Correio Braziliense
Ontem, o ex-presidente Bolsonaro recorreu,
mais uma vez, à retórica de autovitimização. Em postagens nas redes sociais,
denunciou um suposto “sistema podre” de perseguição e ameaças à sua vida
As tentativas de o ex-presidente
norte-americano Donald Trump interferir nos assuntos internos do Brasil, por
meio de declarações e medidas retaliatórias, como a imposição de tarifas de 50%
sobre as exportações brasileiras, não vão desviar, muito menos interromper, o
curso das investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro e, sobretudo, o
julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF).
Apesar da grave crise diplomática e comercial provocada pela decisão de Trump, essas pressões não anulam os fundamentos constitucionais e jurídicos que orientam as decisões do Supremo. O processo contra Bolsonaro segue em conformidade com o devido processo legal, baseado em provas materiais, delações homologadas e evidências documentadas, como a famosa “minuta do golpe”, que ontem foi objeto de nova confirmação do ex-ajudante de ordens da Presidência tenente-coronel Mauro Cid.
O militar foi chamado pela Procuradoria-Geral
da República (PGR) para depor como testemunha de acusação dos réus dos núcleos
2, 3 e 4 do processo sobre a trama golpista ocorrida no governo de Jair
Bolsonaro. Por ter assinado acordo de delação premiada com a Polícia Federal
(PF), o militar responde ao processo em liberdade, mas é obrigado a prestar os
esclarecimentos. A partir de hoje, começam a depor as testemunhas indicadas
pelos réus que fazem parte dos três núcleos. Os depoimentos devem seguir até o dia
23 de julho.
No mês passado, o STF realizou os depoimentos
das testemunhas do núcleo 1, formado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e mais
sete aliados. A Procuradoria-Geral da República, nas alegações finais na ação
penal que investiga o chamado “núcleo do golpe”, confirma a existência de
articulações concretas para subverter o resultado das eleições de 2022. A
delação do tenente-coronel Mauro Cid foi fulcral nesse contexto.
Segundo Cid, o ex-presidente teve acesso
direto ao documento que propunha a decretação de estado de sítio, novas
eleições e a prisão de ministros do STF, incluindo Alexandre de Moraes. Essas
revelações, somadas aos depoimentos de testemunhas sobre ações direcionadas da
PRF durante o pleito e a produção de dossiês com viés político dentro do
Ministério da Justiça, configuram uma trama organizada e hierarquizada.
Em sintonia com Trump e a extrema-direita
global, Bolsonaro tenta deslegitimar as instituições democráticas do país e
transferir a narrativa de julgamento do debate jurídico para o campo de disputa
ideológica, ao se fazer de vítima de um complô entre STF, a imprensa e as
lideranças políticas de esquerda. Sustenta que sua provável condenação será o
prenúncio da repressão ao “cidadão comum”. Com isso, reforça a narrativa de sua
base mais radicalizada e procura desviar o foco dos fatos pelos quais é julgado.
Estado democrático
O julgamento em curso no STF tem respaldo
constitucional e vem observando as garantias do contraditório e da ampla
defesa. Ontem, o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, reiterou que o
tribunal age com transparência, realiza sessões públicas, admite a participação
da imprensa e assegura o acompanhamento por advogados. O ministro também
refutou as acusações de censura às redes sociais.
Barroso afirmou que as decisões da Corte
sobre as redes sociais protegem a liberdade de expressão e são moderadas, se
comparadas a modelos como o europeu. Argumentou também que, ao associar os
julgamentos no Brasil a uma “ditadura judicial”, Trump revela uma visão de
mundo pautada pelo seu próprio autoritarismo e desconhece a realidade política
brasileira, que vive em regime democrático pleno.
Trump alegou perseguição a bolsonaristas
residentes nos EUA e a empresas americanas por decisões do STF, para extrapolar
os limites da diplomacia e exportar sua agenda protecionista e conspiratória. O
posicionamento dos ministros do STF diante dos ataques de Trump, associado à
manifestação diplomática do governo brasileiro, mostra firmeza e maturidade
institucional. A defesa da soberania nacional exige que as instituições
funcionem de forma autônoma e que os crimes contra o Estado democrático de
direito sejam julgados com isenção.
Segundo o ministro Gilmar Mendes, decano da
Corte, vivemos um momento inédito de resistência democrática, em que a defesa
dos preceitos constitucionais se tornou um imperativo civilizatório. As
investigações demonstraram que a escalada golpista liderada por Bolsonaro não
se restringiu a discursos inflamados. Envolveu setores das Forças Armadas,
agentes públicos, tentativas de manipulação da opinião pública e o uso indevido
de estruturas estatais. A PRF agiu seletivamente no segundo turno das eleições.
Órgãos de inteligência do Ministério da Justiça foram usados para levantar
dados contra adversários.
Tudo isso está sendo cuidadosamente apurado
em ações penais abertas e instruídas de acordo com os ritos processuais. Por
essa razão, as pressões externas — ainda que muito ameaçadoras — não devem
interromper, retardar ou deslegitimar o julgamento de Jair Bolsonaro e seus
aliados. O que está em jogo é mais do que a punição de indivíduos: trata-se da
proteção do Estado democrático de direito. O Brasil tem o dever, perante sua
Constituição e a comunidade internacional, de demonstrar que as instituições
são capazes de reagir a ataques à ordem democrática de forma legal, pacífica e
institucional. Embora muito pressionada, nossa democracia é resiliente.
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