Valor Econômico
Made, da USP, fecha lacuna importante no
debate econômico
Há exatos 40 anos os brasileiros são
confrontados com duas palavras que, periodicamente ditas em Brasília,
significam que a vida de muita gente, mas não de todos, vai piorar: ajuste
fiscal. E o que é um ajuste fiscal? Sem eufemismo, é a redução da renda
disponível tanto dos cidadãos quanto das empresas. Governos, desde sempre,
fazem isso por meio de dois instrumentos: aumento de impostos e corte de
despesas públicas.
Esse dinheiro que sai do bolso de
indivíduos e de companhias não aumenta a disponibilidade dos Estados nacionais.
Os recursos são usados para reduzir o endividamento público, de maneira que, em
até cinco anos, o setor público reduza a sua necessidade de tomar dinheiro do
mercado para se financiar e, assim, estimule o aumento da poupança privada,
fonte do financiamento dos investimentos das empresas. Sob essa justificativa,
dinheiro público foi usado à mancheia para cobrir rombos de empresas públicas e
privadas, quando não, salvar bancos. Em alguns casos, o dinheiro dos
contribuintes serviu para aumentar a margem de lucro de grandes empresas, que
não deram a contrapartida acordada com seu benfeitor (o erátrio público) -
investir mais, portanto, contratar trabalhadores, gerar renda...
Em tese, governantes são eleitos para aumentar a renda disponível da população e, sim, criar condições para que as empresas produzam e lucrem mais, de forma a gerar empregos e cada vez mais renda. Ocorre que ainda não se inventou um modelo econômico imune a crises periódicas - o socialismo real não funcionou como alternativa porque prescindiu de um valor inerente ao homem, que é a liberdade, e falhou também como alternativa econômica, uma vez que não foi capaz de gerar a riqueza necessária ao atendimento das necessidades básicas dos cidadãos.
As crises do sistema capitalista sempre
demandaram, ao fim de ciclos ou de eventos imprevisíveis, como a recente
pandemia, ajuste fiscal, rebatizado recentemente por outro eufemismo -
“consolidação” fiscal. A dimensão política desses processos, em democracias,
como a brasileira, reféns historicamente da concentração do poder econômico nas
mãos de poucos, define quem ganha e quem perde com as “consolidações” fiscais.
Quem tem maior poder de representação em
Brasília perde menos ou até ganha em momentos de crise, como o atual; quem
perde sempre são aqueles que só conhecem a capital federal em fotografias
publicadas em redes sociais e cujos pais a vislumbraram apenas em cartões
postais.
A democracia brasileira já viveu dias
melhores desde a retomada da eleição direta para Presidente da República, em
1989. Como não se encerra no voto, é resultado de sua consolidação como o
regime político mais adequado tanto ao progresso de uma nação quanto à busca
incessante do bem-estar e da igualdade de oportunidades para todos, a
democracia depende da construção de instituições que, ao longo do tempo,
funcionam como garantia de sua estabilidade e permanência.
As duas palavrinhas, singelas no papel (ou
na tela) e muitas vezes devastadoras para milhões de pessoas, voltaram ao
debate, passado o que se considera ser o pior momento da crise sanitária. O bom
é que há boas novidades nessa discussão. Quatro economistas do Made, centro da
USP de pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades) - Dante de Souza Cardoso,
Matias Cardomingo, Marina Sanches, Theo Ribas e Fernanda Peron Pereira acabam
de concluir um estudo econométrico sobre os impactos de ajustes fiscais sobre a
distribuição de renda e o crescimento econômico na América do Sul.
Os autores iluminam o tema ao recorrer à
vasta literatura que vem sendo produzida sobre o principal dilema vivido pelos
formuladores de política econômica desde a crise mundial de 2008. Até o passado
recente, ajustes fiscais, principalmente no Brasil, ignoravam as consequências
sobre crescimento a médio e longo prazo e desigualdade de renda. Constatou-se,
no âmbito dos países que integram a OCDE, que, ao contrário do que se previa,
os processos de consolidação fiscal pós-2008, derrubaram as taxas de
crescimento no médio prazo.
Os economistas do Made analisaram
detalhadamente os modelos de ajuste fiscal e chegaram a conclusões reveladoras.
“Quando consideramos ajustes fiscais majoritariamente baseados em impostos
diretos, há uma queda na desigualdade no período analisado [pós-2008], enquanto
que para consolidações fiscais majoritariamente baseadas em impostos indiretos,
não foi possível encontrar um efeito estatisticamente diferente de zero sobre a
desigualdade”, diz os autores no texto.
“Políticas que tenham por objetivo diminuir
a desigualdade de renda podem não somente tornar as sociedades mais justas,
como também ter consequências positivas sobre a atividade econômica. Neste
sentido, mesmo diante de episódios contracionistas de ajuste fiscal, uma
política tributária mais progressiva, baseada em impostos diretos, pode
contrabalancear tais efeitos adversos por meio de impactos distributivos que
atuam de forma benéfica sobre o dinamismo econômico.”
Lacuna fechada
O Made foi idealizado e criado pela
economista Laura Carvalho, professora da USP, para fechar uma lacuna no debate
econômico brasileiro, cujos protagonistas têm mais “convicções” do que seus
pares no restante do mundo. Antes dessa iniciativa, apenas o Instituto
Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV-Rio, graças ao gigante Luiz Guilherme
Schymura, tratava dos efeitos de decisões tomadas em Brasília sobre a vida real
de quem mais paga pelos ajustes fiscais - os pobres e miseráveis.
No Ibre, Schymura foi de uma heresia só ao incendiar a igreja onde apenas economistas - todos de altíssima qualidade - do mesmo credo conviviam - hoje, confrontam-se ideias no Ibre, instituição que calculava as contas nacionais antes da fundação do IBGE, e isso é muito melhor e mais produtivo. No Made, Laura abre uma avenida para as novas gerações de economistas como ela estudarem a realidade brasileira, considerando o fato de que somos uma país profundamente desigual.
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