O Estado de S. Paulo
Sem memória e sem caráter, o negacionismo que beneficia o negacionista se restaura
Na ressaca do descalabro que foi o discurso
do presidente brasileiro na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, na
terça-feira, em Nova York, a gente se acabrunha. O grau do vexame extrapolou as
piores expectativas. Em meio a mentiras ofensivas, distorções estúpidas e
apologia de fármacos abstrusos, a saraivada de despautérios não convenceu
ninguém e constrangeu o mundo inteiro. Aos conterrâneos do orador – dito mito,
mas, de fato, mitômano – só restou engolir a humilhação. Vergonha – este foi o
título do editorial do Estado em sua edição de ontem. Palavra bem aplicada.
Somos uma nação envergonhada, com as costas
pensas sob o próprio fracasso. No ritmo em que as florestas deste país fumegam
delirantemente, a esperança vira cinzas. O desastre ecológico e a tragédia
sanitária se adensam num malogro político depressivo. Quando a autoridade
máxima desta terra ardente (“qual fogueira de São João”) vai à ONU e pronuncia
tudo o que pronunciou, em nosso nome, e nada lhe acontece, é sinal de que
alguém aqui abdicou da dignidade.
Nestas horas, pouco adianta o sujeito sacar
o celular e “postar” nas redes que o chefe de Estado é genocida. A inquietação
lamurienta dos descontentes é seu triunfo. Cuspindo ácido sulfúrico, ele
desfila sobre cadáveres de gente e de sonhos. Chamado de negacionista, mostra
os dentes: negacionistas são vocês.
Talvez seja isso mesmo. Como já se percebeu, o pior negacionismo não é o dele, que rejeita a ciência, o saber e o diálogo, mas o daqueles que se negam a ver que estamos diante de um inimigo declarado da democracia, obcecado em preparar um golpe de Estado. O pior negacionismo é aceitar a permanência do governante que aí está e, nessa aceitação tácita, assinar um pacto de sangue com o projeto de ditadura que ele pretende pôr em prática.
O pior negacionismo vicejou (e ainda
viceja) nas mesas de financistas sem princípios, que decidiram fazer vistas
grossas para o que tinham recursos óticos para enxergar. Por uma fatalidade,
mas não propriamente por acaso, o pior negacionismo encontrou meios de se
disseminar à sociedade, contaminando até mesmo algumas artérias das redações
profissionais.
A contaminação ficou evidente já na
campanha de 2018. O presidente que aí está, então candidato, subia em palanques
para idolatrar torturadores, amaldiçoar a liberdade de imprensa e elogiar a
ditadura militar. Com essa postura, afrontou diretamente os fundamentos da
nossa democracia. Embora cumprisse as formalidades jurídicas para obter o seu
registro regular na Justiça Eleitoral, como se fosse um candidato normal,
declarou guerra contra o Estado Democrático de Direito. Esse fato –
rigorosamente um fato, não uma ilação opinativa – ficou sem o registro devido.
Sejamos mais precisos. A Constituição de 1988,
o documento-base da frágil ordem democrática que este país foi capaz de
estabelecer, pode ter suas contradições internas e seus acochambramentos mal
costurados, mas está assentada sobre um consenso pétreo, ao qual todas as
forças políticas devem lealdade. Esse consenso se materializa numa tripla
recusa: a recusa da ditadura, da tortura e da censura. Ora, foi justamente para
glorificar essas três formas de barbárie que aquele candidato se lançava em
campanha e, não obstante, foi tratado em boa parte da cobertura da campanha
eleitoral como se fosse, à parte seu destempero fascistoide, um candidato
candidamente normal. Haja negacionismo. A vitória de Jair Bolsonaro está para a
democracia brasileira como a vitória de um político declaradamente nazista estaria
para a democracia alemã. Não foi e não é algo corriqueiro. Não é normal.
O mais aflitivo é constatar que, apesar de
todas as provas em contrário, o negacionismo de pior tipo não cede. É
repetidamente desmoralizado pelos acontecimentos, mas não cede. Seus
estilhaços, como detritos ideológicos, ficam espalhados no chão da mídia e logo
se reagrupam, em sucessivas e ridículas tentativas de dar crédito ao
inacreditável. Uma das mais recentes veio na sequência dos atos golpistas de 7
de setembro.
No feriado, em comícios anabolizados por
dinheiros estranhos, o presidente prometeu, aos brados, desobedecer às
determinações do Supremo Tribunal Federal. No dia seguinte, para escapar aos
processos que viriam, encenou mais um de seus recuos cínicos e assinou um texto
mal escrito prometendo respeitar a separação e a harmonia entre os Poderes.
Como de costume, ele se desdiz sem pejo, como se fôssemos uma nação de bobos.
Mesmo assim, seu documento de rendição obteve calorosa acolhida em certos
escaninhos do jornalismo. Sem memória e sem caráter, o negacionismo que
beneficia o negacionista se restaura.
Quanto aos endinheirados alienados, que
resolveram acreditar no fantasma do comunismo com o mesmo fervor que devotam ao
lucro digital, não há o que fazer. O chefe de Estado, ao ler aquelas
barbaridades na ONU, os representa fielmente. A imprensa, porém, que tem vida
racional, poderia pensar um pouco mais a respeito, mesmo que seja tarde demais.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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