- O Estado de S. Paulo
Milhões sorvem a torpeza bolsonarista como
quem degusta um cálice de absinto
Em abril do ano passado, em artigo
publicado na revista piauí (edição 163), Uma esfinge na presidência,
o cientista político Miguel Lago propôs uma chave intrigante para interpretar o
bolsonarismo. Segundo o autor, quanto maior e mais conflagrado for o confronto
nas redes sociais, mais sustentação terá o presidente da República – e quanto
mais baixo descer a reputação do governante, mais alto soará o alarido daqueles
que o sustentam. Miguel Lago previu que a bandeira do impeachment não iria
minar as bases de apoio de Bolsonaro; ao contrário, ajudaria a solidificá-las.
Previu e acertou. A força política de Jair Bolsonaro tornou-se tanto mais
determinada, embora minoritária, quanto pior ficou sua imagem perante a opinião
pública minimamente esclarecida.
A explicação para essa modalidade pútrida de “quanto pior, melhor” vem da dinâmica peculiar das mídias sociais. As compactações das multidões virtuais seguem leis que pouco ou nada têm que ver com a política dita convencional. Enquanto na cartilha dos politólogos as alianças políticas resultam da negociação de interesses e se formalizam em programas propositivos, nos algoritmos das plataformas sociais tudo acontece de ponta-cabeça: o que rende audiência, empolgação e adesão não é o que pacifica, mas o que choca, ofende, escarnece – daí o sucesso das agressões, das manifestações de ódio e da infâmia. Se nos sindicatos ou nos partidos políticos o que reúne as pessoas são os acordos mais ou menos racionais, na internet o que as congrega é o êxtase de insultar e ultrajar um inimigo real ou imaginário, num fragor que não tem parte com a razão.
Quanto mais desaforado for, quanto mais
animalesco e mais boçal, mais amado será o líder ciberpopulista – para usar
aqui o conceito que Andrés Bruzzone apresenta no livro Ciberpopulismo:
democracia e política no mundo digital, lançado no mês passado pela Editora
Contexto. Quanto mais asqueroso e mais contrário aos bons modos, mais
festejado. Essa é a receita seguida pelo presidente da República. As falanges
virtuais o aclamam não apesar de sua falta de boas maneiras, mas
justamente por causa delas. Quanto mais desclassificado ele for, mais
idolatrado será.
Se levarmos essa perspectiva analítica um
pouco mais longe, além daquilo que sustentam Miguel Lago ou Andrés Bruzzone,
veremos que há um nexo nervoso, neuronal, entre a vileza dos discursos da
extrema direita antidemocrática e o prazer das massas. Milhões de anônimos,
encolhidos em suas misérias afetivas, sorvem a torpeza bolsonarista como quem
degusta um cálice de absinto. Vão se entorpecendo de fluxos de gozo. Esses
infelizes, tomados pela paixão da raiva e da intolerância, encontram nas
barbaridades proferidas e alardeadas pelo fascismo de silício uma satisfação
libidinal equivalente à que vai buscar nos sites pornográficos ou nos
jogos online, que sabidamente exploram a dependência psíquica do freguês.
O caráter viciante das atrações da internet
não é uma novidade. Em artigo para a edição 96 da revista Estudos
Avançados (IEA-USP), em 2019, os professores Ricardo Abramovay e Rafael
Zanata documentaram fartamente como as empresas de tecnologia administram suas
funcionalidades para “gerar adição”. No ano passado, o filme O Dilema das
Redes trouxe depoimentos de altos executivos da indústria confirmando a
estratégia de causar dependência. A propósito, um deles lembra que o termo
“usuário” só é utilizado para designar o consumidor de drogas e o frequentador
das redes sociais, como a dizer que os traficantes e os gigantes da internet
lucram com o mesmo negócio: o vício. E foi nesse negócio que o trumpismo e o
bolsonarismo se deram muito bem, obrigado.
Quando confessa que veio para destruir,
Bolsonaro diz a verdade. Ele é o herói da devastação, o ídolo dos que culpam o
“sistema” por seus infortúnios pessoais. As almas viciadas na bestialogia
querem varrer do mapa o saber científico, a imprensa crítica e as artes, pois
essas instituições fazem doer, de forma humilhante, a ferida da ignorância
bruta. Os adictos do bolsonarismo querem banir os jornalistas com a mesma
sanguinolência com que os homofóbicos assassinam gays e os machistas espancam o
feminismo, com a mesma tara mortífera com que os racistas proclamam que o
Brasil é uma “democracia” racial. O ódio contra o tal “sistema” – que no fundo
é o que nos resta de civilização – leva o sujeito a exterminar a própria
liberdade para se entregar à tirania. Só aí deixará de padecer. A visão da
beleza é insuportável para ele.
As massas dependentes no ciberbolsonarismo são descendentes diretas dos espectadores do circo romano, em que gladiadores e feras se retalham reciprocamente. O frêmito que experimentam é o mesmo. Apontando o polegar para o chão, plateia do horror, de ontem e de hoje, se imagina admitida na arena dos assuntos de Estado. A política vai se reduzindo à celebração gozosa dos linchamentos físicos e morais. Ser cidadão é esquartejar o outro. Por prazer. Esse vício vai nos matar a todos de overdose.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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