- O Estado de S. Paulo
Segundo os jornalistas, um capitão do Exército brasileiro criou perfil falso em redes sociais como o Tinder para se aproximar de jovens que pretendiam protestar contra o governo Temer
Às vezes dá a impressão de que o Brasil voltou ao começo dos anos 80. São tantas coisas estranhas que o País parece ter virado uma Hawkins, a cidade imaginária da série Stranger Things da Netflix. Talvez não haja um bicho-papão como na obra de ficção, mas definitivamente há coisas que estão de ponta-cabeça.
A exemplo dos amigos Mike, Dustin e Lucas - personagens centrais dos Duffer Brothers -, os repórteres Fausto Salvadori e Marina Rossi descobriram, em apurações independentes, uma história aparentemente inacreditável sobre ações secretas de agentes governamentais. Descrevem que há oficiais usando disfarces, mobilizando tropas e helicópteros para assustar adolescentes.
Segundo os jornalistas, um capitão do Exército brasileiro criou perfil falso em redes sociais como o Tinder para se aproximar de jovens que pretendiam protestar contra o governo Temer. Depois de se juntar ao grupo se passando por militante, ajudou a Polícia Militar paulista a armar flagrante fajuto e “prender para averiguação” 21 adolescentes cujo crime era se manifestar. Nem o juiz encarregado do caso parece ter acreditado no que viu.
“Vivemos dias tristes para nossa democracia. Triste do país que seus cidadãos precisam aguentar tudo de boca fechada”, escreveu o magistrado na sentença de soltura. E acrescentou: “O Brasil (…) não pode legitimar a atuação policial de praticar ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou”.
Talvez sim, talvez não. A descoberta reforça outras histórias, reveladas em 2013, no auge das manifestações de junho, sobre a atuação de policiais militares entre os black blocs. É tática clássica de aparelhos de segurança em todo o mundo infiltrar agentes nos protestos, provocar confusão para justificar a repressão violenta e, assim, amedrontar os manifestantes. Se havia então os grey blocs, parece haver agora green blocs.
No universo paralelo criado pela cabeça de alguns responsáveis pela segurança nacional e estadual, tudo indica ser mais importante gastar os escassos recursos públicos para intimidar jovens rebeldes do que, por exemplo, desbaratar grupos do crime organizado que aterrorizam cidades inteiras explodindo carros-fortes, provocando incêndios a esmo e matando policiais.
Reforça-se a impressão de que o objetivo é a simples intimidação dos protestantes quando se lê que os processos contra os detidos acusados de fazer baderna no meio das manifestações não andam. Na maioria, os acusados estão livres para voltar às ruas e, se quiserem, retomar o quebra-quebra - e, dessa maneira, reiniciar o ciclo de violência, repressão e desmobilização de 2013.
Se o Brasil não voltou a 1983 é porque há eleições livres para todos os cargos e quase qualquer um pode se candidatar - inclusive quem, um dia, foi contra essas eleições.
Outra diferença em relação a 30 anos atrás é que o papel político que as Forças Armadas desempenharam durante longo tempo na história do Brasil está sendo ocupado por outros militares, os policiais. Basta ver a quantidade de cabos, tenentes, capitães e coronéis na propaganda eleitoral - fora delegados. Na grande maioria, prometem mais segurança para a população.
Não é coincidência o fato de a participação política de policiais aumentar justamente quando a insegurança é maior. Projetam, com sucesso, a ideia de que apenas com a polícia e seus representantes ganhando mais poder político é possível combater a violência e, mais recentemente, a corrupção.
Paradoxalmente, se o policiamento é ineficaz, aumenta a sensação de insegurança, e, por tabela, a chance de quem carrega a bandeira eleitoral da segurança. É daquelas coisas estranhas que faz parecer que o Brasil virou de ponta-cabeça.
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