore, da religiosidade popular, qualquer coisa que não a política. E todo esse nosso movimento então foi inteiramente decapitado, ao se dispersar em várias direções. Uma fração dele, mais animada, foi para o PT, mas sem partir de uma reflexão própria. Se nos levantássemos naquela hora e disséssemos: “Não, o novo vai conversar conosco”, havia energia ainda. Poderíamos perder. Aliás, deveríamos perder. Mas, talvez, se mantivéssemos linhas de continuidade, linhas de articulação... O fato é que, a partir daí, fomos nos perdendo, até o ponto de hoje estarem inteiramente isolados os comunistas brasileiros que fizeram a descoberta gramsciana. Hoje é só um tempero específico dentro da política.
Vemos o tema da revolução presente na juventude de agora, nesta juventude do Psol, do PcdoB e de outras formações políticas, e que não conhece a alternativa que os eurocomunistas chegaram a esboçar. Perdeu-se, a meu ver, a oportunidade para a grande política, e aí ganhou a pequena política, ganharam os pequenos arranjos. A falta de recursos também contou. Lembro o golpe mortal que foi a proibição em 1981 da grande festa da Voz da Unidade, que ia se realizar em São Paulo e nos garantir pelo menos um ano de sustentação. Mas quero aludir também a esse sentimento de que a ruptura era uma iconoclastia a ser evitada.
O americanismo, de extração gramsciana, é uma inspiração fundamental do seu pensamento, no sentido da busca de uma vida social que possa expressar crescentemente elementos de autogoverno, com um mínimo de sedimentações e crostas parasitárias. No entanto, você se demarca nitidamente dos nossos autores que poderiam ser chamados de “americanistas”. Não haverá nisso uma contradição?
A diferença é teórica: sobre o Estado. E também sobre a relação entre moderno e arcaico, o que leva sempre a um antagonismo: o moderno, para Faoro, tem que erradicar o seu contrário, a tradição. Para mim, não: o moderno tem que assimilar o seu contrário.
Minha percepção de Estado é também diversa. Não é possível desqualificá-lo por definição. Embora eu reconheça que há aí um ponto enigmático mesmo, penso que esse enigma é da nossa natureza, é da nossa própria formação: este Estado que está aí nasceu mais moderno que a sua sociedade, portava uma “teoria” para ela, um projeto de formar uma nação, e era autoritário, sem dúvida. Mas o outro lado, os “americanos” da Regência e antes dela – Frei Caneca e outros –, que apontavam para a livre iniciativa, para a liberdade individual, não tinham como resolver uma questão estratégica, qual seja, garantir a unidade nacional. No limite, abriam mão dela, como Feijó, que também era um “americanista”. Então, essa articulação entre ibéricos e americanos está presente na nossa história. Tocqueville, no começo de A democracia na América, faz uso de uma afirmação: as nações são como as pessoas, pois seguem fiéis às suas condições de origem. Nações, como a francesa, que nascem animadas por dois princípios, vão ter dificuldades mais na frente, vão ter que combiná-los. Nós, como os franceses, nascemos animados por dois princípios: o público e o privado. Somos ibéricos e americanos, com ênfase em ambos. Nós somos assim, nascemos de uma composição entre eles, porque o liberalismo aqui abortou diante da migração da família real. Mais um pouquinho e nós tínhamos feito uma revolução nacional libertadora.
Provavelmente esfacelando o país...
Uma perspectiva hispano-americana. É aquilo sobre o qual nossos próprios homens do momento de fundação, como José Bonifácio, advertem: a fragmentação hispano-americana não pode prevalecer aqui. Esse é o caminho da guerra civil. Enfim, mesmo diante de um ato libertário, ele diz não. É uma dissidência infernal, não há como ficar com um lado contra o outro. Nós temos que entender isso na nossa história, como foi que isso aconteceu, e agora trabalhar essas duas matrizes, valorizá-las, porque elas não são alienígenas, elas são constitutivas do país.
Elas perpassam esquerda e direita...
Pensando assim, também a direita. De tal modo que quem contraria a realidade dessas duas matrizes sofre, em geral, sérios percalços. O Collor, por exemplo, quis fazer isso, romper radicalmente com a tradição em nome do mercado moderno, e deu no que deu.
Aliás, se vocês me permitem, e isso vai sem maior pretensão, o Fernando Henrique só me cita, sempre, nesse ângulo particular. Qual foi, então, a manobra que procurei conceber? Imaginei que o mundo americano, o mundo da sociedade, especialmente da vida associativa, da livre associação, fosse capaz de se elevar à política e converter o Estado a partir de baixo e a partir de dentro. Um processo de conquista feita ao longo do tempo, em que o direito teria papel a cumprir, um direito criado a partir de baixo. Não o “direito alternativo”, não o “direito achado na rua”. Não é isso. Mas sempre procurei valorizar os novos institutos e preservar também os valores do público. Citando um autor recente, contemporâneo, Pierre Rosanvallon começa sua Monarquia impossível exatamente como Tocqueville, ainda que sem citá-lo: “Nós, franceses, temos duas matrizes”, etc. Nós também temos duas matrizes. No caso dos americanos, não, eles têm uma matriz única.
Você fala de uma mudança a partir de baixo, da sociedade. Isso você encontra em Gramsci e vai buscar também em Tocqueville. Afinal, qual o papel de Tocqueville na sua reflexão mais recente, assim como de outros teóricos das ciências sociais, de forma geral?
Lembro mais ou menos a relação que Gramsci teve com Benedetto Croce, que era o ponto culminante do pensamento na sua época. O que não quer dizer que a esquerda que nós somos, e nem o Gramsci concordava com isso, deve aceitar passivamente qualquer ponto culminante desse tipo. Lembro também, agora, a figura de Habermas, a posição mais poderosa que existe e que de algum modo parte do nosso campo, parte do marxismo. Em Habermas, temos uma origem mais próxima de Marx do que de qualquer outro pensador contemporâneo significativo, e também temos uma construção democrática extremamente persuasiva das mudanças na estrutura Estado, na estrutura do poder a partir da via social, desde que se instituam procedimentos adequados e se libere a fala, com os homens em igualdade de condições para se manifestar. A propósito, o que sempre me aturdiu no Habermas é o fato de jamais ter mencionado a existência de Gramsci. Ele escreveu sobre autores americanos que trabalharam muito com Gramsci, como [Jean] Cohen e [Andrew] Arato, especialmente na formatação do conceito de sociedade civil. Habermas trabalha muito com estes autores, incorpora-os como uma das balizas do seu pensamento, mas curiosamente não menciona Gramsci, o que sempre me que pareceu um traço pequeno na sua obra.
Mas Tocqueville é de outro campo, não é marxista. Como você vê essa interação? Ele tem algo a dizer para nós? Na medida em que a questão da democracia ganha peso, Toquevile precisa ser mais incorporado?
Tocqueville, antes de tudo, ganha presença imensa entre nós na medida em que é a principal referência dos nossos “clássicos”, dos nossos intérpretes e estadistas. Alguns podem sustentar que as concepções tocquevillianas aqui são desajustadas, que não há correspondência razoável entre o Brasil e a América do Norte; outros, ao contrário, defendem, como o fazem os americanistas extremados, que se deve liberar a economia, liberar o indivíduo e que se vai colher bons frutos com a derrocada dessa tradição barroca, ibérica, pesada, dessa estrutura chinesa de dominação, burocrática, patrimonial.
