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Atacar a democracia é crime
O Estado de S. Paulo
Imunidade parlamentar não inclui agredir a democracia e o livre funcionamento das instituições republicanas, reafirmam PGR e STF. A condenação do bolsonarista é pedagógica
Ao condenar o deputado federal Daniel
Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de reclusão, pelos crimes de ameaça
ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo, o Supremo
Tribunal Federal (STF) foi pedagógico. Não existe liberdade de expressão para
atacar a democracia. Não existe imunidade parlamentar para impedir o livre
funcionamento das instituições republicanas.
Por 10 votos contra 1, o plenário do STF
entendeu que a conduta de Daniel Silveira foi criminosa, isto é, que se
enquadra naquelas hipóteses em que, ao atingir bens essenciais de uma
sociedade, a lei prevê a imposição de uma pena. Os oito anos e nove meses de
prisão não são desproporcionais, mas estrita aplicação da legislação a que
todos os cidadãos estão sujeitos.
No processo, nada houve de perseguição
política. Foi apenas o Estado, por meio de suas instituições, cumprindo seu
papel de impedir que condutas consideradas criminosas pela lei fiquem impunes.
Ao contrário do que os bolsonaristas dizem, não foi o Supremo que, num rompante
autoritário, investigou, denunciou e puniu Daniel Silveira. A acusação contra o
deputado bolsonarista não foi apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, e
sim pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Foi ela quem primeiro entendeu
que a atuação de Daniel Silveira havia sido criminosa.
É sintomático que o bolsonarismo, tão
afeito ao punitivismo – sua retórica é sempre de aumento da pena –, tenha se
mobilizado, de forma tão intensa, pela impunidade de Daniel Silveira. Não era
apenas que “um dos nossos” estava sendo julgado por sua conduta tresloucada.
Foi a própria tática política do bolsonarismo, de agressão contra as
instituições, que estava no banco dos réus. Daí a importância do julgamento de
quarta-feira passada: o Estado Democrático de Direito, por meio de suas
instituições, reconheceu que a política também está sujeita a regras e a
limites. Não é um vale-tudo, não é um mundo sem lei.
A atividade parlamentar dispõe de prerrogativas constitucionais. Como é próprio de um regime democrático, “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53 da Constituição). No entanto, ameaçar e agredir não é uma opinião: é crime. E não cabe usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”, lembrou Alexandre de Moraes.
Eis a confusão que o bolsonarismo deseja
instaurar. Para seus atos, almeja irrestrita impunidade. Tudo estaria dentro de
um amplíssimo conceito de liberdade, para fazer e dizer o que bem entender, num
cenário de completa irresponsabilidade. Para os outros, a liberdade seria
inteiramente diferente, muito mais limitada. A mera crítica ao presidente da
República já foi motivo para que o governo Bolsonaro solicitasse a instauração
de inquérito policial contra opositores. É tudo uma grande incoerência. O mesmo
deputado bolsonarista que gostaria que seus crimes estivessem protegidos pela
imunidade parlamentar defende a edição de um novo AI-5, justamente o ato da
ditadura que suspendeu importantes garantias constitucionais.
Há liberdade no País e, precisamente para
que possa continuar havendo liberdade, é preciso ter lei. “A liberdade de
expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões
jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para
imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o Estado de
Direito e a democracia”, afirmou Moraes.
Além de pedagógico sobre os limites da
liberdade, esse processo judicial põe por terra uma falácia bastante difundida
entre bolsonaristas. O que se tem no País hoje não é uma disputa entre STF e
Jair Bolsonaro, como se o Supremo perseguisse politicamente o bolsonarismo. O
Congresso autorizou a prisão preventiva de Daniel Silveira. A PGR denunciou o deputado.
Até o ministro André Mendonça votou por sua condenação. Não é perseguição
política, é aplicação da lei. E quem está isolado é o bolsonarismo, não o STF.
N. da R. – Com este texto já na página, Bolsonaro anunciou o indulto do deputado, mostrando uma vez mais a falta de pudor do bolsonarismo em usar o poder para acobertar os crimes dos amigos.
