Nem o pior inimigo de Israel deveria negar que esse país é uma democracia,
por longo tempo a única no Oriente Médio, e ainda hoje a mais antiga na região.
Nem o melhor amigo de Israel deveria negar que seus governos têm enorme
responsabilidade pela infindável crise da região, ainda hoje a maior ameaça à
paz mundial, além de fonte de sofrimento para milhões de pessoas.
Esse é o paradoxo: como uma democracia, o melhor regime que existe (ou o
pior, tirando todos os outros, como disse Churchill), pode gerar problemas
dessa monta? É que Israel é uma democracia de exceção, como por sinal os
Estados Unidos, entendendo por esse termo um regime democrático diferente de
praticamente todos os outros.
As colônias inglesas da América do Norte nascem, no século XVII, com duas
grandes características: são democráticas, exercem o autogoverno mais até do
que a Inglaterra, de onde seus pioneiros vêm - e escravizam negros. Essa
contradição entre liberdade e anti-liberdade marcará os Estados Unidos desde o
início. Levará à guerra civil de 1861 e, um século depois, à quase-guerra civil
da década de 1960, que resulta no reconhecimento de direitos humanos aos
negros. Mas tal situação é única no mundo moderno. Em todos os outros países
que se tornaram democráticos depois deles, a democracia veio junto com os
direitos humanos. À medida que uma nação se democratizava, ela abolia a
escravatura. Assim foi na América do Sul. A Revolução Francesa constitui o caso
mais emblemático, porque a escravidão é abolida em 1794, restabelecida quando
Napoleão institui o regime autoritário, para ser finalmente extinta graças à
Revolução de 1848. Com frequência, a abolição era um prelúdio à democratização.
Democracia com escravidão é um absurdo. Só nos Estados Unidos um sistema
pujante - e o mais pujante do mundo, à época - de autogoverno conviveu com a
escravidão e, depois, com um apartheid assustador.
Democracia não convive com discriminação
Essa situação lembra a democracia antiga: nas cidades-Estado gregas que eram
democráticas, bem como na Roma republicana, havia escravos - e também eram
discriminados os estrangeiros e seus descendentes. Na modernidade, porém, não é
assim. A escravidão e também o preconceito são hoje considerados incompatíveis
com a democracia. Aliás, vejam outro paradoxo: Eleanor Roosevelt, viúva de
Franklin Roosevelt, presidiu a redação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, como representante de seu país na ONU; mas, nas duas décadas
que se seguiram, os Estados Unidos foram um dos países que mais violaram a declaração,
tratando pessimamente, no Sul, os negros. Com muita luta, a situação dos
afro-americanos melhorou extraordinariamente, e hoje os Estados Unidos esquecem
esse passado horrível, quando defendem os direitos humanos no resto do mundo.
Mas, em suma, a "instituição peculiar" do Sul americano convivia,
ainda que mal, com a democracia.
O que tem Israel a ver com isso? É também um Estado que pratica, junto com
uma inegável democracia, uma relação ao menos tensa, com frequência
discriminatória, em face dos seus "outros". Seria um absurdo
chamá-los de escravos - e não o faço - mas acabam sendo o que os americanos,
numa expressão curiosa, chamam de "non-citizens". No restante do
mundo, inclusive no Brasil, cidadão é o titular de direitos no país em que
vive, mas isso não depende apenas da nacionalidade. Estrangeiros têm quase
todos os direitos do nativo. Não usamos, para o estrangeiro, esse termo
esquisito: "não cidadão". Ora, é nessa situação que vivem os árabes
do quase-protetorado palestino, e também parte dos que moram em Israel
propriamente dito. É lógico que haverá sutilezas. Não tenho dúvidas de que é
bem melhor ser árabe em Israel do que judeu num país árabe. Mas aqui está o
problema: Israel nasce como democracia, só que nasce em conflito não apenas com
o inimigo externo, mas com uma forte minoria árabe.
Pode a democracia servir só para uma parte da sociedade - os brancos, nos
Estados Unidos pré-década de 1960, ou os judeus, na Israel de hoje? Pode um
regime que reconhece a igualdade de todos no voto e a liberdade de escolher seu
destino conciliar-se com a exclusão de parte substancial da sociedade? Não
acredito. A discriminação corrói a sociedade. Ela corrompe os laços sociais.
Nos Estados Unidos, foram necessárias décadas de luta para eliminar o que ela tinha
de pior. Na década de 1960, o país esteve à beira de uma nova guerra civil. Em
Israel, vê-se a erosão política na decadência das equipes de governo, com o
avanço de políticos demagogos. A cadeira de Ben Gurion hoje é ocupada por
Netanyahu... Um dia, isso terá de mudar. Dependerá essencialmente dos
israelenses. Outros - os palestinos, os cidadãos dos países árabes e a opinião
internacional - podem e devem ajudar. A pressão internacional certamente pode
contribuir. Mas a decisão está na mão dos cidadãos de Israel. É uma questão
grave que entre 1956, com o ataque a Suez, e 1991, com o fim da União
Soviética, colocou no horizonte a possibilidade de uma guerra mundial. Hoje
esta diminuiu, mas não foi por mérito dos atores regionais e sim graças à
geopolítica global.
Contudo, reitero que nada, do que digo, justifica o antissemitismo ou
qualquer tentativa de destruir o Estado judeu. Ele existe, faz parte do
panorama, tem que melhorar. Como os Estados árabes, por sinal, agora que a
democracia desponta na Tunísia e no Egito. Aliás, se cobro aqui mais de Israel
é justamente porque esse país tem quase 70 anos de democracia, o que é uma
qualidade, mas que o duplo padrão de conduta coloca fortemente em xeque.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
Valor Econômico
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