domingo, 8 de dezembro de 2024

O 'mercado' falou e traiu-se - Elio Gaspari

O Globo

Pensamento reacionário sustenta que os avanços sociais prejudicam aqueles que pretendem beneficiar

Uma pesquisa da Genial/Quaest ouviu 102 operadores do mercado financeiro do Rio e de São Paulo para aferir o que eles pensam a respeito do governo. Resultou um prenúncio do fim do mundo: 98 acreditam que a economia vai piorar, 90 não confiam no governo e 85 acham que a isenção do imposto de renda para quem ganha até cinco salários mínimos é prejudicial.

Esse resultado tem cara e coroa. Num lado, mostra o que pensa o “mercado”, no outro, como pensa esse mesmo “mercado”. (Paul Volcker, o gigante que dirigiu o Banco Central americano, colocava a palavra entre aspas porque não sabia o que era esse ectoplasma.)

A divulgação dessa pesquisa coincidiu com novos dados sobre a situação de Pindorama. Com números de 2023, o IBGE informou que a pobreza extrema caiu de 31,6% para 27,4%. Em números absolutos os pobres eram 67,7 milhões e ficaram em 59 milhões.

O “mercado” acha que a isenção da cobrança de Imposto de Renda para o andar de baixo prejudica a economia. Ecoa um velho trabalho do professor Albert Hirschman (1915-2012) no qual ele mostrou como o pensamento reacionário sustenta que os avanços sociais prejudicam aqueles que pretendem beneficiar.

O governo quer compensar a perda de arrecadação estimada em R$ 35 bilhões, resultante de um alívio para o andar de baixo, cobrando uma alíquota de até 10% para quem tem renda superior a R$ 600 mil por ano e paga menos que isso.

Trata-se de uma forma astuciosa (ou marota) de taxar dividendos. Pega leve em profissionais liberais e pesado no andar de cima. O médico que fatura R$ 600 mil no ano e já paga imposto de renda, tomará uma dentada. Já o milionário que fatura R$ 10 milhões e pode vir a pagar menos imposto que o médico, tomará uma mordida de R$ 1 milhão. É disso que o “mercado” não gosta.

Um bafo do século XIX sobre o XXI

Pindorama tem as suas peculiaridades. Vive-se num dos países socialmente mais desiguais e todos são contra a desigualdade, desde que a conta vá para o outro.

Imagine-se que Lula decidisse confiscar todas as terras onde ocorrem incêndios propositais. Nessa cumbuca entrariam fazendas hipotecadas a bancos. Absurdo dos absurdos, não pode acontecer.

Coisa parecida já aconteceu, em 1888, quando ruiu um pensamento reacionário, que cozinhou por mais de meio século o contrabando de africanos escravizados e a própria escravidão.

João Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe, era um gaúcho bem casado. Havia governado a Bahia, ocupou três ministérios e presidiu o conselho do Império. Em abril de 1888 ele escreveu ao Barão de Penedo (elegante negociador/corretor da dívida externa junto à Casa dos Rothschild):

“Para que lei de abolição? De fato está feita — e revolucionariamente. Os proprietários aterrados procuram conter o êxodo — dando liberdade imediata aos seus escravos. Eis o segredo de tantas libertações.”

A abolição viria, aprovada a toque de caixa. Na véspera, Cotegipe foi para a tribuna do Senado. Reconheceu que, àquela altura, não existia alguém “mais impopular nesta terra do que eu.”

Fez um longo discurso e a certa altura colocou um argumento impecável para o “mercado”:

“O proprietário que hipotecou a fazenda com escravos, porque a lei assim o permitia, delibera de seu motu proprio alforria-os, o que pela nossa lei constitui um crime. (...) Os bancos, os particulares, adiantaram somas imensas para o desenvolvimento da lavoura, das fazendas. Que percam! (...) A verdade é que há de haver uma perturbação enorme no país durante muitos anos, o que não verei, talvez. (...) Se me engano, lavrem na minha sepultura este epitáfio: ‘O chamado no século Barão de Cotegipe, João Maurício Wanderley, era um visionário!’”