Bom para os partidos, ruim para o País
O Estado de S. Paulo
Inapetência de grandes legendas pela Presidência decorre de um arranjo que dá ao Legislativo acesso inaudito ao Orçamento sem a devida responsabilização
Diante dos olhos de todos, grandes partidos
políticos, como PSDB, MDB e União Brasil, têm demonstrado, diariamente, enorme
dificuldade para indicar pré-candidatos à Presidência da República que mostrem
ser alternativas viáveis aos dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção
de voto: o ex-presidente Lula da Silva (PT) e o incumbente, Jair Bolsonaro
(PL). A seis meses da eleição, o cenário de disputas fratricidas, traições e
sabotagens internas no seio do chamado centro democrático sobressalta todos aqueles
que receiam ver o País entregue a um dos dois projetos populistas iliberais ora
em destaque. E está-se falando de muita gente. A depender do instituto de
pesquisa, algo entre 25% e 30% do eleitorado afirma não querer votar nem em
Lula nem em Bolsonaro.
Em um regime presidencialista, é natural
supor que a chegada ao topo do Poder Executivo federal seja o objetivo maior
dos partidos políticos, o gran
finale de uma trajetória marcada pela construção de uma
identidade ideológica e programática, pela ampliação da presença nacional das
legendas e, enfim, pela elaboração de um projeto de governo que represente as
ideias e os valores de segmentos significativos da sociedade. Evidentemente,
nenhum partido político, seja grande ou pequeno, está obrigado a lançar
candidatura própria à Presidência da República a cada quatro anos. Mas há muito
tempo não se via no Brasil tamanha inapetência das grandes legendas – que são
grandes justamente por serem as que bem trilharam aquela trajetória – para
lançar uma candidatura competitiva ao Palácio do Planalto. Há uma razão muito
evidente para isso: o Congresso jamais teve tanto acesso a recursos do
Orçamento da União como tem agora. E sem prestar contas do que faz com tanto
dinheiro.
Desde a aprovação das chamadas emendas impositivas,
tanto as individuais como as de bancada, no governo da ex-presidente Dilma
Rousseff (PT), o Congresso vem ampliando a fatia do Orçamento da União sob seu
controle. Nas democracias representativas, é esperado que deputados e senadores
tenham algum grau de participação na destinação final dos recursos públicos,
mas o que se vê aqui não tem paralelo no mundo. O Estadão teve acesso a
um estudo elaborado pelo economista Marcos Mendes (Insper) para o Instituto
Millenium que revela que a captura de recursos públicos por meio de emendas
parlamentares no País é até 20 vezes maior do que nas nações que integram a
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), instituição da
qual o Brasil deseja fazer parte.
De acordo com o estudo, as emendas
parlamentares representam 24% das despesas dos Ministérios e dos investimentos
previstos para este ano. A título de comparação, nos Estados Unidos apenas 2,4%
da despesa total vem das emendas parlamentares. “O que o Brasil faz é uma
aberração que acaba comprometendo muito a própria democracia”, disse ao Estadão a diretora
executiva do Instituto Millenium, Marina Helena Santos.
A “aberração” se materializa na quantidade
absurda de emendas individuais e de bancada que são apresentadas ao Orçamento
da União. Aberrantes são as emendas de relator, base do “orçamento secreto”.
Indecentes são os valores bilionários dos fundos públicos que despejam dinheiro
fácil nas contas dos partidos, como o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral.
Como o quinhão desses fundos que cabe a cada legenda está relacionado ao
tamanho de suas bancadas, os caciques partidários têm cada vez menos estímulos
para investir em campanhas para a Presidência. Optam pelas eleições
proporcionais, sobretudo para a Câmara dos Deputados. Ademais, o atual arranjo
representa o melhor dos mundos para as legendas: muito dinheiro e nenhuma
responsabilização por seu uso ou pela falta de projetos majoritários para o
País.