E o ideal da township, da comunidade auto-organizada, era uma presença forte nos municipalistas do Império. Encontramos elogios fortes à obra tocquevilliana no principal opositor das ideias de descentralização, que é o Visconde do Uruguai. Oliveira Viana também. E vai por aí. A tradição autoritária brasileira vai numa direção, a tradição libertária vai em outra tradição... E frequentemente, por peripécias da nossa história, nós da esquerda somos tachados de estatistas, de autoritários, de conservadores.
Nós da esquerda?
Nós da esquerda. No período pós-suicídio de Vargas, ficamos todos, PSD, PTB, PCB, confundidos no mesmo Estado, na mesma estrutura corporativa sindical. E agora no governo Lula isso volta. É como se a história se reanimasse e se fizesse presente com todo o seu peso. A própria estatalização está de volta, embora não se possa refazer o percurso de antes, porque, como disse, sabemos que as duas matrizes são poderosas e nenhuma das duas tem força suficiente para aniquilar a outra...
Mas neste jogo ambas entram em mutação, não?
Ah, entram, vão entrando, e nós vamos nisso. A percepção dessa alquimia é absolutamente necessária para operar o mundo da política.
O “seu” Gramsci, decididamente, não é o “leitor de Maquiavel”, aquele que supõe a mobilização jacobina da vontade nacional-popular. Mas alguns processos em curso na América Latina, hoje, não parecem estimular esse tipo de leitura revolucionária?
Este quadro latino-americano é difícil. É muito difícil. É aí que, a meu ver, temos que pensar do ângulo de um país continental, com uma história particular, e que olha para este mundo com simpatia, com interesse – e com reservas. Porque lá se vive um processo que nós não podemos deixar de valorizar: a chegada de milhões e milhões de pessoas ao mundo dos direitos, pessoas que estavam ali embrutecidas em um canto do mundo e agora chegam à política, à esfera pública, ao parlamento. Elas vêm com um sistema de orientação dado pela sua particularidade, a mais absoluta, mas também usando um arsenal de linguagem já experimentado e que não foi muito bem-sucedido. Mas, de fato, o pensamento revolucionarista da América Latina veio com um novo fôlego, ainda que esse novo fôlego seja refratado por uma série de outros processos. Temos uma revolução autocontida espacialmente, ideologicamente.
Mas não o Chávez, que parece ter construído uma “internacional” bolivariana...
A questão é a seguinte: devemos nos opor a isso, devemos combater isso? Essa é a questão que vocês estão me impondo, não é? Acho que está claro, a partir de certos limites, sim. E, para ser franco, a política externa brasileira em relação a esse ponto tem sido, nas suas linhas gerais, muito inteligente, muito pertinente. De todo modo, nada disso quer dizer que se deve sacramentar no seu conjunto essa nova posição revolucionarista. Se vocês me perguntarem, eu acho que ela tem que ser contestada em termos políticos, tem que ser teoricamente contestada.
Que papel teve a leitura de Gramsci e dos políticos ligados ao eurocomunismo na sua geração e, mais amplamente, na cultura democrática brasileira?
Ao falar de eurocomunismo, a referência imediata é Enrico Berlinguer, que apareceu como a melhor tradução do pensamento gramsciano no plano político e, inclusive, um dos mais audaciosos. Veja só a tese de que o feminismo era a parte mais revolucionária.
Quando eu fui apresentado a ela, reagi, mas ficou claro mais para a frente que Berlinguer tinha toda a razão. Agora, uma coisa que me chamou a atenção, que sempre me incomodou na política dos eurocomunistas foi a desatenção deles para com a cena internacional. Foi uma concepção muito autárquica, a deles...
Autárquica e europeísta...
Até italiana, eu diria. As possibilidades deles aqui, que eram imensas, não foram exploradas. Eles se recusaram a uma aproximação mais forte em nome de uma boa relação com o partido soviético e demais satélites, em nome de cálculos políticos, não sei com que sentido preciso. Um blefe era importante: dizer que não iam se envolver com os partidos comunistas no poder, mas sem abdicar de um papel “pontifício”, central, que era necessário que os italianos tivessem naquele momento.
Inclusive em relação ao Brasil.
Inclusive em relação ao Brasil, onde as possibilidades estavam inteiramente abertas. O Giovanni Berlinger, irmão do Enrico, tinha um trânsito enorme por aqui, especialmente na área dos sanitaristas. Mas, quando tentávamos uma aproximação mais forte, eles sempre lembravam os limites a que eram obrigados, em face da amizade entre partidos irmãos. Era só conversa. Eu acho que faltou a eles a percepção de que, para serem mais fortes na Itália, teriam que ter presença em outros lugares. E um bom terreno para eles, naquela época, era o Brasil. Como isso poderia ser atestado? Entre outras coisas, pelo movimento editorial que tomou corpo em torno das obras de Gramsci, pelos inúmeros intelectuais que passaram a se orientar pela leitura gramsciana, enfim, pela “revolução gramsciana” que foi feita na universidade brasileira, a partir dos anos 80. Acho que os italianos não tiveram sensibilidade para perceber isso.
Apesar de tudo, era também um aparelho político velho, o deles. Seu “ministro das Relações Exteriores” era o Gian Carlo Pajetta, um quadro histórico voltado para o Leste europeu, para o velho bolchevismo. Limitado nesse sentido, sem audácia. Na verdade, faltou audácia externa. Mas, e o Brasil? O que significou, no Brasil, dentro do PCB, a corrente eurocomunista? Gostaríamos de saber sua relação com Armênio Guedes, por exemplo, e com todo o processo de luta interna...
Apenas digo que esta foi uma possibilidade que se frustrou também por volta de 1980, 1981. Quando a direção do partido voltou ao Brasil, a minha posição foi abrir um terceiro caminho. Prestes de um lado, Giocondo do outro, e nós numa terceira posição.
Fizemos, àquela altura, uma reunião, e fui amplamente derrotado. A ideia vitoriosa foi a de que deveríamos nos associar ao Giocondo, que era o caminho possível, etc. Eu me bati por um terceiro caminho, mas era inteiramente dependente do David [Capistrano Filho] para fazer esse movimento, pois ele tinha o controle de São Paulo. Mas aí o passado pesa, não é? Houve quem dissesse que não faria esse movimento para não virar “renegado” e coisas do gênero. O fato é que, se isso tivesse sido feito, nada garante, a meu ver, que teria dado certo, mas pelo menos teríamos tentado um movimento garibaldino e não um movimento mazziniano. Porque dentro do partido havia esse movimento mazziniano. Bom, eu não vou identificar a essa altura quem, a meu ver, consagrava melhor isso. Não faz sentido. Mas havia. E, nesse sentido, a “Declaração de Março de 1958”, com todos os elementos de revolução passiva que ela, inconscientemente, estimulava, também não ajudava, principalmente no seu determinismo que induzia a crença de que “os fatos” trabalhavam a nosso favor. Não houve o corte ali, e, nisso, Gramsci tornou-se mais vivo nos cenáculos da cultura universitária do que na política. Porque ele ficou sem portador dentro da política..
Enfim, o “grupo eurocomunista” não se constituindo como tal, Gramsci vai sair da política, vai ser capturado pelo campo da educação, dos estudos sobre folclore, da religiosidade popular, qualquer coisa que não a política. E todo esse nosso movimento então foi inteiramente decapitado, ao se dispersar em várias direções. Uma fração dele, mais animada, foi para o PT, mas sem partir de uma reflexão própria. Se nos levantássemos naquela hora e disséssemos: “Não, o novo vai conversar conosco”, havia energia ainda. Poderíamos perder. Aliás, deveríamos perder. Mas, talvez, se mantivéssemos linhas de continuidade, linhas de articulação... O fato é que, a partir daí, fomos nos perdendo, até o ponto de hoje estarem inteiramente isolados os comunistas brasileiros que fizeram a descoberta gramsciana. Hoje é só um tempero específico dentro da política.
