Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O tema do pleito deste ano não será a
corrupção, nem o embate entre a velha e a nova política, e sim a avaliação do
legado bolsonarista
Entender a eleição presidencial num país
tão complexo em termos sociais e políticos como o Brasil é uma tarefa muito
complicada. É sempre mais fácil explicar depois o que levou à vitória de um candidato
e à derrota dos outros. Óbvio que não há bola de cristal entre os cientistas
políticos, mas é possível pensar nos fatores que impactam a campanha eleitoral
e mostrar como eles podem atuar especificamente num determinado pleito.
Eleições têm elementos que, em grande
medida, repetem-se, como padrões de determinados eleitorados, a importância do
bem-estar social do eleitor e as peças-chave que são estratégicas. Não
obstante, cada disputa eleitoral tem sua singularidade, que fica mais clara
quando se compara com a anterior. Assim, é essencial frisar, antes de mais
nada, as diferenças de 2022 em relação ao que ocorreu em 2018.
O tema do pleito deste ano não será a
corrupção, nem o embate entre a velha e a nova política. Evidente que parte do
eleitorado continua a olhar para possíveis comportamentos corruptos dos
candidatos e partidos - por isso que Bolsonaro e Lula vão tentar falar da
corrupção do outro. Só que essa questão, tomada individualmente, não será a
definidora do voto da maioria dos brasileiros.
Do mesmo modo, o vencedor não será aquele
que se apresentar como o que vai sepultar os políticos oligárquicos, embora os
dois líderes na pesquisa se beneficiem por terem um certo perfil antissistema,
algo que tem apelo popular na maior parcela do eleitorado brasileiro.
O ponto de partida da eleição de 2022 será diferente. A crise de representação iniciada em 2013 teve seu auge em 2018, e pedia-se então alguém que refundasse o sistema. Agora está em jogo, principalmente, a avaliação do legado bolsonarista. Bolsonaro tentará mostrar não só o que fez, mas o que só ele poderá fazer - por exemplo, proteger a família e a liberdade (mesmo que defendendo a ditadura militar e os torturadores) e garantir a hegemonia política e moral de determinada fatia das organizações religiosas evangélicas, por meio de políticas públicas e mudanças no Supremo Tribunal Federal. Seus opositores somente vão ganhar força se forem capazes de centrar foco nos problemas do bolsonarismo, naquilo que a maioria do eleitorado (especialmente as classes D e E) acreditar ser um fracasso do atual governo, o que se soma, em menor medida, a temas em que a classe média avalia mal o presidente, como a questão ambiental e os maus modos políticos de Bolsonaro.
Claro que é preciso também construir uma
reputação acerca da capacidade de resolver tais erros bolsonaristas. O que não
dá para fazer é centrar o foco em algo que não tenha relação com a continuidade
e a descontinuidade do bolsonarismo. Usando o anglicismo que virou moda, a eleição
de 2022 é sobre Bolsonaro.
Isso não foi entendido até agora pela
chamada terceira via, nem por Ciro Gomes, e essa é a principal explicação para
a estagnação dessas candidaturas. Os deslizes cometidos até agora por Lula
ocorreram igualmente quando ele se esqueceu qual é o parâmetro da disputa
presidencial atual, falando de temas que só ajudam a narrativa bolsonarista e
deixando de falar sobre o que atrapalha a reeleição.
Fechando a análise do ponto de partida das
eleições de 2022, não se pode esquecer que os candidatos não começam a corrida
presidencial do mesmo lugar. Lula e Bolsonaro têm vantagens por serem os únicos
postulantes efetivamente populares entre as classes C, D e E, além de terem uma
abrangência nacional.
Não é fácil construir esse patamar e ele
deriva, no caso do lulismo, de várias eleições e governos, de um líder com o
linguajar do povo mais pobre sem perder a capacidade de chegar aos mais
instruídos, enquanto o bolsonarismo fez do governo uma eterna campanha, desde o
início do mandato, de uma forma inédita no país.
Bolsonaro rodou o país permanentemente, por
vários fins de semana, e criou a entidade chamada “cercadinho”, que é uma forma
de estabelecer uma comunicação pessoal e direta com o eleitorado. Isso para não
falar do uso das redes sociais como se fossem o espaço do recreio da escola,
com sua enorme capacidade de produzir estórias populares.
O excesso de exposição traz também
problemas eleitorais. Não por acaso Bolsonaro e Lula têm a maior rejeição e
sempre terão maiores calcanhares de Aquiles do que os demais. Há uma vantagem
de ser menos conhecido, só que para aproveitá-la é preciso duas coisas: tempo
para ser conhecido e aceito pelo eleitorado, além de tocar fundo na temática
principal da eleição - no caso, o governo Bolsonaro.