Enquanto isso, parcela expressiva dos
eleitores segue sem representação política, à mercê de dois projetos de poder
rigorosamente personalistas. É este, por enquanto o resultado da bagunça
interna e do descaso com o País de partidos políticos outrora dignos de sua
inscrição na história nacional.
A inflação agora preocupa todos
O Estado de S. Paulo
Alta intensa e persistente dos preços agora é percebida por praticamente toda a população
A inflação está se acelerando desde o
início do ano passado, e a cada mês afeta mais o orçamento das famílias, mas a
percepção das pessoas de que os preços de bens rotineiramente comprados por
elas estavam subindo não era muito nítida. Agora é. O impacto da inflação foi
sentido por 95% da população, de acordo com pesquisa patrocinada pela
Confederação Nacional da Indústria (CNI) e realizada pelo Instituto FSB
Pesquisa. Em novembro do ano passado, 73% dos brasileiros diziam ter sentido o
aumento médio dos preços.
O indicador subiu 22 pontos de porcentagem
em seis meses. Nesse período, o ritmo da inflação não se alterou muito. Em
novembro, a alta acumulada de 12 meses foi de 10,7%. Em março de 2022, com alta
de 1,62%, a maior para o mês desde o lançamento do Plano Real, em 1994, o
acumulado de 12 meses alcançou 11,30%, apenas 0,6 ponto maior do que o
resultado de novembro.
Por isso, talvez mais do que a aceleração,
é a persistência da inflação em nível alto que tem feito mais pessoas
perceberem seu impacto. Essa percepção afeta decisões importantes, inclusive no
plano político, pois a inflação pode ter peso expressivo, se não decisivo, na
escolha do candidato à Presidência da República.
A expectativa das pessoas consultadas é de
que não haverá melhora no curto prazo. Em novembro, 54% dos entrevistados
consideravam que os preços aumentariam nos seis meses seguintes. Na pesquisa
mais recente, o porcentual passou para 66%.
Esse sentimento combinado de que os preços
sobem muito e continuarão subindo nos próximos meses, mais intenso na pesquisa
recente do que na anterior, deveria afetar também de maneira mais intensa sua
programação financeira, mas, curiosamente, não foi isso que se constatou. Em
novembro, 74% dos entrevistados disseram que tinham feito algum corte nos
gastos familiares nos seis meses anteriores; em abril, 64% disseram ter
reduzido alguma despesa.
A avaliação do impacto do aumento dos
preços sobre a situação financeira, de sua parte, não mostrou variação
expressiva entre uma pesquisa e outra. Em novembro, 75% dos entrevistados
diziam que suas finanças tinham sido afetadas pela inflação; o índice passou
para 76% em abril. Mas aumentou (de 45% para 54%) a parcela dos que afirmaram
ter tido suas finanças muito afetadas pelo aumento dos preços.
Itens de despesas que mais pesam nos
orçamentos das famílias de baixa renda estão entre os mais citados entre os que
ficaram mais caros nos últimos meses. Dos entrevistados, 59% mencionaram o
aumento da conta de luz; seguem-se, pelo número de citações, gás de cozinha, arroz
e feijão, conta de água, combustível, frutas e verduras, carne vermelha e
remédios.
Por isso, a percepção de que os preços
aumentaram muito é mais intensa nas famílias com renda de até um salário mínimo
(90%) do que nas com renda maior do que cinco salários mínimos (83%). Da mesma
forma, é maior no Nordeste (93%) do que no Sul (76%). Mas, qualquer que seja a
faixa de renda ou a região, a inflação é um mal cuja percepção é generalizada.
Tortura, mancha que não se apaga da
história nacional
Valor Econômico
A lei da anistia conteve os democratas, mas
o revanchismo parece vir hoje dos radicais de direita, estimulados pelo
Planalto
O golpe militar de 1964 abriu um período
nefasto da história republicana, com a destruição da democracia, a perseguição
política, torturas e assassinatos. Ainda sob a ditadura, em 1979, uma lei de
anistia assegurou impunidade a torturadores e aos responsáveis pelos órgãos de
repressão que os comandavam. Prevaleceu até hoje a solução contemporizadora,
fruto do jogo tenso das forças políticas da época, até que chegou à Presidência
o capitão reformado Jair Bolsonaro (“mau capitão”, segundo o ditador Ernesto
Geisel), que vê no regime militar a época de ouro que gostaria de reviver. Não
está sozinho nesse desejo.