Vemos o tema da revolução presente na juventude de agora, nesta juventude do Psol, do PcdoB e de outras formações políticas, e que não conhece a alternativa que os eurocomunistas chegaram a esboçar. Perdeu-se, a meu ver, a oportunidade para a grande política, e aí ganhou a pequena política, ganharam os pequenos arranjos. A falta de recursos também contou. Lembro o golpe mortal que foi a proibição em 1981 da grande festa da Voz da Unidade, que ia se realizar em São Paulo e nos garantir pelo menos um ano de sustentação. Mas quero aludir também a esse sentimento de que a ruptura era uma iconoclastia a ser evitada.
O americanismo, de extração gramsciana, é uma inspiração fundamental do seu pensamento, no sentido da busca de uma vida social que possa expressar crescentemente elementos de autogoverno, com um mínimo de sedimentações e crostas parasitárias. No entanto, você se demarca nitidamente dos nossos autores que poderiam ser chamados de “americanistas”. Não haverá nisso uma contradição?
A diferença é teórica: sobre o Estado. E também sobre a relação entre moderno e arcaico, o que leva sempre a um antagonismo: o moderno, para Faoro, tem que erradicar o seu contrário, a tradição. Para mim, não: o moderno tem que assimilar o seu contrário.
Minha percepção de Estado é também diversa. Não é possível desqualificá-lo por definição. Embora eu reconheça que há aí um ponto enigmático mesmo, penso que esse enigma é da nossa natureza, é da nossa própria formação: este Estado que está aí nasceu mais moderno que a sua sociedade, portava uma “teoria” para ela, um projeto de formar uma nação, e era autoritário, sem dúvida. Mas o outro lado, os “americanos” da Regência e antes dela – Frei Caneca e outros –, que apontavam para a livre iniciativa, para a liberdade individual, não tinham como resolver uma questão estratégica, qual seja, garantir a unidade nacional. No limite, abriam mão dela, como Feijó, que também era um “americanista”. Então, essa articulação entre ibéricos e americanos está presente na nossa história. Tocqueville, no começo de A democracia na América, faz uso de uma afirmação: as nações são como as pessoas, pois seguem fiéis às suas condições de origem. Nações, como a francesa, que nascem animadas por dois princípios, vão ter dificuldades mais na frente, vão ter que combiná-los. Nós, como os franceses, nascemos animados por dois princípios: o público e o privado. Somos ibéricos e americanos, com ênfase em ambos. Nós somos assim, nascemos de uma composição entre eles, porque o liberalismo aqui abortou diante da migração da família real. Mais um pouquinho e nós tínhamos feito uma revolução nacional libertadora.
Provavelmente esfacelando o país...
Uma perspectiva hispano-americana. É aquilo sobre o qual nossos próprios homens do momento de fundação, como José Bonifácio, advertem: a fragmentação hispano-americana não pode prevalecer aqui. Esse é o caminho da guerra civil. Enfim, mesmo diante de um ato libertário, ele diz não. É uma dissidência infernal, não há como ficar com um lado contra o outro. Nós temos que entender isso na nossa história, como foi que isso aconteceu, e agora trabalhar essas duas matrizes, valorizá-las, porque elas não são alienígenas, elas são constitutivas do país.
Elas perpassam esquerda e direita...
Pensando assim, também a direita. De tal modo que quem contraria a realidade dessas duas matrizes sofre, em geral, sérios percalços. O Collor, por exemplo, quis fazer isso, romper radicalmente com a tradição em nome do mercado moderno, e deu no que deu.
Aliás, se vocês me permitem, e isso vai sem maior pretensão, o Fernando Henrique só me cita, sempre, nesse ângulo particular. Qual foi, então, a manobra que procurei conceber? Imaginei que o mundo americano, o mundo da sociedade, especialmente da vida associativa, da livre associação, fosse capaz de se elevar à política e converter o Estado a partir de baixo e a partir de dentro. Um processo de conquista feita ao longo do tempo, em que o direito teria papel a cumprir, um direito criado a partir de baixo. Não o “direito alternativo”, não o “direito achado na rua”. Não é isso. Mas sempre procurei valorizar os novos institutos e preservar também os valores do público. Citando um autor recente, contemporâneo, Pierre Rosanvallon começa sua Monarquia impossível exatamente como Tocqueville, ainda que sem citá-lo: “Nós, franceses, temos duas matrizes”, etc. Nós também temos duas matrizes. No caso dos americanos, não, eles têm uma matriz única.
Você fala de uma mudança a partir de baixo, da sociedade. Isso você encontra em Gramsci e vai buscar também em Tocqueville. Afinal, qual o papel de Tocqueville na sua reflexão mais recente, assim como de outros teóricos das ciências sociais, de forma geral?
Lembro mais ou menos a relação que Gramsci teve com Benedetto Croce, que era o ponto culminante do pensamento na sua época. O que não quer dizer que a esquerda que nós somos, e nem o Gramsci concordava com isso, deve aceitar passivamente qualquer ponto culminante desse tipo. Lembro também, agora, a figura de Habermas, a posição mais poderosa que existe e que de algum modo parte do nosso campo, parte do marxismo. Em Habermas, temos uma origem mais próxima de Marx do que de qualquer outro pensador contemporâneo significativo, e também temos uma construção democrática extremamente persuasiva das mudanças na estrutura Estado, na estrutura do poder a partir da via social, desde que se instituam procedimentos adequados e se libere a fala, com os homens em igualdade de condições para se manifestar. A propósito, o que sempre me aturdiu no Habermas é o fato de jamais ter mencionado a existência de Gramsci. Ele escreveu sobre autores americanos que trabalharam muito com Gramsci, como [Jean] Cohen e [Andrew] Arato, especialmente na formatação do conceito de sociedade civil. Habermas trabalha muito com estes autores, incorpora-os como uma das balizas do seu pensamento, mas curiosamente não menciona Gramsci, o que sempre me que pareceu um traço pequeno na sua obra.
Mas Tocqueville é de outro campo, não é marxista. Como você vê essa interação? Ele tem algo a dizer para nós? Na medida em que a questão da democracia ganha peso, Toquevile precisa ser mais incorporado?
Tocqueville, antes de tudo, ganha presença imensa entre nós na medida em que é a principal referência dos nossos “clássicos”, dos nossos intérpretes e estadistas. Alguns podem sustentar que as concepções tocquevillianas aqui são desajustadas, que não há correspondência razoável entre o Brasil e a América do Norte; outros, ao contrário, defendem, como o fazem os americanistas extremados, que se deve liberar a economia, liberar o indivíduo e que se vai colher bons frutos com a derrocada dessa tradição barroca, ibérica, pesada, dessa estrutura chinesa de dominação, burocrática, patrimonial.
E o ideal da township, da comunidade auto-organizada, era uma presença forte nos municipalistas do Império. Encontramos elogios fortes à obra tocquevilliana no principal opositor das ideias de descentralização, que é o Visconde do Uruguai. Oliveira Viana também. E vai por aí. A tradição autoritária brasileira vai numa direção, a tradição libertária vai em outra tradição... E frequentemente, por peripécias da nossa história, nós da esquerda somos tachados de estatistas, de autoritários, de conservadores.
Nós da esquerda?