Era um reacionário catastrofista. A abolição veio no dia seguinte. Wanderley morreu nove meses depois e não aconteceu nada, além de ter acabado a escravidão.

Tropa sem comando

O governador Tarcísio de Freitas já foi oficial do Exército. Ele sabe que o problema de sua Polícia Militar já foi apenas o uso da violência em operações banais. Hoje, depois de quase dois anos de estímulos vindos dele e do seu secretário de Segurança, o problema ficou de outro tamanho.

Nem ele e muito menos o capitão-deputado-secretário Guilherme Derrite controlam a tropa que comandam.

Tarcísio já viu coisa parecida no Haiti.

A PF não é uma PM

O diretor da Polícia Federal, doutor Andrei Rodrigues, vem se incomodando muito por pouca coisa. Processa um deputado e excluiu um repórter de suas rotineiras conversas confidenciais, nas quais fala o que quer sob o compromisso de não ser identificado.

Pode-se suspeitar que sua zanga venha de reportagens que mostram lacunas nas mil páginas de relatórios da PF conhecidos sobre a armação do golpe de 2022/2023. O trabalho da Federal foi minucioso e contundente em muitos aspectos. Porém, seu ponto fulcral, as ações de 15 de dezembro, com a possibilidade de atentados contra Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, é ralo.

Nas palavras da representação da PF do dia 19 de novembro:

“Pelo que se obteve, as ações desse grupo tiveram seu ápice no dia 15 de dezembro de 2022, data em que, possivelmente, seria realizada a prisão/execução do ministro Alexandre de Moraes na cidade de Brasília.”

Possivelmente?

Nesse dia, Lula estava em São Paulo. Os relatórios demonstraram que um agente da PF campanava o presidente eleito. Ele está preso e foi indiciado, mas falta ir adiante. O plano Punhal Verde Amarelo, impresso no Planalto pelo general da reserva Mario Fernandes, falava em decapitar a chapa eleita. Lula poderia ser envenenado numa de suas idas a hospitais. Poderia.

Tem gente que acredita no envenenamento do Papa João Paulo I em 1978. Pelo menos três livros e um filme (“Godfather III”) sustentam essa teoria. Prova? Nenhuma.

A reação policial a críticas é coisa da PM de São Paulo, que intimida velório de criança.

Outro pilar da denúncia é a minuta do golpe, que seria dado a partir de um decreto do presidente Jair Bolsonaro instituindo o estado de defesa. A minuta existe e foi discutida, mas não foi assinada. Construindo-se a acusação a partir do pressuposto de que teria sido assinada, cai-se a lugar nenhum. Já uma acusação construída a partir da redação da minuta e da sua discussão dá mais trabalho, desde que deixe o julgamento aos juízes.

Os indiciados serão defendidos nos tribunais e cada inconsistência da acusação será uma chave para garantir a impunidade de golpistas que, ao longo do anos, anunciavam publicamente suas intenções.

Blefe

Juízes e promotores insurgiram-se contra o teto de R$ 44 mil para os servidores e ameaçam com uma enxurrada de pedidos de aposentadoria.

É blefe. Aposentados, ficam sem gabinete, secretárias e, em muitos casos, carro oficial com motorista.

 

5 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

O Haiti é aqui,já dizia Caetano Veloso.

Anônimo disse...

Ficam também sem os (as) estagiários (as). Isso sim, é que é mais valia. E bota mais valia nisso.

Mais um amador disse...

Resumo :

" Pindorama tem as suas peculiaridades. Vive-se num dos países socialmente mais desiguais e todos são contra a desigualdade, desde que a conta vá para o outro. "

😏😏😏

Anônimo disse...

É proibido proibir”. Caetano Veloso
“Cala a boca já morreu” Ministra Cármen Lúcia
No entanto um quanto a outra apoiam hoje a censura e o controle da internet Tudo claro contra a direita

Daniel disse...

Excelente coluna! Diversificada e informativa!