sábado, 18 de novembro de 2023

Eduardo Affonso - Etimologias a dar com o pau

O Globo

O cantor Criolo possivelmente não incluiria em seu repertório o clássico ‘Samba do crioulo doido’, de Stanislaw Ponte Preta

Segunda-feira, 20 de novembro, é o Dia Nacional da Consciência Negra. Negra ou preta? A polêmica é questão de tempo: há quem veja na palavra “negro” uma carga depreciativa, associada a nigger, e “preto” seria o politicamente correto. Afinal, black is beautiful; a n-word, não. Mais uma questão importada acriticamente: os grupos Cidade Negra e Raça Negra, Jovelina Pérola Negra e Neguinho da Beija-Flor que o digam — com o contraponto do Pretinho da Serrinha, da Preta Gil, da Banda do Zé Pretinho e do Preto Brás (salve, Itamar Assumpção!).

Ambos os termos, preto e negro, sempre foram quase intercambiáveis no Brasil — ora de forma pejorativa, ora empoderada. Sem contar o hoje abominado “crioulo” — em sua origem, o descendente de um estrangeiro (colonizador ou escravizado), mas já nativo do lugar. Com uso figurado, há os galpões crioulos, no Sul, e as línguas crioulas, como o cabo-verdiano. Antes de virar palavrão, foi cantado por Elza Soares (“Chamego de crioula/é o melhor remédio”), Zezé Motta (“Swing é natural da raça/Crioula, crioula”) e Sandra de Sá (“A verdade é que você/tem sangue crioulo/tem cabelo duro/sarará crioulo”). Mas o cantor e compositor Criolo possivelmente não incluiria em seu repertório o clássico “Samba do crioulo doido”, de Stanislaw Ponte Preta. É o Zeitgeist.

É difícil que uma palavra seja racista. Racista é o uso que se faz dela. Mas o problema começa de verdade é quando se lança mão de falsas etimologias para justificar o cancelamento: “negro” viria de nigru (“inimigo”, em grego). Falso: vem do latim nigrum, que significa... preto.

No recém-lançado “50 pseudoetimologias para deixar de compartilhar”, o professor Rafael Gustavo Rigolon, da Universidade Federal de Viçosa, lista uma longa série de etimologias incorretas e anacronismos semânticos (quando o significado recente é aplicado ao passado, ou vice-versa).

Entre as fake news popularizadas pela militância (supostamente) antirracista (e flagrantemente antietimológica) estão os delirantes criado-mudo, fazer nas coxas, empregada doméstica, nesse angu tem caroço, inhaca, cecê, a dar com o pau. Todas um prato cheio para os terraplanistas linguísticos. (A propósito, “prato cheio” não será racista? Se meia-tigela é...)

Rigolon lembra que o Firefox trocou “senha mestra” por “senha principal”, pois “mestra” remeteria à relação mestre-escravo... E aponta que, se importasse o etimologicamente correto (mesmo anacronicamente equivocado), os banidos poderiam ser:

— Boticário: do latim appothecarius — escravo encarregado do armazém ou adega (apotheca);

— Liturgia: do latim liturgus — escravo pertencente ao Estado, responsável por assuntos de interesse púbico;

— Pedagogia: do grego paidagogós — escravo que conduzia as crianças para a escola;

— Monitor: do latim monitor — escravo que vigiava o trabalho dos demais;

— Servidor: do latim servus — servo, escravo; neste caso, deveríamos proscrever também servente, serviço, servidão de passagem, self-service;

Quem sobreviver à avalanche de etimologias pseudorracistas do dia 20 deve esperar um pouco antes de comemorar: dia 24 vem outra rodada, com a Black Friday.

Um comentário:

Daniel disse...

Este colunista abusa da paciência dos pobres leitores. Qual será mesmo o "interesse púbico" da liturgia?? É muita bobagem reunida...