Nós da esquerda. No período pós-suicídio de Vargas, ficamos todos, PSD, PTB, PCB, confundidos no mesmo Estado, na mesma estrutura corporativa sindical. E agora no governo Lula isso volta. É como se a história se reanimasse e se fizesse presente com todo o seu peso. A própria estatalização está de volta, embora não se possa refazer o percurso de antes, porque, como disse, sabemos que as duas matrizes são poderosas e nenhuma das duas tem força suficiente para aniquilar a outra...
Mas neste jogo ambas entram em mutação, não?
Ah, entram, vão entrando, e nós vamos nisso. A percepção dessa alquimia é absolutamente necessária para operar o mundo da política.
O “seu” Gramsci, decididamente, não é o “leitor de Maquiavel”, aquele que supõe a mobilização jacobina da vontade nacional-popular. Mas alguns processos em curso na América Latina, hoje, não parecem estimular esse tipo de leitura revolucionária?
Este quadro latino-americano é difícil. É muito difícil. É aí que, a meu ver, temos que pensar do ângulo de um país continental, com uma história particular, e que olha para este mundo com simpatia, com interesse – e com reservas. Porque lá se vive um processo que nós não podemos deixar de valorizar: a chegada de milhões e milhões de pessoas ao mundo dos direitos, pessoas que estavam ali embrutecidas em um canto do mundo e agora chegam à política, à esfera pública, ao parlamento. Elas vêm com um sistema de orientação dado pela sua particularidade, a mais absoluta, mas também usando um arsenal de linguagem já experimentado e que não foi muito bem-sucedido. Mas, de fato, o pensamento revolucionarista da América Latina veio com um novo fôlego, ainda que esse novo fôlego seja refratado por uma série de outros processos. Temos uma revolução autocontida espacialmente, ideologicamente.
Mas não o Chávez, que parece ter construído uma “internacional” bolivariana...
A questão é a seguinte: devemos nos opor a isso, devemos combater isso? Essa é a questão que vocês estão me impondo, não é? Acho que está claro, a partir de certos limites, sim. E, para ser franco, a política externa brasileira em relação a esse ponto tem sido, nas suas linhas gerais, muito inteligente, muito pertinente. De todo modo, nada disso quer dizer que se deve sacramentar no seu conjunto essa nova posição revolucionarista. Se vocês me perguntarem, eu acho que ela tem que ser contestada em termos políticos, tem que ser teoricamente contestada.
Agora, o fato é que muitas agências formadoras de opinião, entre nós, aqui dentro, mantêm sobrevivências revolucionaristas... De qualquer modo, é preciso registrar que o cenário em que se inscreve, hoje, o Brasil transcende o da América Latina e já é o mundial,e nele temos como trunfo nossos valores e a história da nossa civilização.
Mas enfrentar teoricamente implicaria apontar as contradições entre essa retórica jacobina e a convivência com a sociedade civil.
Mas seria uma retórica jacobina mesmo?
No caso dos índios? Do Evo Morales?
É uma revolução agrária que está em curso na Bolívia hoje?
Não. Até porque já aconteceu uma revolução agrária...
Mais do que pensar em jacobinismo, nós temos que pensar em cesarismo, em categorias mais referidas a um anacronismo. E a situação boliviana, de fato, pode terminar em tragédia...
Devemos nos preparar para o pior em situações como a de Honduras e outras? Teríamos, como se quis nos anos 60, “um continente em chamas contra o imperialismo”?
Há quem possa pensar assim, mas nesse particular o Brasil é uma presença apaziguadora.
E cabe considerar também o outro lado da moeda, o lado do “império”, onde há sinais de vitalidade, que podem alterar os dados desta situação. Observamos lá, desde a eleição de Obama, uma referência constante aos pais fundadores, aos valores americanos...
É a volta da religião civil, um fenômeno de importância imensa. Sem falar na projeção externa disso, lembro que, internamente, quando os Estados Unidos enfrentam uma questão como a da saúde, rompem uma tradição pesada. Quer dizer, admite-se que o Estado tem responsabilidades, há solidariedades entre as gerações, os indivíduos têm que ser protegidos pela lei. E isso é um divisor sem tamanho naquela sociedade. A ideia do pistoleiro, do indivíduo solto, do aventureiro, do homem da fortuna, só por isso sofre um baque considerável. A América se socialdemocratiza. E a nossa experiência brasileira, há dezesseis anos também é uma experiência socialdemocrata.
Mas enfrentar teoricamente implicaria apontar as contradições entre essa retórica jacobina e a convivência com a sociedade civil.
Mas seria uma retórica jacobina mesmo?
No caso dos índios? Do Evo Morales?
É uma revolução agrária que está em curso na Bolívia hoje?
Não. Até porque já aconteceu uma revolução agrária...
Mais do que pensar em jacobinismo, nós temos que pensar em cesarismo, em categorias mais referidas a um anacronismo. E a situação boliviana, de fato, pode terminar em tragédia...
Devemos nos preparar para o pior em situações como a de Honduras e outras? Teríamos, como se quis nos anos 60, “um continente em chamas contra o imperialismo”?
Há quem possa pensar assim, mas nesse particular o Brasil é uma presença apaziguadora.
E cabe considerar também o outro lado da moeda, o lado do “império”, onde há sinais de vitalidade, que podem alterar os dados desta situação. Observamos lá, desde a eleição de Obama, uma referência constante aos pais fundadores, aos valores americanos...
É a volta da religião civil, um fenômeno de importância imensa. Sem falar na projeção externa disso, lembro que, internamente, quando os Estados Unidos enfrentam uma questão como a da saúde, rompem uma tradição pesada. Quer dizer, admite-se que o Estado tem responsabilidades, há solidariedades entre as gerações, os indivíduos têm que ser protegidos pela lei. E isso é um divisor sem tamanho naquela sociedade. A ideia do pistoleiro, do indivíduo solto, do aventureiro, do homem da fortuna, só por isso sofre um baque considerável. A América se socialdemocratiza. E a nossa experiência brasileira, há dezesseis anos também é uma experiência socialdemocrata.
E tudo indica que por mais quatro ou oito anos vai persistir assim...
Seja Serra, seja Dilma...
Seja Serra, seja Dilma. Isso significa que, com modulações, com variações para lá e para cá, vige uma única pauta. O que há são interpretações da mesma pauta.
E assim voltamos ao cenário brasileiro, que parece viver esta contradição entre atores exageradamente contrapostos – na retórica – e substancial continuidade de projeto. É como se fossem atores de outra peça, que, no fundo, não é aquela que aqui está em cartaz. Como explicar estes atores fora de lugar? Como explicar o antagonismo radicalizado entre PT e PSDB, que envenena a cena pública? Para explicar isso, devemos sair da política e recorrer ao narcisismo das pequenas diferenças?
De fato, a política oficial brasileira não se encontra sob ameaça, no sentido de que não aparece nenhum grupo forte, de baixo, mexendo com as coisas estabelecidas. Com isso, os partidos hoje dominantes não têm porque se preocupar. Ao fim e ao cabo, vem o aumento do bolsa família... Do plano social não se originam impulsos que interfiram no sentido da mudança do quadro partidário. A desigualdade não cai, mas esse tema – o da desigualdade – não tem, hoje, a carga dramática suscitada pela questão da pobreza. O tema da desigualdade, a meu ver, se afirma em momentos revolucionários. Num momento como o nosso, visivelmente o que se discute é a pobreza. Além do mais, na sociedade brasileira, ser desigual ainda não significa muita coisa, pois as classes subalternas, em grande parte, têm uma vida paralela, culturalmente mais rica, em certos aspectos, do que a do conjunto da sociedade. Do ponto de vista de sociabilidade, do ponto de vista de vida associativa, do ponto de vista do lazer, há um mundo paralelo, que não é ameaçado pela repressão. Tem tráfico, tem policial corrupto, mas tem também imaginação solta, folguedo, dança, feijoada e churrasco na laje, comilança, festa de São João e muita energia para organizar tudo isso. Não é um mundo anômico. Ao contrário, é cheio de energia.
