O Estado de S. Paulo
Governo que dá costas ao vácuo de governança corre o risco de ser engolido por ele
Para Sigmund Freud, grande observador das
manifestações da alma humana, três profissões são impossíveis: educar, governar
e analisar – aquela a que ele mesmo se dedicou. Dado o número dos que buscam, a
cada dois anos, uma função sujeita ao escrutínio eleitoral, parece que muitos
não concordam com Freud. Isso porque essas três funções não dependem de quem
quer exercê-la, pois ninguém cura quem não se dispõe a ser curado, nem ensina a
quem não quer aprender, nem muito governa quem não aceita ser governado.
Há mais de uma década tem-se observado, nas
democracias representativas, um descolamento entre os eleitores e seus
representantes, que se expressa num número significativo de sociedades, sob a
forma de uma profunda insatisfação com a maneira como o povo é governado. Em
muitos países, em todos os continentes, essa insatisfação tem sido manipulada
por demagogos aventureiros, autoritários e populistas, para chegarem ao poder
pela via eleitoral.
Uma das características desses aventureiros
parece ser a crença subjacente de que, para governar, basta ter um botão em uma
das mãos e um chicote na outra. Apertado o botão, seriam remotamente coletadas
as receitas públicas, a máquina burocrática se encarregaria de sua gestão e a
vontade do chefe seria cumprida num estalar de dedos. E os insatisfeitos seriam
corrigidos a chicotadas, que é o que ocorre nas “repúblicas democráticas”,
“populares”, socialistas ou teocráticas.
Lembro-me bem de minha primeira função pública, como secretário de Economia e Planejamento de São Paulo e encarregado de estabilizar as contas do Estado. Era frequentemente assediado pelos jovens militantes empolgados com a vitória, conquistada nas urnas, pela oposição ao regime burocrático militar. Diante da ausência de recursos para realizar seus sonhos legítimos, recorriam à noção de que se tratava de decidir politicamente, e não de acordo com o orçamento disponível. Muitas vezes perguntei o que seria decidir politicamente: encher o carrinho no supermercado, chegar ao caixa e, em vez de pagar, fazer um discurso?
Tudo indica que a enorme insatisfação
popular que se manifestou nas ruas a partir de 2013 e nas urnas em 2018
conduziu ao poder um discurso que manipulou essa insatisfação prometendo
resolver todos os problemas politicamente, com incitações ao ódio e promessas
de redenção. E como se nenhuma lição tivesse sido tirada da queda de Fernando
Collor, isto é, de que se pode chegar ao poder com um discurso enganoso, mas
não se pode governar apenas discursando à porta de um palácio, distribuindo
promessas mágicas para uns e ameaças para outros.
Quanto a governar, ora, confia-se à inércia
da burocracia de Estado, em grande parte competente e engajada em suas funções,
mas sem mandato legítimo nem liderança política a orientá-la. E entregase a
função de governar, de porteira fechada, a uma fatia seleta da classe política.
E, como o ônus inerente ao mandato popular foi colocado fora das suas “quatro
linhas” privadas, onde só é legítima a função primordial de equilibrarse sobre
a corda bamba do discurso de amor e ódio, resta para nós, cidadãos, um vácuo de
governo.
Como se não bastasse este vácuo de
governança, a terceirização do governo redundou num alarido de interesses, em
que algumas pautas ministeriais colidem com as iniciativas de outras e, como
regra geral, são condenadas a serem revisadas, ou mesmo engavetadas, por não
agradarem aos impulsos presidenciais do momento.
Basta lembrar as mais destacadas
“revoluções” anunciadas na política econômica, como a reforma tributária, a
privatização universal das estatais ou a venda de todo o patrimônio imobiliário
da União: “ninguém sabe, ninguém viu... e estranhos caminhos pisou”, como diz o
samba. Teria graça, se não fosse trágico. A política social emergencial,
anunciada como proteção dos mais pobres, dos desempregados e dos trabalhadores
avulsos, depois de mais de um ano de decisões e recuos, não sai do papel, se é
que chegará ao papel.
A prioridade absoluta do governo
brasileiro, o combate à tragédia da pandemia, sucumbe a um vendaval de alvos
incompatíveis que se revezam, de maneira arbitrária, para merecer a atenção
presidencial. Ora se busca uma bala de prata para curar a doença, mediante um
arremedo sigiloso e, no mínimo, não ortodoxo de “pesquisa clínica”, ora se abre
campanha contra o conhecimento cientificamente comprovado.
Ora se obstaculiza o combate à disseminação
do vírus, tal como coordenado pelas autoridades sanitárias – acusado de impedir
a recuperação da economia –, ora se culpa a disseminação da doença, que daí
resulta, pelo fracasso da política econômica.
Como vemos, para onde nos viramos, o vácuo
de governo salta aos olhos. Um governo que dá costas a esse vácuo corre o risco
de ser engolido por ele. Cabe a nós, cidadãos, manifestar claramente aos
poderes constituídos que não aceitamos correr esse risco vital que, neste
momento, sufoca a garganta de um povo submetido a uma inflação descontrolada,
ao desemprego e a uma doença letal.
*Senador (PSDB-SP)
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