A esta altura do campeonato a discussão sobre se houve “golpe” ou não ficou para as calendas. A eleição municipal do último domingo revelou a baixa adesão da população ao discurso construído pelo petismo, o grande derrotado no pleito. Se isso encerra um capítulo da novela, não se pode daí concluir que o governo atual esteja consolidado e legitimado, pois tampouco o presidente ou seu partido colecionaram vitórias, ao contrário, amargaram derrotas muito duras ao menos nos dois maiores colégios eleitorais do país. O caminho da legitimação popular será árduo e provavelmente só se encerrará com o novo pleito presidencial em 2018, o que aconselharia aos governantes atuais cautela e responsabilidade.
Mais árduo ainda parece ser o caminho dos partidos de esquerda no país. Afora circunstâncias locais auspiciosas, onde lideranças respeitadas e inteligentes conseguiram conduzir boas campanhas políticas, a desorientação grassa. Isto porque durante toda a longa crise que abateu o país e levou ao encerramento abrupto do malogrado governo Dilma a crítica foi obstruída, tratada como inconveniente ou traiçoeira. Houve até quem dissesse publicamente que já não tinha paciência para ouvir críticas e que importava apenas a defesa do governo moribundo. Como bem sabem os historiadores do Iluminismo, crítica e crise são conceitos gêmeos. Sua obstrução tem favorecido uma compreensão torta dos acontecimentos e das responsabilidades, que impede a renovação dos projetos políticos. Quando da revelação dos mal-feitos no governo petista, a imensa rede de tráfico de influências, fraudes em licitações públicas e caixa 2 em campanhas eleitorais, a reação do partido foi simplesmente culpar os outros, reação típica de quem sabe não poder contar com a aprovação do público para as escolhas e as atitudes tomadas no passado. A isso se soma um discurso que espalha o medo do que poderia acontecer em caso de derrota do partido, velho instrumento de controle para prevenir alternativas. Nesse modelo, só cabe a crítica aos “adversários”, vistos aqui já quase como “inimigos”, na eterna reprodução da lógica binária e maniqueísta que vinha protegendo a polarização política da emergência de novos atores, isto é, garantindo a intocada hegemonia petista no campo da “esquerda”. Apenas nessa lógica a crítica pode ser concebida como a serviço do inimigo e devidamente rechaçada sem que se discuta o mérito dos argumentos.
Uma boa compreensão crítica da derrocada petista será obra coletiva e levará tempo de debate. Mas é tarefa imprescindível para quem queira se orientar bem no cenário novo e para um aprendizado coletivo. Não pretendo aqui oferecer mais que uma contribuição, que atribui a queda mais aos vícios do petismo que às virtudes de seus adversários. Diferentemente de muitos outros, também não creio que estejamos a viver em um cenário de avalanche autoritária e conservadora, embora reconheça que neste momento o espaço usualmente ocupado pelo PT será preenchido por forças políticas de perfil mais conservador, vindas dos partidos tradicionais brasileiros. Entretanto, a sociedade brasileira se tornou complexa demais para se deixar conduzir por projetos obscurantistas tradicionais, pois em nossa longa e atribulada modernização societária, valores e modos de sociabilidade “modernos”, centrados em aspirações de autonomia individual, de uma socialização mais livre de controles tradicionais, da separação entre as dimensões do público e do privado e do direito como orientação básica da vida em comum, têm se consolidado, a despeito de preferências partidárias localizadas. Tampouco a armação institucional brasileira estabelecida pela Constituição de 1988 pode ser capturada de assalto por um agrupamento político de perfil autoritário, são fortes os pesos e contrapesos entre os poderes, bem como existem redes de movimentos e sindicatos de todo o tipo que resistem naturalmente ao fechamento do espaço político. O discurso “aprés moi, le déluge” que anuncia um tempo de trevas é muito mais conservador que o espírito do tempo.
Como afirmei acima, a derrota do projeto petista e de seus colaboradores, tem mais a ver com seus vícios que com as virtudes adversárias. O até então improvável impeachment de Dilma Rousseff não teria acontecido sem uma combinação poderosa da crise econômico-social com o esfacelamento da legitimidade dos partidos governantes pela revelação de suas redes de relacionamento com grandes corporações privadas para a prática de crimes contra o erário – para não falar na notória incapacidade política da ex-presidenta. Nas duas frentes, a responsabilidade dos dirigentes governistas é imensa e, mesmo que se possa discordar de uma ou outra decisão judicial ou do mérito da decisão parlamentar, não se pode atribuir a eles o papel de vítima. Nem se deveria absolver suas práticas em nome da defesa de um suposto governo “de esquerda”, algo que os mandatos de Dilma apenas sofrivelmente poderiam sustentar.