O que coloca a seguinte questão: nesse contexto, para os setores das elites políticas e econômicas exercerem hegemonia precisam negociar o tempo todo. Qual foi a agência cultural que mais cedo e melhor compreendeu tudo isso? A Rede Globo de Televisão.
Ela foi muito ajudada nessa tarefa por alguns intelectuais formados no nosso campo, como Dias Gomes, Vianinha, Armando Costa, Paulo Pontes e muitos mais. Mas, com isso, tendo de abrir o sistema à invenção popular ¬- é claro que mistificando, mascarando, etc.-, novos personagens são mobilizados para a tarefa de organizarem a cena cultural. A Globo exerce uma ação hegemônica? Exerce. É um aparelho cultural que é capaz de interpelar vivamente o que está embaixo e dirigi-lo Tome-se o Estandarte Globo como exemplo: a Globo trouxe para si a premiação das Escolas de Samba, deixando em segundo plano o júri organizado pelas direções das Escolas. E isso vale para qualquer coisa que viva, que se mexa no Rio de Janeiro, vale para qualquer manifestação cultural da cidade e mesmo do país. O que faz com que seja um domínio muito difícil de sacudir, de deslocar, mas também muito permeável e invadido por baixo. Enfim, um território da revolução passiva, em que muitos são decapitados e têm suas cabeças ocultadas para que o andamento cultural possa prosseguir.
Já na questão partidária, a permeabilidade em relação ao que vem de baixo, da sociedade civil, não é similar. Ambos os partidos, PT e PSDB, têm uma reação igualmente reativa ao que vem da sociedade civil, ou há diferenças entre eles?
Essa é uma ótima questão. Ambos os partidos, e até mesmo seus candidatos, têm a postura tradicional do político progressista brasileiro: são favoráveis ao que ocorre embaixo, procuram entender, estabelecer políticas adequadas, mas uma relação orgânica, mesmo que simbólica, se dá com o tipo representado pelo Lula. Porque a relação de Lula, no caso, é visceral. E vai haver novidades nesse ponto a partir de 2010, porque tanto com Serra quanto com Dilma teremos turbulências: nenhum dos dois vai ser capaz de manter, de segurar esse equilíbrio precário que existe hoje no interior do governo, no interior do Estado, e encarnar essa representação da articulação entre Estado e sociedade que o Lula faz em si. Não é o estilo do Serra nem da Dilma. Eles são administradores, têm uma outra formação, outro estilo.
Mas continuaremos sempre no âmbito da revolução passiva, sem esperar explosões...
Já que a vida é imprevisível, tudo pode acontecer, mas não é isso que se espera que vá acontecer, principalmente quando a sociedade já conhece os trilhos domesticados por onde andar. Por outro lado, é possível fazer grandes mudanças obedecendo aos institutos existentes.
Seja Serra, seja Dilma...
Seja Serra, seja Dilma. Isso significa que, com modulações, com variações para lá e para cá, vige uma única pauta. O que há são interpretações da mesma pauta.
E assim voltamos ao cenário brasileiro, que parece viver esta contradição entre atores exageradamente contrapostos – na retórica – e substancial continuidade de projeto. É como se fossem atores de outra peça, que, no fundo, não é aquela que aqui está em cartaz. Como explicar estes atores fora de lugar? Como explicar o antagonismo radicalizado entre PT e PSDB, que envenena a cena pública? Para explicar isso, devemos sair da política e recorrer ao narcisismo das pequenas diferenças?
De fato, a política oficial brasileira não se encontra sob ameaça, no sentido de que não aparece nenhum grupo forte, de baixo, mexendo com as coisas estabelecidas. Com isso, os partidos hoje dominantes não têm porque se preocupar. Ao fim e ao cabo, vem o aumento do bolsa família... Do plano social não se originam impulsos que interfiram no sentido da mudança do quadro partidário. A desigualdade não cai, mas esse tema – o da desigualdade – não tem, hoje, a carga dramática suscitada pela questão da pobreza. O tema da desigualdade, a meu ver, se afirma em momentos revolucionários. Num momento como o nosso, visivelmente o que se discute é a pobreza. Além do mais, na sociedade brasileira, ser desigual ainda não significa muita coisa, pois as classes subalternas, em grande parte, têm uma vida paralela, culturalmente mais rica, em certos aspectos, do que a do conjunto da sociedade. Do ponto de vista de sociabilidade, do ponto de vista de vida associativa, do ponto de vista do lazer, há um mundo paralelo, que não é ameaçado pela repressão. Tem tráfico, tem policial corrupto, mas tem também imaginação solta, folguedo, dança, feijoada e churrasco na laje, comilança, festa de São João e muita energia para organizar tudo isso. Não é um mundo anômico. Ao contrário, é cheio de energia.
O que coloca a seguinte questão: nesse contexto, para os setores das elites políticas e econômicas exercerem hegemonia precisam negociar o tempo todo. Qual foi a agência cultural que mais cedo e melhor compreendeu tudo isso? A Rede Globo de Televisão.
Ela foi muito ajudada nessa tarefa por alguns intelectuais formados no nosso campo, como Dias Gomes, Vianinha, Armando Costa, Paulo Pontes e muitos mais. Mas, com isso, tendo de abrir o sistema à invenção popular ¬- é claro que mistificando, mascarando, etc.-, novos personagens são mobilizados para a tarefa de organizarem a cena cultural. A Globo exerce uma ação hegemônica? Exerce. É um aparelho cultural que é capaz de interpelar vivamente o que está embaixo e dirigi-lo Tome-se o Estandarte Globo como exemplo: a Globo trouxe para si a premiação das Escolas de Samba, deixando em segundo plano o júri organizado pelas direções das Escolas. E isso vale para qualquer coisa que viva, que se mexa no Rio de Janeiro, vale para qualquer manifestação cultural da cidade e mesmo do país. O que faz com que seja um domínio muito difícil de sacudir, de deslocar, mas também muito permeável e invadido por baixo. Enfim, um território da revolução passiva, em que muitos são decapitados e têm suas cabeças ocultadas para que o andamento cultural possa prosseguir.
Já na questão partidária, a permeabilidade em relação ao que vem de baixo, da sociedade civil, não é similar. Ambos os partidos, PT e PSDB, têm uma reação igualmente reativa ao que vem da sociedade civil, ou há diferenças entre eles?
Essa é uma ótima questão. Ambos os partidos, e até mesmo seus candidatos, têm a postura tradicional do político progressista brasileiro: são favoráveis ao que ocorre embaixo, procuram entender, estabelecer políticas adequadas, mas uma relação orgânica, mesmo que simbólica, se dá com o tipo representado pelo Lula. Porque a relação de Lula, no caso, é visceral. E vai haver novidades nesse ponto a partir de 2010, porque tanto com Serra quanto com Dilma teremos turbulências: nenhum dos dois vai ser capaz de manter, de segurar esse equilíbrio precário que existe hoje no interior do governo, no interior do Estado, e encarnar essa representação da articulação entre Estado e sociedade que o Lula faz em si. Não é o estilo do Serra nem da Dilma. Eles são administradores, têm uma outra formação, outro estilo.
