O Globo
Na semana passada, o Brasil se armou de vergonha passageira. A violência policial se mostrou em combustão
Graduado em engenharia civil e mestre em engenharia de transporte pelo prestigioso Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de Janeiro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, construiu invejável carreira na administração pública. Sabia fazer contas e dar significado a números. Também estava com a matemática em dia quando chefiou o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o Ministério da Infraestrutura deste imenso Brasil. Foi ao assumir o Palácio dos Bandeirantes que cometeu seu cálculo trevoso: entregou a Secretaria de Segurança Pública ao capitão da reserva da PM Guilherme Derrite, sabendo que o titular se dedicaria à construção de uma polícia de Estado violenta, temida, brutal. Conseguiu. Os indicadores de 2024 em relação ao governo anterior gritam: variação de +104,2% no número de mortes por intervenção policial da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Ao contra-argumentar, como fez em Brasília nesta semana, que o número de homicídios no estado caiu de 2.405 para 2.065 no mesmo período, Tarcísio cometeu uma desonestidade intelectual insidiosa. Deixou no ar a ideia de que uma queda nos índices de criminalidade e execuções policiais a rodo são vasos comunicantes, se retroalimentam. Não são e, se forem, devem ser separados pela força da lei. É certo e fartamente documentado que boa parte da sociedade brasileira aceita participar do primitivo gambito de que polícia feroz mata o crime. Afinal, não faz tanto tempo assim o Rio elegeu governador (Wilson Witzel) um indivíduo que prometeu “tiro na cabecinha” de meliantes e, bem antes dele, outro governador (Marcello Alencar) premiava com bonificação os agentes da ordem que matassem mais.
Tarcísio nem sequer tentou implantar uma
política de segurança de letalidade mínima. Ao designar Derrite, já se esperava
o pior. Só que Derrite foi pior que o esperado. Com 12 anos de atuação como PM,
participou de mais de 16 ações policiais que resultaram em homicídios e foi
investigado em sete inquéritos. A quem se interessar pelo DNA do personagem,
recomenda-se a leitura de extenso perfil publicado na edição de maio de 2024 na
revista piauí, de autoria de João Batista Jr. Ali aprende-se que, da primeira vez
que Derrite tentou integrar-se à tropa de elite da PM paulista, mais de uma
década atrás, “foi rejeitado porque seu currículo de homicídios era farto
demais”. A realidade de que o secretário arrostaria o crime com mão pesada foi
uma das possibilidades que o governador de São Paulo se permitiu ignorar. Ela
lhe convinha.
Começou a ostentar força na Baixada Santista
em meados de 2023. Para vingar o assassinato de um soldado da Rota em
patrulhamento na região, foram convocados cerca de 3 mil PMs, além de pelotões
do Choque e do efetivo local. Barbarizou-se sem trégua, prendeu-se às cegas —
958 pessoas só nas primeiras semanas. Ao final de oito meses de incursões,
havia 84 mortos. Segundo a Defensoria Pública, 55% não tinham passagem pela
polícia, 76% não portavam drogas, 84% estavam desarmados e 67% eram negros.
Nenhum dos presos ou mortos estava diretamente vinculado ao assassinato do
policial Patrick Reis.
Derrite sempre rechaçou ter havido matança.
— Não passa de narrativa — desdenhava.
E a população de São Paulo assimilou a
violência oficial. Os mais desprotegidos, por medo. (Pessoas amedrontadas
costumam cancelar suas intuições, pois elas paralisam em situações tensas.
Ocorre que, sem dar vazão a nossas intuições, nos tornamos maleáveis e mais
facilmente manipuláveis. Pelo manual de demagogos e autoritários, uma vez
amedrontados, somos mais propensos a aceitar instruções de como agir e do que
pensar.) Os não visados, por hábito decorrente de seu estrato
sócio-econômico-racial. Vida que segue.
Até que, na semana passada, o Brasil se armou
de vergonha passageira. A violência policial se mostrou em combustão,
desvairada, sem nexo ou contexto. A propósito de nada, um trabalhador é
arremessado feito lixo de uma ponte de 3 metros, um homem leva 11 tiros pelas
costas por furto em mercado, uma senhora é esmurrada por um punho fardado em
plena luz do dia. Graças às câmeras de segurança urbanas e às imagens captadas
por cidadãos, o cancro que infesta o aparato policial do país terá de hibernar
por uns tempos.
Quase dois anos depois de assumir o mandato, Tarcísio pensa em estudar o que fazer para melhorar o desempenho da corporação. Pode começar servindo-se da tonelada de trabalhos altamente qualificados sobre o tema. Sugestão: a corrupção costuma estar na base de toda violência policial descontrolada.
2 comentários:
Ótima análise. Tarcísio trouxe do Rio um processo de milicialização da polícia. E Derrite é símbolo da solução tosca com que tantos se identificam, acreditando e divulgando mentiras nas redes (anti)sociais. Temo que a metástase na polícia não permita sequer cuidados paliativos em SP.
Análise PERFEITA! Tarcísio queria se irmanar com as ideias bolsonaristas pra Segurança Pública: estímulo à letalidade policial, tolerância com tortura e corrupção policiais, transformação dos policiais em MILICIANOS fardados ou não! O resultado: cada vez maior VIOLÊNCIA POLICIAL contra os cidadãos e descontrole da atividade policial. A arrogância de Bolsonaro foi incorporada por Tarcísio: "tô nem aí", "não sou coveiro"... Parabéns à colunista, e ao blog por divulgar seu excelente trabalho!
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