Como a terceira via e afins não podem
ganhar o jogo se dizendo bolsonaristas, cabe a eles como principal tarefa se
mostrarem contra o incumbente atual. Encontrar essa diferenciação, com apelo
popular (e não falando para uma bolha pequena da população), é o grande enigma
que Ciro, Doria, Moro, Leite e Tebet não souberam decifrar até agora.
Definida a situação de largada dos
concorrentes, cabe analisar as três peças-chave de toda eleição: o discurso, as
alianças e a postura da liderança principal. Não há uma fórmula mágica que
garanta a perfeita combinação entre tais elementos, mas é possível, fazendo uma
radiografia de cada conjuntura eleitoral, montar a melhor estratégia.
Obviamente que sempre haverá, em algum
grau, acontecimentos novos, até surpresas, que vão obrigar os candidatos a se
adaptar. Isso será mais fácil, contudo, se o trio básico da campanha já estiver
bem estruturado e entrosado.
O discurso eleitoral envolve três
dimensões. A primeira é falar sobre quais temas são mais relevantes para o
povo. Na eleição de 2022, o principal problema da grande maioria do eleitorado
é a redução do bem-estar econômico e social nos anos bolsonaristas.
Isso passa claramente pela questão
econômica, com grande peso para a perda do poder de compra, vinculada à
inflação, ao desemprego e à estagnação salarial. A insatisfação quanto a essa
precarização da vida, mesmo com todo o dinheiro que Bolsonaro está jogando do
helicóptero, tende a aumentar até outubro, porque não haverá nenhuma melhora
econômica significativa. Só não sabemos em qual medida esse dissabor do eleitor
aumentará até a ida à urna eletrônica.
A redução do bem-estar do eleitorado vai
além da questão econômica. A piora na saúde aparece fortemente nas pesquisas
quanti e quali, captando uma sensação que é em parte consequência da má gestão
da pandemia de covid-19, mas que abarca uma desaprovação mais ampla de toda a
política sanitária do país. Soma-se a isso um conjunto de insatisfações com
políticas sociais que afetam a vida dos mais pobres, como educação e moradia, de
modo que a maior parte do eleitorado vê menos futuro escolar - e, portanto,
perspectivas de vida - para seus filhos e está vivendo em condições cada vez
mais precárias de moradia. Quem falar sobre esses temas com propriedade e
contra Bolsonaro ganhará votos.
O sentido plebiscitário da eleição de 2022
não significa simplesmente o lado ruim do presidente. Também há uma marca que
ele deixou no eleitorado: o tema dos valores vai ter um peso importante na
disputa presidencial, embora bem menor do que as condições sociais e econômicas
da população. Para os adversários, é um tema a se evitar ou tratar como uma
questão derivada da piora da vida das pessoas, especialmente para o caso das
mulheres mais pobres.
A dimensão do discurso vincula-se ainda a
dois outros pontos. Um é a linguagem usada para chegar aos eleitores. Não
adianta captar o problema certo falando de modo que não convença o eleitor.
Ademais, os meios de comunicação da campanha são essenciais.
O tempo de TV e rádio continua sendo
peça-chave, e aqui Bolsonaro e Lula terão bastante espaço para desenvolver seus
discursos, o que também ocorreria com uma terceira via unificada. As redes
sociais ainda serão estratégicas, embora com maior controle de seus abusos. Mas
a grande sacada é como fazer com que o discurso básico da campanha seja
encampado pela população em seu dia a dia, na conversa com os amigos, no
trabalho, na escola ou na igreja.
A segunda peça-chave são as alianças. As
coligações partidárias são importantes, seja para o horário eleitoral gratuito,
seja para sinalizar o tamanho e a diversidade do apoio obtido pelo
presidenciável.
Mas o ponto mais estratégico para
conquistar votos são os palanques estaduais. Eles geram espaço para o candidato
percorrer o país e, sobretudo, trazem apoios que podem ampliar a votação. No
Nordeste, por exemplo, os concorrentes a governador (e ao Senado) que apoiam
Lula trarão mais votos para ele. Bolsonaro equilibrou o jogo político local no
último mês, mas a terceira via, na maior parte do Brasil, está bem atrasada e
fragmentada na busca de apoiadores regionais.
A imagem pessoal do candidato e o tipo de
liderança que ele simboliza completam as peças-chave de estratégia de campanha.
Após dois anos de uma terrível pandemia, com fortes consequências sociais e
econômicas, a maioria do eleitorado quer um presidente empático, que demonstre
sua humanidade e seja capaz de recuperar a esperança do país. Não será fácil
vestir esse figurino, mas chegar perto dele será fundamental para conquistar o
Palácio do Planalto.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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