Mas continuaremos sempre no âmbito da revolução passiva, sem esperar explosões...
Já que a vida é imprevisível, tudo pode acontecer, mas não é isso que se espera que vá acontecer, principalmente quando a sociedade já conhece os trilhos domesticados por onde andar. Por outro lado, é possível fazer grandes mudanças obedecendo aos institutos existentes.
Nos Estados Unidos, por exemplo, posso ir ao Congresso e mudar a legislação sobre saúde. É duríssimo, mas posso mudar e avançar em muitas outras. E também aqui podemos avançar em muitas direções. Olhando agora para a sociedade, como resistirá o Serra ou a Dilma, logo que um deles tome posse, a uma movimentação ativista do MST? Que nem Lula, resguardando um pedaço de chão no interior do governo para eles? Acho que o Serra não faria isso.
Não tem feito em São Paulo...
Não tem feito em São Paulo... Quanto a isso não há dúvida. E a Dilma, fará? Poderá fazer, mas ela também não tem se chocado com o agronegócio. Ela vai suportar a pressão do agronegócio, com a alegação, por parte deste, de que sustenta o país e quer sustentar o mundo? O agronegócio tem, de fato, o argumento de que constitui uma base de lançamento estratégico para o Brasil na cena mundial, e a Dilma, ao que parece, não é a favor de algo como um jardim zoológico por aqui, e aparenta mais ser uma portadora do lema do desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Já o Lula, o que faz? “Olha, meus amigos do mundo agrário, venham os dois aqui, vamos conversar...”.
Sempre com jeitinho, e tem dado certo. O que poderia ter dramatizado a política brasileira não aconteceu: a luta pelo terceiro mandato. O que quer dizer o seguinte: o presidente subscreveu as instituições. Ele se alinhou nesta questão capital, fortaleceu as instituições, jogou as regras do jogo. Ponto.
A velha esquerda nacional-desenvolvimentista tinha um déficit de pensamento democrático (refiro-me aqui à democracia representativa). O PT traz em si alguns elementos constitutivos (como a esquerda egressa da luta armada ou o “populismo” de certas correntes do pensamento católico), mais afeitos à democracia substantiva ou aos mecanismos diretos de estruturação da vida política. Corremos o risco de, além do desenvolvimentismo, replicarmos o velho déficit democrático?
Devemos sempre ter em mente que o PT vive a dinâmica da democracia representativa.
As posições de força dentro do partido dependem muito do mandato parlamentar. Os parlamentares ouvidos, os políticos que falam para a sociedade são credenciados pelo mandato. Isso é totalmente distinto do partido político de esquerda dos anos 1950/1960 em que o mandatário era visto como um quadro menor na estrutura partidária, que cumpre ordens e não tem autonomia. Isso mudou. Os parlamentares começaram a ser quadros mais influentes do que os demais, tal como ocorrera na Itália, onde a tradição revolucionária também enfatizava o carisma do quadro, seu papel na estrutura organizacional e não no parlamento. Essa passagem, no PT, já foi feita cabalmente. E não tem volta. O Genoíno, o Zé Dirceu, que está sem mandato agora, mas vai voltar, o Palocci, enfim, todos buscam sua legitimação como quadros parlamentares.
Quanto à posição do PT, ao medo de que o partido não valorize as instituições da democracia representativa, essa é uma questão mais complicada. Como será o petismo sem Lula? Esse é o grande problema. Um dilema muito curioso, esse da formação do PT. Isso já foi visto várias vezes, tanta gente escreveu sobre este dado, digamos, xiita da formação. O partido chega para atingir um determinado objetivo, não tem como atingi-lo, a não ser parcialmente e na dependência pessoal do chefe. Então, todos ficam nesta dependência e monta-se um equilíbrio que não tem como ser quebrado, até que o próprio chefe se autonomiza e declara: “O programa do partido não me regula, eu me adapto às circunstâncias. Sou um político de faro, de intuição. Sou um político pragmático”.
Como o Zelig, do Woody Allen... Mas, nessa perspectiva, o PT sem a presidência Lula, vai ter uma queda forte? Ou seja, o sucesso do Lula se teria dado em detrimento do partido, pelo menos até certo ponto?
Terá uma queda, sim. E o sucesso do Lula, paradoxalmente, fez com que a estrutura partidária ficasse ainda mais desfalecida. O que a direita pretende com essa campanha que tem como alvo preferencial o Sarney? Está querendo demolir a democracia representativa? Não é o caso. Pretende quebrar o PMDB? Certamente. Seu objetivo é impedir que o PMDB se torne uma plataforma de lançamento da candidatura Dilma?
Certamente, também. Mas está difícil perceber a natureza desse movimento mais recente da política, porque há algo nele que é geral, universal, que tem a ver com a valorização do princípio da moralidade pública. O tema da moralidade pública é um tema emergente no mundo. E é muitíssimo democrático. Li o depoimento de um ministro da Suprema Corte Americana, que diz passar alguns dias da sua vida sem pensar noutra coisa senão elaborando a sua prestação de contas anuais. Se essa prestação não for minuciosamente correta, aparece um promotor e... Esse é um novo mundo, uma nova ordem. E quem não entende isso, perde, é derrotado. A democracia tem isso: vai avançando e vai assustando também. A propósito, esse é um dos argumentos do Tocqueville. Há algo nisso que é inexorável.
Uma palavra, ainda, sobre a contribuição brasileira tanto no plano mais imediato, fortemente afetado pela crise em curso no mundo e na América Latina, quanto em termos mais estratégicos, como contribuição para uma superação dos problemas de hoje que signifique ganhos civilizacionais. Ou, para sermos mais diretos, o Brasil tem jeito?
Tem. O Brasil é uma ponta de luz no mundo. Tornamo-nos isso a partir da grande tragédia que foi a escravidão. Ela fez com que cada um de nós se sentisse culpado e conhecesse a compaixão. Viver sob uma ordem liberal, orientada desde a hora de fundação do Estado-nação, pelos ideais da civilização, e coexistir com a escravidão...
Proclamar a sua iniqüidade, como em José Bonifácio, e admitir a sua existência, mesmo que por um tempo que deveria ser breve – e que não foi – por falta de alternativas.
Tenho pensado muito nisso, na nossa visão compadecida, na presença da culpa em cada um de nós, que convivíamos com uma instituição desumana e para a qual não encontrávamos justificação, salvo as do mais estreito utilitarismo. Organizar essa circunstância aflitiva, agônica, implicou uma negociação ininterrompida em cada um, no sentido de conciliar princípios com práticas que os desautorizavam, de onde, especulo, nos veio a dialética como forma fundamental da nossa cognição. Não tenho medo de dizer que aprendemos a ter uma percepção dialética do mundo a partir da escravidão. Uma dialética sempre refratária à síntese, obrigando a negociação entre pólos opostos. Tudo deve ser negociado, e essa não é uma marca apenas do Brasil tradicional. Isso se reitera nas práticas políticas modernas - no fundo, a experiência da social-democracia brasileira, de FHC a Lula, é a da permanente negociação entre princípios e interesses. A escravidão nos obrigou a uma negociação permanente, inclusive porque, aqui, ela não implicou o afastamento americano, o apartheid. Hoje se considera que tolerância racial e tolerância religiosa, marcas do Brasil, não são lá muita coisa. Bom, agora quem mais tem isso do jeito que nós temos? Neste mundo de ódios raciais e guerras de religião isso é pouco?