O episódio da revelação de fitas gravadas
no Supremo Tribunal Militar entre 1975 e 1985 pela jornalista Miriam Leitão, de
“O Globo” - torturada quando grávida -, comprovou mais uma vez que houve uso da
violência contra presos indefesos e que o tribunal militar tinha conhecimento
delas. Torturas estão descritas em áudios do almirante Júlio de Sá Bierrenbach,
o general Rodrigo Octávio, os ministros Amarilio Salgado e Waldemar Torres da
Costa, brigadeiro Faber Cintra e outros.
Parte de compilação realizada pelo
historiador e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos
Fico, as fitas vieram à tona para desmentir insinuações hediondas de Eduardo
Bolsonaro, filho do presidente, sobre o que ocorreu nos porões da ditadura com
Miriam. Mais do que documentar fatos bárbaros e adicionar detalhes cruéis, os
áudios reavivaram ou revelaram os piores instintos de militares com posições de
poder na República. O vice-presidente Hamilton Mourão, questionado sobre a
necessidade de apurar os fatos descritos, sorriu e disse: “Apurar o quê? Os
caras já morreram tudo, pô”. Para ele, isso faz parte de um passado no qual
“houve excesso de parte a parte”.
Pior fez o presidente do Supremo Tribunal
Militar, general Luís Carlos Gomes Mattos, que qualificou documentos históricos
da Corte que preside de “notícia tendenciosa” e entrou no túnel do tempo para
afirmar que sua divulgação era uma conspiração para atingir as Forças Armadas.
“Não estragou a Páscoa de ninguém”, completou. Para o general, “só varrem de um
lado, não varrem o outro”.
Como deputado, e depois presidente da
República, Jair Bolsonaro não se cansa de louvar os trabalhos do torturador
Carlos Brilhante Ustra, a quem dedicou, inclusive, seu voto pelo impeachment de
Dilma Rousseff. Eleito, Bolsonaro buscou para a chefia do Gabinete de Segurança
Institucional o general Augusto Heleno, ajudante de ordem do general Silvio
Frota, expoente da linha dura do regime militar, botinado por Geisel por tentar
torpedear o processo de abertura política controlada.
O ministro da Defesa, Walter Braga Netto,
cotado para vice na chapa de Bolsonaro para a reeleição, qualificou o golpe de
31 de março como “um marco histórico da evolução política brasileira” em ordem
do dia alusiva à data. Seu legado, segundo Braga, foi de “paz, de liberdade e
de democracia”.
O imaginário bolsonarista é habitado por
fardas e demonstrações de força e poder contra inimigos, entre eles,
frequentemente, a democracia. Eduardo Bolsonaro disse, por exemplo, em vídeo
gravado em julho de 2018: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz?
Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer
o soldado e o cabo, não”.
Bolsonaro atraiu ao seu redor a ala radical
das Forças Armadas, que justifica o rompimento da ordem legal sob alegações
ideológicas diversas, que usualmente não guardam relação com a realidade. Há
outra ala, legalista, que respeita a Constituição, que também se abriga na
cúpula militar. Ela vê o despreparo e a incompetência de Bolsonaro como um
desserviço aos fins últimos do corpo armado do Estado.
Ao colocar milhares de militares na
administração pública, Bolsonaro deu visibilidade a casos gritantes de inadequação
para o cargo em um momento trágico da vida nacional, como foi a passagem do
general Eduardo Pazuello pelo Ministério da Saúde. Ex-militares ou militares da
reserva estiveram envolvidos em escândalos de corrupção no caso das vacinas,
desmoralizando a imagem que o Exército tem perante a população.
Mais importante, com sua gritaria sobre a possibilidade de fraude nas eleições, Bolsonaro busca arregimentar adeptos para seus sonhos radicais. A lei da anistia conteve os democratas, mas o revanchismo parece vir hoje dos radicais de direita, estimulados pelo Planalto.
