- Folha de S. Paulo
Wolff está dizendo que Trump é um tigre de papel; divirta-se com o livro mas não acredite nisso
"Ele nada sabe sobre a política americana e nada entende sobre o povo americano", teria dito Steve Bannon a Trump, referindo-se ao magnata da mídia Rupert Murdoch, segundo o relato de Michael Wolff.
O best-seller de Wolff, "Fire and Fury", é jornalismo pós-moderno: fofoca da primeira à última linha. Isso não quer dizer que não seja atraente (pelo contrário, aliás) ou, sob certos aspectos superficiais, politicamente útil. Mas a frase sobre Murdoch, que Bannon pode ou não ter proferido, aplica-se perfeitamente a Wolff. Segue daí que seu livro é incapaz de desvendar o que se passa nos EUA.
Jornalismo sempre tem limites, mas não custa tentar um pouco. "Fire and Fury" passa ao largo das correntes ideológicas profundas que moldam o governo Trump. Personalidades têm, obviamente, a sua importância, mas seria preciso levar em conta algo mais do que elas. Os neocons de George W. Bush, responsáveis pela invasão do Iraque e suas desastrosas implicações, eram figuras cultas, sofisticadas.
Os nacionalistas que cercam Trump, como Bannon et caterva, são figuras intelectualmente primitivas. Contudo, operam na hora certa e no lugar certo. Por isso, tanto quanto os neocons na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001, são capazes de colocar em prática a parte crucial de seu programa sombrio.
Visto pelas lentes do jornalismo pós-moderno, o governo Trump surge como uma máquina descalibrada, terminalmente disfuncional. De fato, porém, no final de seu primeiro ano de poder, Trump conseguiu entrelaçar a alt-right (a "direita alternativa"), nativista e xenófoba, com a corrente dominante, ultraliberal, do Partido Republicano.
Os cortes de impostos aprovados há pouco, extensas medidas de desregulamentação, a abertura de terras protegidas à exploração econômica e a ofensiva contra a imigração marcam o front interno do trumpismo. Já o front externo está balizado por sucessivas rupturas com a ordem global multilateral: TPP, Nafta, Tratado de Paris, Unesco, Jerusalém. Algo se move, para além da guerra intestina que consome a corte trumpiana.
Muito já se escreveu sobre o contraste brutal entre a ordem, disciplina e unidade de propósitos da Casa Branca de Obama e a perene cizânia, a constrangedora balbúrdia da Casa Branca de Trump.
Wolff oferece-nos um relato do reality show que se faz passar por governo da maior potência do mundo. A coisa toda -um interminável desfile de egos inflados, vaidades, mesquinharia e golpes abaixo da cintura- oscila entre o cômico e o repulsivo. O próprio presidente, tal como supostamente descrito por pessoas do seu círculo mais próximo, não passaria de um quase idiota.
A conclusão, implícita, mas inevitável, é que Trump representaria apenas um fugaz acidente histórico, um desvio passageiro, inconsequente, na trajetória dos EUA. Nessa linha de raciocínio, não existiriam motivos reais de preocupação (desde que, claro, alguém cuidasse de afastar o dedo trumpiano daquele célebre botão nuclear). Nas palavras de Hélio Schwartsman (Folha, 10/1): "A única coisa reconfortante que surge do retrato de caótico improviso na Casa Branca é que todos ali são tão despreparados e entraram numa dinâmica tão autodestrutiva que Trump não conseguirá cumprir a maior parte de suas piores promessas de campanha".
Exceto que, notoriamente, as "piores promessas de campanha" já se converteram em leis, decisões, políticas efetivas e programas em andamento.
Trump desconectou-se da realidade -o diagnóstico do "Fire and Fury" equivale a jogar a toalha. É uma declaração de rendição, uma abdicação do dever de denunciar o nacionalismo trumpiano e identificar o desastre em curso. Wolff, um profissional qualificado do setor de entretenimento, está dizendo que Trump é um tigre de papel. Divirta-se com o livro, mas não acredite nisso.
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*Demétrio Magnoli é sociólogo
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