Mas você então subscreve o Gilberto Freyre, o Joaquim Nabuco, que foram mais ou menos subestimados pela sociologia marxista no Brasil?
Em boa parte, sim. O diagnóstico da negociação tanto no plano da política como no da sociabilidade está presente neles. O fato é que nós temos sabido compor, de um modo ou de outro, duas matrizes de orientação diversa, e assim evitando, para o bem e para o mal, que conhecêssemos rupturas revolucionárias. O estilo beligerante pode ter sucesso em um público restrito, mas terá muita dificuldade para se universalizar. Entre nós, o político que tem conseguido passagem é aquele que se aproxima do modelo do negociador, como Vargas, JK, Fernando Henrique e Lula.
Sob certos aspectos são desvantagens amargas, mas das quais podemos obter algumas vantagens. Teria sido melhor para nossa trajetória se tivéssemos começado com uma revolução? Mas não começamos. Certamente a história seria outra. Mas não se pode perder de vista que a construção da civilização brasileira foi uma obra de arte política, não foi uma construção qualquer. E nossa passagem para o moderno também foi uma obra de arte política. Getúlio foi capaz de compor as elites emergentes com as tradicionais, favorecer os trabalhadores urbanos e alterar a identidade, a natureza do país, embora nos tenha deixado marcas difíceis de serem carregadas. O fato de tudo se passar sempre assim, expropriando-se a vontade popular e operando por cima, está na base de uma herança nefasta que temos de erradicar. Mas o julgamento da nossa história também tem de ser dialético. É impossível não valorizar Frei Caneca, mas, com ele, aquele Norte-Nordeste teria ido embora. Sem dúvida. Para o bem ou para o mal.
O Evaldo Cabral de Mello disse que seria para o bem, opondo-se ao José Murilo, que ele chama de “saquarema”.
É, saquarema. (Risos) Agora, essa história é que permitiu a vitória do Lula em 2002. A esquerda, naquele momento, podia mais uma vez ter jogado com tudo que tinha, ter convocado seus fantasmas. No entanto, ela foi fazer o quê? Foi revisitar a história, reconstituindo-a e legitimando-a. Porque uma coisa é consultar o inventário, pegar isso e aquilo, outra é convocar os fantasmas. Se os fantasmas fossem convocados, eles se desfariam em contato com a realidade. Porque não tem mundo para isso.
O mundo aponta em que direção? Uma sociedade civil mais forte, uma democracia ampliada...
Certamente, e os recentes avanços nessa direção não podem ser subestimados. A vida associativa em geral tem-se fortalecido bastante, embora ainda se mantenha distante da esfera pública tradicional, em boa parte por incapacidade dos partidos políticos e do desprestígio atual das instituições de representação política. Mas, veja-se o caso dos movimentos sociais quilombolas que têm descoberto o caminho para se atingir a esfera pública pela via do direito, seus procedimentos e instituições. O mesmo com os Sem-Teto, etc.
Mas, voltando à sua questão, quando sustento que temos jeito, penso em uma revalorização da nossa história, das nossas tradições, operadas por esse mundo novo, emergente, que brota por aí. Porque há o risco, talvez, de o mundo do passado ficar no passado, e esse moderno contingente que aí está criar indivíduos atomizados, inteiramente orientados para ideais de prosperidade, esvaziando-se de valores e de sociabilidade. O fato também de a grande inteligência brasileira ter sido deslocada, salvo alguns pouquíssimos personagens, é um outro problema. A universidade tornou-se um lugar de formação de profissionais, de especialistas. Mas o Brasil tem jeito. Vai depender também da política, de como nós vamos operá-la e facultar às novas gerações uma vida pública animada e centrada em valores da igual-liberdade e da fraternidade.
Como é que nós vamos lidar, na política, com esse mundo que está emergindo? Mesmo afirmando que temos jeito, preciso admitir também que faltam partidos, faltam personalidades exemplares, falta muita coisa. Mas é seguro que fizemos uma Constituição que se tem confirmado, em todos os grandes embates republicanos e em delicadas controvérsias recentes de interesses, como as que, entre outras, tiveram como objeto as terras da Raposa do Sol. Com ela, na medida em que se organiza, a sociedade tem em mãos um mapa confiável para continuar a perseguir objetivos de justiça social e de defender as garantias da liberdade.
Não tem feito em São Paulo...
Não tem feito em São Paulo... Quanto a isso não há dúvida. E a Dilma, fará? Poderá fazer, mas ela também não tem se chocado com o agronegócio. Ela vai suportar a pressão do agronegócio, com a alegação, por parte deste, de que sustenta o país e quer sustentar o mundo? O agronegócio tem, de fato, o argumento de que constitui uma base de lançamento estratégico para o Brasil na cena mundial, e a Dilma, ao que parece, não é a favor de algo como um jardim zoológico por aqui, e aparenta mais ser uma portadora do lema do desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Já o Lula, o que faz? “Olha, meus amigos do mundo agrário, venham os dois aqui, vamos conversar...”.
Sempre com jeitinho, e tem dado certo. O que poderia ter dramatizado a política brasileira não aconteceu: a luta pelo terceiro mandato. O que quer dizer o seguinte: o presidente subscreveu as instituições. Ele se alinhou nesta questão capital, fortaleceu as instituições, jogou as regras do jogo. Ponto.
A velha esquerda nacional-desenvolvimentista tinha um déficit de pensamento democrático (refiro-me aqui à democracia representativa). O PT traz em si alguns elementos constitutivos (como a esquerda egressa da luta armada ou o “populismo” de certas correntes do pensamento católico), mais afeitos à democracia substantiva ou aos mecanismos diretos de estruturação da vida política. Corremos o risco de, além do desenvolvimentismo, replicarmos o velho déficit democrático?
Devemos sempre ter em mente que o PT vive a dinâmica da democracia representativa.
As posições de força dentro do partido dependem muito do mandato parlamentar. Os parlamentares ouvidos, os políticos que falam para a sociedade são credenciados pelo mandato. Isso é totalmente distinto do partido político de esquerda dos anos 1950/1960 em que o mandatário era visto como um quadro menor na estrutura partidária, que cumpre ordens e não tem autonomia. Isso mudou. Os parlamentares começaram a ser quadros mais influentes do que os demais, tal como ocorrera na Itália, onde a tradição revolucionária também enfatizava o carisma do quadro, seu papel na estrutura organizacional e não no parlamento. Essa passagem, no PT, já foi feita cabalmente. E não tem volta. O Genoíno, o Zé Dirceu, que está sem mandato agora, mas vai voltar, o Palocci, enfim, todos buscam sua legitimação como quadros parlamentares.
Quanto à posição do PT, ao medo de que o partido não valorize as instituições da democracia representativa, essa é uma questão mais complicada. Como será o petismo sem Lula? Esse é o grande problema. Um dilema muito curioso, esse da formação do PT. Isso já foi visto várias vezes, tanta gente escreveu sobre este dado, digamos, xiita da formação. O partido chega para atingir um determinado objetivo, não tem como atingi-lo, a não ser parcialmente e na dependência pessoal do chefe. Então, todos ficam nesta dependência e monta-se um equilíbrio que não tem como ser quebrado, até que o próprio chefe se autonomiza e declara: “O programa do partido não me regula, eu me adapto às circunstâncias. Sou um político de faro, de intuição. Sou um político pragmático”.
Como o Zelig, do Woody Allen... Mas, nessa perspectiva, o PT sem a presidência Lula, vai ter uma queda forte? Ou seja, o sucesso do Lula se teria dado em detrimento do partido, pelo menos até certo ponto?