Brasil não consegue sair da série B da
economia mundial
O Globo
Para os brasileiros, o último Panorama Econômico Global com as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a economia mundial traz dois recados. Primeiro, o PIB do Brasil deverá crescer neste ano raquítico 0,8%, e em 2023 apenas 1,4%. Segundo, esse é um crescimento ainda mais medíocre quando comparado ao dos demais países emergentes.
É verdade que a guerra na Ucrânia freou a
recuperação mundial depois dos piores momentos da pandemia. A previsão é de
inflação alta e de desaceleração no crescimento global (de 6,1% em 2021 para
3,6% em 2022 e 2023). Mas o que está ruim ainda pode piorar. No rol das
incertezas estão a ampliação do conflito armado na Europa e a desaceleração
maior na China em razão do fracasso na estratégia de Covid-19 zero.
Nesse ambiente conturbado, o melhor que o
governo federal poderia fazer é exatamente o contrário do que tem feito. Seria
o tempo de preparar o país para o vendaval que se avizinha. Não na visão do
presidente Jair Bolsonaro. Ele dá repetidas provas de não se importar com o
estado da economia depois das eleições de outubro. Faria bem se moderasse o
ímpeto gastador e parasse de corroer o arcabouço fiscal que garante a gestão
sensata da dívida pública.
Não é um acaso que as estimativas de crescimento do PIB brasileiro em 2022 e 2023 sejam desproporcionalmente menores que as da Índia (8,2% e 6,9%) ou da China (4,4% e 5,1%). Os números para a América Latina (2,5% e 2,5%) e para o México (2% e 2,5%) não chegam às alturas, mas são bem mais respeitáveis que os brasileiros.
Desgraçadamente, isso não é novidade. Com
ou sem guerra, com muita ou pouca incerteza, o desempenho do Brasil tem sido
sofrível com regularidade espantosa. Não há consolo ao olhar para outros
lugares. Desde 2014, o Brasil registra desempenho pior que as médias global e
dos países emergentes e em desenvolvimento. Só crescemos mais que o México em
dois anos.
O debate aqui é prejudicado por uma miopia
crônica. Segundo uma visão deturpada, nossas vantagens comparativas em bens
primários são um limitador ao desenvolvimento industrial. Na verdade, como diz
o economista Samuel Pessôa, faltam evidências convincentes de que a valorização
do câmbio provocada pela venda de commodities seja grande empecilho à
competitividade da indústria. Os maiores problemas são outros, a começar pelo
ambiente protegido. Em vez de maldição, o setor primário, aberto para o mundo,
tem sido a salvação.
Reformar as leis que condenam o Brasil ao
atraso deveria ser a prioridade do próximo governo. Mas nenhum dos líderes nas
pesquisas de opinião parece ter muita noção do momento histórico. Bolsonaro se
tornou refém de demandas corporativas e de interesses os mais variados. E o
ambiente internacional atual em nada se parece com o que o ex-presidente Lula
encontrou durante seus dois mandatos. O discurso prisioneiro dos interesses
locais, da agenda do funcionalismo e da ideia de um Estado indutor do
crescimento já foi testado antes e não deu certo. Insistir nesses erros
equivalerá a continuar vendo a corrida global dos últimos lugares, com
desemprego alto e renda baixa.
PF precisa levar até o fim as investigações
contra Jair Renan
O Globo
Já ficou claro que o bolsonarismo se
manifesta em pelo menos duas variantes, para usar o termo em voga. A primeira
poderia ser chamada de “ideológica” ou “intelectual”. São os bolsonaristas que
se acreditam em guerra contra a esquerda, o “marxismo cultural”, o
“politicamente correto” ou qualquer outra fabulação da extrema direita. A
segunda variante tem um caráter mais material. É um bolsonarismo, por assim
dizer, de resultados, mais voltado para negócios. É o bolsonarismo das
rachadinhas do Queiroz, dos pastores pedindo propina no MEC, das negociatas no
Ministério da Saúde, das estrepolias com o Centrão.
