O Estado de S. Paulo
Se a experiência do socialismo real não
refletiu a teoria de Karl Marx, tampouco o capitalismo real tem refletido a
teoria de Smith, que completou 300 anos em 5 de junho
Aquele que é considerado o pai da economia
moderna não se apresentava como economista. Ao que parece, esse título já
existia à época, mas Adam Smith preferiu deixá-lo para outros estudiosos,
referindo-se a si próprio como filósofo moral. Sua apresentação autoriza o
entendimento de que seus livros devem ser considerados como uma só e única
obra.
Fruto de suas aulas de filosofia moral, Smith legou-nos dois livros: Teoria dos sentimentos morais, buscando identificar a origem da moralidade no indivíduo; e A riqueza das nações, descrevendo o funcionamento dos aglomerados humanos, sob uma perspectiva social. Em ambos, como admirador de Isaac Newton, Smith adotou o método descritivo e indutivo: não havia hipóteses a priori a serem confirmadas ou refutadas; a pesquisa conduziria às conclusões sobre eventual existência de padrões de comportamento individual e social. Por ter focado o estudo nas humanidades, seu método se aproximou da Antropologia e mesmo da Psicologia – cuja consideração faz toda a diferença para interpretar sua teoria.
Seu “tratado de economia” traz o interesse
próprio como conceito essencial – talvez o parágrafo mais conhecido, mais
citado e menos compreendido do seu segundo livro. Esse conceito não pode ser
entendido sem ser iluminado pela teoria desenvolvida no primeiro livro. Podemos
considerar que o interesse próprio, para Smith, não se restringe necessária e
exclusivamente ao interesse econômico. De acordo com sua teoria, a moralidade
teria origem no “sentimento” de simpatia. Por simpatia devemos entender o
interesse de compartilhar os sentimentos das outras pessoas e de que elas
compartilhem nossos próprios sentimentos. Trata-se, basicamente, de ser
inserido e aceito no agrupamento social. Desse fundamento decorrem diversos
outros conceitos complementares.
Primeiro, a liberdade deve ser garantida
para que os indivíduos manifestem e persigam seus interesses – econômicos,
sociais e morais. Nesse sentido, o interesse próprio acaba por identificar o
indivíduo, revelando suas pretensões e suas características, seu caráter. Numa
palavra atual: seu propósito. Depois, a liberdade implica reconhecer algo que é
seu, não apenas no campo psicológico ou moral, mas também no campo econômico.
Faz-se necessária a promoção e a proteção da propriedade privada. Se todas as
pessoas têm interesse próprio e podem manifestá-lo e persegui-lo livremente, a
todas as pessoas deve ser garantida a propriedade privada. Por fim, a
diversidade de interesses individuais conduz à natural divisão do trabalho.
Neste ponto, há uma relação intrínseca com o propósito acima mencionado (e o
caráter): os interesses próprios são individuais; no convívio social, eles são,
de um lado, particulares, de outro, complementares. Esse é um dos motivos por
que a divisão do trabalho, ao mesmo tempo que valoriza o interesse próprio
individual, aumenta a eficiência econômica da produção, ao conduzir às tarefas
especializadas.
Adam Smith, então, conclui que os
sentimentos morais dependem das relações estabelecidas entre os indivíduos: o
convívio em grupo e as trocas entre as pessoas moldam a moralidade de cada
indivíduo e da coletividade. Vejamos: a simpatia significa o compartilhamento
de sentimentos entre os indivíduos, que por sua vez decorrem dos interesses
próprios de cada um; o encontro desses interesses no ambiente coletivo induz à
percepção do que convém e do que não convém, ou seja, ao reconhecimento de
padrões de comportamento. Em conclusão, estabelecer sistemas de contatos e de
trocas é fundamental para o aprimoramento da moralidade. Daí o incentivo e a
defesa radical de Smith pelo comércio: um sistema de trocas de excedentes
materiais (trocas econômicas) e também de contato interindividual, de rituais
coletivos, vale dizer, de trocas imateriais, psicológicas e morais (como
comprovado por pesquisas antropológicas recentes).
Nas trocas comerciais, Smith estabelece
certa igualdade entre os diversos agentes do mercado, sem privilegiar ou
discriminar esta ou aquela categoria – o atual capitalismo de stakeholders.
Exemplos disso são a argumentação de que o salário dos trabalhadores deve
garantir o sustento mínimo, além de conforto, e o combate aos lucros
extraordinários ou especulativos, que ele identifica como capital improdutivo.
Mas o que dizer sobre a “mão invisível”? De
pronto, convém esclarecer que na obra de mais de 1.800 páginas essa expressão
foi referida apenas duas vezes (uma em cada livro). Há, aqui, clara influência
de Isaac Newton: Smith tentou descobrir regras socioeconômicas assim como as
leis da Física. A evolução da Física Quântica pode contribuir para entender
esse ponto: enquanto no micro (em nível individual) possa haver o caos, no
macro (em nível social) há ordem. Smith demonstra, assim, um certo otimismo.
Enfim, se a experiência do socialismo real
não refletiu a teoria de Karl Marx, tampouco o capitalismo real tem refletido a
teoria de Adam Smith, que completou 300 anos no dia 5 de junho de 2023.
*Doutor em Direito pela PUC/SP, professor
da FGV Direito SP e da Eaesp, é advogado em São Paulo
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