Terá uma queda, sim. E o sucesso do Lula, paradoxalmente, fez com que a estrutura partidária ficasse ainda mais desfalecida. O que a direita pretende com essa campanha que tem como alvo preferencial o Sarney? Está querendo demolir a democracia representativa? Não é o caso. Pretende quebrar o PMDB? Certamente. Seu objetivo é impedir que o PMDB se torne uma plataforma de lançamento da candidatura Dilma?
Certamente, também. Mas está difícil perceber a natureza desse movimento mais recente da política, porque há algo nele que é geral, universal, que tem a ver com a valorização do princípio da moralidade pública. O tema da moralidade pública é um tema emergente no mundo. E é muitíssimo democrático. Li o depoimento de um ministro da Suprema Corte Americana, que diz passar alguns dias da sua vida sem pensar noutra coisa senão elaborando a sua prestação de contas anuais. Se essa prestação não for minuciosamente correta, aparece um promotor e... Esse é um novo mundo, uma nova ordem. E quem não entende isso, perde, é derrotado. A democracia tem isso: vai avançando e vai assustando também. A propósito, esse é um dos argumentos do Tocqueville. Há algo nisso que é inexorável.
Uma palavra, ainda, sobre a contribuição brasileira tanto no plano mais imediato, fortemente afetado pela crise em curso no mundo e na América Latina, quanto em termos mais estratégicos, como contribuição para uma superação dos problemas de hoje que signifique ganhos civilizacionais. Ou, para sermos mais diretos, o Brasil tem jeito?
Tem. O Brasil é uma ponta de luz no mundo. Tornamo-nos isso a partir da grande tragédia que foi a escravidão. Ela fez com que cada um de nós se sentisse culpado e conhecesse a compaixão. Viver sob uma ordem liberal, orientada desde a hora de fundação do Estado-nação, pelos ideais da civilização, e coexistir com a escravidão...
Proclamar a sua iniqüidade, como em José Bonifácio, e admitir a sua existência, mesmo que por um tempo que deveria ser breve – e que não foi – por falta de alternativas.
Tenho pensado muito nisso, na nossa visão compadecida, na presença da culpa em cada um de nós, que convivíamos com uma instituição desumana e para a qual não encontrávamos justificação, salvo as do mais estreito utilitarismo. Organizar essa circunstância aflitiva, agônica, implicou uma negociação ininterrompida em cada um, no sentido de conciliar princípios com práticas que os desautorizavam, de onde, especulo, nos veio a dialética como forma fundamental da nossa cognição. Não tenho medo de dizer que aprendemos a ter uma percepção dialética do mundo a partir da escravidão. Uma dialética sempre refratária à síntese, obrigando a negociação entre pólos opostos. Tudo deve ser negociado, e essa não é uma marca apenas do Brasil tradicional. Isso se reitera nas práticas políticas modernas - no fundo, a experiência da social-democracia brasileira, de FHC a Lula, é a da permanente negociação entre princípios e interesses. A escravidão nos obrigou a uma negociação permanente, inclusive porque, aqui, ela não implicou o afastamento americano, o apartheid. Hoje se considera que tolerância racial e tolerância religiosa, marcas do Brasil, não são lá muita coisa. Bom, agora quem mais tem isso do jeito que nós temos? Neste mundo de ódios raciais e guerras de religião isso é pouco?
Mas você então subscreve o Gilberto Freyre, o Joaquim Nabuco, que foram mais ou menos subestimados pela sociologia marxista no Brasil?
Em boa parte, sim. O diagnóstico da negociação tanto no plano da política como no da sociabilidade está presente neles. O fato é que nós temos sabido compor, de um modo ou de outro, duas matrizes de orientação diversa, e assim evitando, para o bem e para o mal, que conhecêssemos rupturas revolucionárias. O estilo beligerante pode ter sucesso em um público restrito, mas terá muita dificuldade para se universalizar. Entre nós, o político que tem conseguido passagem é aquele que se aproxima do modelo do negociador, como Vargas, JK, Fernando Henrique e Lula.
Sob certos aspectos são desvantagens amargas, mas das quais podemos obter algumas vantagens. Teria sido melhor para nossa trajetória se tivéssemos começado com uma revolução? Mas não começamos. Certamente a história seria outra. Mas não se pode perder de vista que a construção da civilização brasileira foi uma obra de arte política, não foi uma construção qualquer. E nossa passagem para o moderno também foi uma obra de arte política. Getúlio foi capaz de compor as elites emergentes com as tradicionais, favorecer os trabalhadores urbanos e alterar a identidade, a natureza do país, embora nos tenha deixado marcas difíceis de serem carregadas. O fato de tudo se passar sempre assim, expropriando-se a vontade popular e operando por cima, está na base de uma herança nefasta que temos de erradicar. Mas o julgamento da nossa história também tem de ser dialético. É impossível não valorizar Frei Caneca, mas, com ele, aquele Norte-Nordeste teria ido embora. Sem dúvida. Para o bem ou para o mal.
O Evaldo Cabral de Mello disse que seria para o bem, opondo-se ao José Murilo, que ele chama de “saquarema”.
É, saquarema. (Risos) Agora, essa história é que permitiu a vitória do Lula em 2002. A esquerda, naquele momento, podia mais uma vez ter jogado com tudo que tinha, ter convocado seus fantasmas. No entanto, ela foi fazer o quê? Foi revisitar a história, reconstituindo-a e legitimando-a. Porque uma coisa é consultar o inventário, pegar isso e aquilo, outra é convocar os fantasmas. Se os fantasmas fossem convocados, eles se desfariam em contato com a realidade. Porque não tem mundo para isso.
O mundo aponta em que direção? Uma sociedade civil mais forte, uma democracia ampliada...
Certamente, e os recentes avanços nessa direção não podem ser subestimados. A vida associativa em geral tem-se fortalecido bastante, embora ainda se mantenha distante da esfera pública tradicional, em boa parte por incapacidade dos partidos políticos e do desprestígio atual das instituições de representação política. Mas, veja-se o caso dos movimentos sociais quilombolas que têm descoberto o caminho para se atingir a esfera pública pela via do direito, seus procedimentos e instituições. O mesmo com os Sem-Teto, etc.
Mas, voltando à sua questão, quando sustento que temos jeito, penso em uma revalorização da nossa história, das nossas tradições, operadas por esse mundo novo, emergente, que brota por aí. Porque há o risco, talvez, de o mundo do passado ficar no passado, e esse moderno contingente que aí está criar indivíduos atomizados, inteiramente orientados para ideais de prosperidade, esvaziando-se de valores e de sociabilidade. O fato também de a grande inteligência brasileira ter sido deslocada, salvo alguns pouquíssimos personagens, é um outro problema. A universidade tornou-se um lugar de formação de profissionais, de especialistas. Mas o Brasil tem jeito. Vai depender também da política, de como nós vamos operá-la e facultar às novas gerações uma vida pública animada e centrada em valores da igual-liberdade e da fraternidade.
Como é que nós vamos lidar, na política, com esse mundo que está emergindo? Mesmo afirmando que temos jeito, preciso admitir também que faltam partidos, faltam personalidades exemplares, falta muita coisa. Mas é seguro que fizemos uma Constituição que se tem confirmado, em todos os grandes embates republicanos e em delicadas controvérsias recentes de interesses, como as que, entre outras, tiveram como objeto as terras da Raposa do Sol. Com ela, na medida em que se organiza, a sociedade tem em mãos um mapa confiável para continuar a perseguir objetivos de justiça social e de defender as garantias da liberdade.
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