Os filhos Zero Dois (Carlos) e Zero Três
(Eduardo) do presidente Jair Bolsonaro são expoentes da primeira variante. O
primeiro está vinculado à campanha vitoriosa de 2018 e à desinformação nas
redes sociais. O segundo, discípulo do finado guru Olavo de Carvalho, articula
alianças estratégicas com a extrema direita global. O filho Zero Um (Flávio),
protagonista do escândalo das rachadinhas, pode ser considerado um espécime da
segunda variante. A ela também parece pertencer o Zero Quatro (o caçula Jair
Renan), envolvido agora numa história rocambolesca de tráfico de influência, em
que é acusado de abrir a porta do governo a empresários, em troca de mimos para
seu escritório no estádio Mané Garrincha, em Brasília.
Num depoimento de quatro horas à Polícia
Federal, Jair Renan negou irregularidades. Os indícios, porém, são
comprometedores. Em 2020, ele se reuniu no Espírito Santo com empresários
interessados em negócios com o governo. Dois meses depois, as portas do
Ministério do Desenvolvimento se abriram a um deles, numa reunião com a
presença do Zero Quatro, de sua arquiteta e do personal trainer com quem se
associou em vários negócios.
Mensagens obtidas pela PF revelam que esses
dois últimos buscavam patrocínio para pagar obras no escritório do Zero Quatro,
identificadas como “bolsa móveis e bolsa reforma”. “Já já sai na mídia. Filho
de presidente pede Bolsa Móveis”, dizia uma delas. Uma das patrocinadoras do projeto
recebeu R$ 25,4 milhões em contratos para fornecer poltronas, cadeiras e mesas
ao governo. De acordo com Jair Renan, as doações que recebeu das empresas
seriam pagas na forma da veiculação de publicidade nas redes sociais.
É até possível que não haja ligação entre os contratos com o governo e a proximidade do filho do presidente. Mas casos do tipo sempre deixam uma mancha. Todo presidente da República precisa zelar pela imagem de seus parentes, que muitas vezes usam essa relação familiar para catapultar negócios. Bolsonaro não é o único a enfrentar o problema. Várias denúncias atingiram filhos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O mexicano Andrés Manuel López Obrador está às voltas com acusações cabeludas envolvendo seu filho mais velho. Em todos os casos, cabe às autoridades apurar tudo. A PF deve levar as investigações até o fim. E Bolsonaro, como todo bom pai, não deveria passar a mão na cabeça de seus filhos — de qualquer variante.
Desastres no MEC
Folha de S. Paulo
Com 5ª nomeação para a pasta, Bolsonaro
patrocina gestão ruinosa da educação
O presidente Jair Bolsonaro (PL) nomeou
Victor Godoy Veiga como seu novo ministro da Educação. É o quinto
indicado ao MEC em 40 meses. A rotatividade, contudo, constitui o menor dos
problemas da pasta cuja importância estratégica esteve sistematicamente
rebaixada nesta administração.
Godoy Veiga não é mais que um burocrata.
Formou-se em engenharia de redes de comunicação de dados pela Universidade de
Brasília (UnB) em 2003 e só tem cursos de especialização na Escola Superior de
Guerra e na Escola Superior do Ministério Público —nenhum deles relacionado com
educação.
Ocupava a secretaria-executiva do MEC, após
16 anos como auditor na Controladoria-Geral da União (CGU). Fora indicado pelo
antecessor Milton Ribeiro, que deixou o ministério no escândalo da
intermediação de verbas por pastores.
Parece haver mais automatismo que ironia na
escolha do especialista em propinas de órgão de fiscalização do governo para
suceder um investigado. Bolsonaro repete indicações recentes de subalternos
inexpressivos para o primeiro escalão, e até Ribeiro os desvios notórios no MEC
eram ideológicos, não de dinheiro público.