A crise econômica e social vivida no país desde 2014, uma das piores de nossa história, tem em seu DNA a concepção atrasada de desenvolvimento econômico que orientou o governo Dilma. O esboço de “nacional-desenvolvimentismo” tentado em seu primeiro mandato, que reservava ao Estado funções decionistas na alocação de recursos e na distribuição de incentivos fiscais, evocando diretamente as estratégias econômicas da ditadura militar, não tem lugar em um país democrático. Dilma onerou excessivamente as contas públicas com subsídios seletivos que não ofereceram os retornos esperados, desagradou os segmentos empresariais não beneficiados sem conseguir induzir transformações na estrutura produtiva do país. Houve desindustrialização e aprofundaram-se as formas de inserção subordinada na economia global, notadamente por atividades de extração intensiva de recursos naturais. A aposta na produção de commodities minerais e agro-pecuárias, com imensos custos sócio-ambientais e baixos retornos distributivos, era concentradora de renda e completamente insuficiente para sustentar o desenvolvimento de um país heterogêneo e complexo como o Brasil, o que, aliás, foi alertado por não poucos especialistas e movimentos sociais. O déficit fiscal que entregou em 2014 é expressão deste fracasso e sua incapacidade de reformar a política econômica, ora aderindo ao programa de seus adversários, ora sabotando seu próprio ministro da Fazenda, revelam as hesitações de quem ficou sem programa. E, no mundo global atual, imensamente competitivo, quem não for capaz de oferecer uma orientação para a economia terá problemas sérios tanto com empresários, quanto com trabalhadores.
Na raiz da centralização estatal, estava alojada uma concepção fraca da distinção necessária entre público e privado, que conformou uma prática política de conúbio entre agentes governamentais, lideranças partidárias e dirigentes empresariais, em prejuízo de empresas estatais e do próprio erário. A Petrobrás ficou paradoxalmente sobrecarregada com a atribuição de funções abrangentes na exploração do petróleo e enfraquecida pelas fraudes em licitações e pela política de controle de preços. As atividades de mineração se expandiram com formas precárias de controle e regulação, tal como se vê na apuração das responsabilidades políticas e empresariais pela tragédia de Mariana. A política energética permaneceu voltada para a tradicional construção de hidrelétricas e barragens, seu maior símbolo é a usina de Belo Monte, que provocou mudanças ambientais irreversíveis e atingiu culturas e populações significativas. Sua construção, já se sabe, envolveu uma rede de propinas a políticos influentes. No “agronegócio”, vão aparecendo as redes de tráfico de influências formadas pela maior corporação nacional, JBS-Friboi, que atua na pecuária de corte, outra atividade econômica com imenso impacto ambiental, porque de baixa produtividade, e com denúncia recorrente de péssimas práticas trabalhistas, inclusive o trabalho escravo. Não obstante, a JBS-Friboi foi uma das principais clientes de crédito público subsidiado do BNDES. Não é sem propósito que se pode falar em verdadeiro “neopatrimonialismo”, e que a tomada de decisões estratégicas no âmbito do governo federal foi influenciada por interesses obscuros em prejuízo da cidadania.
A outra ponta desse enredamento diz respeito à própria representação política, afetada pelo uso desmedido de recursos financeiros nas campanhas e pelo papel desempenhado pelos famosos “marqueteiros” na tomada de decisões políticas. A crise de legitimação que vivemos não é obra da decisão do parlamento de remover Dilma, nem pode ser atribuída à conduta do Judiciário ou ao tradicional desprezo de grandes órgãos de comunicação pela participação política popular. Aos olhos da população a legitimidade do mandato de Dilma já estava pra lá de abalada. Em um nível mais estrutural, a legitimidade da representação política tem relação forte com o papel desempenhado pelos partidos políticos, pelos elos que são capazes de criar com a sociedade, por seu ambiente interno, pelo tipo de mediação que oferecem entre os eleitores e os governos. O uso de recursos ilegais em campanhas políticas é antes de tudo um meio de ampliar o controle das direções partidárias e das máquinas de governo sobre os resultados eleitorais. É forma de garantir fidelidades e, direta ou indiretamente, obstáculo à emergência de lideranças autônomas, mecanismo pelo qual amplia a burocratização e a dependência dos partidos em relação ao Estado e aos grandes interesses corporativos. A democracia em seu nível mais elementar, o da vida partidária, foi terrivelmente afetada pelas práticas “neopatrimonialistas”. E não só nele, pois a distribuição desigual de recursos financeiros afeta as chances de partidos concorrentes. Em ambos os casos, o frágil porém até aqui necessário mecanismo da representação política foi abalado com efeitos deletérios para a legitimação. Não admira que os partidos governistas não tenham querido ouvir os manifestantes de junho de 2013 e que aquele enorme ciclo de protestos não tenha encontrado acolhida na representação política, o que poderia ter aberto caminho muito diverso do ocorrido.
A reconstrução do espaço político no país no período que se inicia precisará de uma força política de esquerda e representativa. Nas atuais condições, essa reconstrução deverá ser em primeiro lugar programática, com base na crítica aberta e na formulação de novos compromissos e novas práticas. A esquerda precisa rejuvenescer, esconjurar os fantasmas do passado que insistem em assombrar os viventes com programas que não servem mais e enfrentar os desafios do presente. Será preciso reconectar as lutas sociais em curso, os intelectuais e as lideranças políticas emergentes em torno de espaços democráticos de ação política e, quem sabe, organizar um novo partido.
O cenário que se avizinha é nebuloso porque novo e porque já não se pode contar com os grandes esquemas de orientação política que prevaleceram no Brasil nos últimos vinte e tantos anos. Eles fracassaram e cabe agora construir alternativas.
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Felipe Maia Guimarães da Silva
Professor Adjunto
Departamento de Ciências Sociais
Instituto de Ciências Humanas
Universidade Federal de Juiz de Fora
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