Folha de S. Paulo
Bolsonarismo sobrevive como comunidade
noturna onde não é preciso abrir olhos nem consciência
Aquilo que os analistas políticos têm
chamado de "bolsonarismo" não é mero condensado de clichês da extrema
direita, mas basicamente uma rede de sinergia onde corpos vulneráveis
aglutinam-se por ressentimento, em busca de "outro lado" da política
e do social. Na prática, uma coxia de desconchavos que podem variar da fantasia
senil de uma senadora de transformar a Ilha de Marajó num principado até a
comparação estapafúrdia de professores a traficantes feita por um deputado. Ao
olhar sensível, um campo vibratório de fatos negativos.
De fato, o homem, além daquilo que pensa, é igualmente o que vibra. As manifestações ao mesmo tempo sentidas e efusivas no velório do teatrólogo José Celso ilustram claramente como, até mesmo na morte, uma existência plena de criatividade e amor de mundo pode vibrar como "celebração à vida".
Nessa época em que se esfumam as fronteiras
corporais entre máquinas e homens, vale ponderar também sobre analogias
possíveis entre o mundo animal, em suas diferentes escalas, e o humano.
Cientistas japoneses descobriram agora como um verme de apenas um milímetro
consegue lançar-se a grande distância: aproveita a eletricidade natural de
determinados insetos voadores para projetar-se ao ar como um ínfimo drone. Em
termos breves, trata-se da formação de um campo vibratório que inclui o pequeno
invertebrado e seres de maiores dimensões.
O cânone do pensamento social centra-se
basicamente nas relações codificadas entre o Estado e o "socius",
abrindo algum espaço para a interioridade individual. Deixa de lado o plano
pouco perceptível das microinterações, no fenômeno variado da atração social, onde
se podem divisar, entretanto, mecanismos sensíveis com potência de contato
intersubjetivo. O corpo humano é sempre uma encruzilhada de práticas de conexão
e vibração.
Esse plano abre caminho, no entanto, à
compreensão de como consciências imobilizadas em estereótipos identitários
possam de repente alçar-se de seus papéis congelados e revestir-se de outra
imaginação de corpo próprio. O fenômeno requer um campo identificado não pelo
conteúdo racionalista de noções, mas pela pulsação de fantasias primitivas: uma
mobilização corporal do imaginário.
Isso é vibração que, assim como no verme
pesquisado, provém da eletricidade das redes sociais. Mas não só. O campo
negativista do bolsonarismo sobrevive como uma comunidade "noturna",
abrigada na obscuridade dos porões, internos e externos, onde não é preciso
abrir os olhos nem a consciência. Basta deixar solto o psiquismo troncho à
espera do impulso vibratório.
Isso não tem provavelmente nenhum futuro
político, nem sequer na direita. Mas o voo do verme pode ser socialmente
corrosivo, senão fator ambiental de doença psíquica para os concidadãos.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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