A sucessão de desastres começou com Ricardo
Vélez Rodríguez, filósofo e teólogo indicado ao MEC por Olavo de Carvalho,
falecido guru da direita tresloucada. Vélez ficou 99 dias no cargo, tempo
suficiente só para reconhecer-se sua nulidade.
Quando não parecia possível relegar o MEC a
nível mais inferior, Bolsonaro nomeou Abraham Weintraub, economista da Unifesp.
Seguiram-se 14 meses de destempero por um ideólogo tosco, cujo feito mais
famoso foi vociferar em reunião ministerial que "colocaria todos esses
vagabundos na cadeia, começando no STF".
O passo seguinte na degradação, em 2020, se
deu com o professor de finanças Carlos Alberto Decotelli —que nem chegou a
tomar posse, renunciando pouco depois de nomeado, após descobrirem-se um
doutorado fictício e sinais de plágio na sua tese de mestrado.
Em comum entre Vélez, Weintraub e Ribeiro
encontra-se a inoperância na missão de recuperar o ensino público no país. O
que já era problemático, em termos de aprendizado e proficiência, caminha para
revelar-se uma tragédia sob o golpe triplo da conturbação pandêmica, da
incompetência e do aparelhamento sob Bolsonaro.
Isso sem falar, claro, nos indícios de
corrupção e mau uso do dinheiro público por operadores do centrão que
proliferam na pasta.
Chegou-se no Brasil ao ponto em que o
melhor que se pode dizer do novo ministro da Educação está em não ser,
aparentemente, um militante ideológico ou religioso. É muito pouco, pouco
demais.
Covid acima de zero
Folha de S. Paulo
China se debate para manter controle rígido
do vírus, afetando a economia global
Berço da pandemia do Sars-CoV-2, a China
passou os dois primeiros anos da pandemia sendo admirada pela eficácia de seu
programa de combate à disseminação do vírus que já matou mais de 6,2 milhões de
pessoas no mundo inteiro.
Aplicando uma política rígida de lockdowns
em grandes áreas urbanas, Pequim logrou registrar apenas cerca de 4.700 mortes
oficiais na porção continental do país, com meras 3 vítimas para cada milhão de
habitante —um milésimo do observado no Brasil ou nos EUA.
Tal brilho sempre foi alvo de contestação
devido à opacidade
típica de estatísticas em uma ditadura comunista, mas especialistas
concordam que os chineses conseguiram um sucesso sanitário único.
Ato contínuo, o feito virou peça de
propaganda do regime ante a suposta ineficiência das democracias liberais em
lidar com o vírus.
Foi assim até agora. A abordagem conhecida
como Covid zero começou a ser colocada à prova com a emergência da variante
ômicron, que varreu o globo neste ano.
Em Hong Kong, região semiautônoma que não
integra os números chineses da peste, houve uma explosão de casos que
evidenciou dois problemas graves: o relaxamento da cobertura vacinal entre os
mais idosos e o fato de que os imunizantes do país, de tecnologia mais
tradicional, são menos eficazes contra a nova cepa.
De forma inédita, duas megacidades, Xangai
(26 milhões de habitantes) e Shenzhen (17 milhões) foram fechadas. Tão inaudito
quanto isso, moradores passaram a furar o bloqueio da internet para protestar
contra as regras draconianas e a vida numa distopia onde cães-robôs vigiam as
ruas.
Como ensinou Sun Tzu no clássico chinês
"A Arte da Guerra" (séc. 5º a.C.), se o inimigo deixa uma porta
aberta, urge precipitar-se sobre ela. Foi o que o vírus fez.
Com isso, a produção industrial chinesa,
engatinhando para fora da crise, entrou em alerta. A imagem de centenas de
navios à espera de atracagem no porto de Xangai insinua o dano a cadeias
logísticas mundiais, já bastante castigadas.
Em um mundo que lida com uma guerra
europeia com potencial caótico para a área de energia, é mais do que uma má
notícia.
Na fútil competição geopolítica, o Ocidente não apresenta números melhores, e a volta dos surtos assombra a Europa e os Estados Unidos. Mas são Xi Jinping e sua inflexível política sanitária que estão agora no holofote.
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