O Estado de S. Paulo
Nada – salvo a Providência Divina – garante que um novo ‘poder originário’ nos trará um produto melhor que a Constituição vigente
Faz tempo que ouvimos críticas ao excesso de
partidos, mas há nisso um equívoco, pois, na verdade, no Brasil atual só temos
dois: o dos pessimistas e o dos otimistas.
Os pessimistas constituem uma vasta maioria,
mas a opinião deles não pesa muito, em razão de sua compreensível dificuldade
para compreender os labirintos brasilienses. Contentam-se com costear o
alambrado, lembrando aqui a pitoresca expressão cunhada pelo engenheiro Leonel
Brizola. A contribuição que prestam ao País é a sinceridade. Não ficam por aí
cascateando sobre o que não entendem. Seu discurso é o silêncio, ou vitupérios
lastreados mais no sentimento que na lógica.
Os otimistas são um caso mais complexo. Há, desde logo, os hipermilionários, aqueles que chegaram aos píncaros das mais altas montanhas e lá dão saltos de fazer inveja aos cabritos monteses, certos de que jamais despencarão lá para baixo. Acreditam que cedo ou tarde sairemos do fundo do poço, mas pouco se lhes dá se não sairmos. Abaixo deles há aqueles que, por deterem algum patrimônio, inspiram-se nas galinhas, que pouco a pouco enchem o papo. Por essas e outras razões, todo otimista quer mais otimismo, pois o que lhe importa é criar um ambiente “amigável” para os negócios – um “círculo virtuoso”, expressão que soa como música a seus ouvidos.
A discrepância entre os dois discursos que
anteriormente me empenhei em tracejar explica boa parte do processo, quero
dizer, do que vemos quando deixamos de lado os discursos e tentamos apreender a
realidade com os olhos.
Os otimistas, tanto os mais altos como os
medianos, mesmo os que padecem de males oftalmológicos, ocasionalmente percebem
o óbvio. Entendem que, cedo ou tarde, teremos de desemaranhar o acervo de
tolices constitucionais que acumulamos ao longo de nossa história. E se
assustam ao constatar que ela mesma, a Constituição, interdita aos atuais
deputados e senadores a elaboração de outra à altura das necessidades do País.
Para tanto, seria mister convocar o “poder constituinte originário”, vale
dizer, outra assembleia constituinte. E, por suposto, nada – salvo a
Providência Divina – garante que o novo “poder originário” nos trará um produto
melhor que a vigente.
Um ponto que poderia ser hilário, não fossem
os diversos problemas que já nos causou, é o da reforma política, panaceia que
a sociedade vem crescentemente reclamando. A vantagem, aqui, é que o enredo
cabe em poucas linhas. Podemos prever com matemática exatidão que os futuros
“constituintes originários” começarão pela antinomia presidencialismo x
parlamentarismo, aqueles afirmando que o presidencialismo é insubstituível,
porque o anseio por um “governo forte” está há séculos alojado em nosso
subconsciente psicossocial, enquanto os parlamentaristas, em geral cultos e
convictos, preferirão não se envolver em pelejas de mau gosto.
Contando a partir da Constituição republicana
de 1891, faz exatos 132 anos que o debate desta questão se pauta por esse
enredo, mas a montanha deu à luz tão somente uns poucos ratinhos. Contudo,
cordiais como somos, faremos de tudo para evitar um eventual nocaute.
Procuraremos um meio-termo, e por essa trilha chegaremos a alguma fórmula
mista, semi ou equivalente, muito do agrado de nossos políticos, por sugerirem
moderação, conciliação, negociação. Nesta passarela, a estrela será com certeza
o semipresidencialismo francês.
Mais que destrinchar a lógica de tal sistema,
ocorre-me aqui relembrar o ocorrido em 1962, quando uma Junta Militar pretendeu
impedir a posse na Presidência do sr. João Goulart, legitimamente eleito para a
vice-presidência, mas que se achava fora do País, em viagem oficial à China,
fazendo-o saber que seria preso no exato momento em que pisasse no solo
brasileiro.
Para abreviar, direi apenas que a solução
encontrada foi o semipresidencialismo (muito embora o Aditivo Constitucional
pomposamente indicasse que seu objetivo era “instituir no Brasil o sistema
parlamentarista de governo”), marcando para cinco anos mais tarde um plebiscito
que o ratificaria (ou não). Um dos pontos hilários da mencionada solução foi o
artigo 2.º, inciso 11, que atribuía ao presidente da República (a João Goulart,
portanto) a prerrogativa de “vetar, nos termos da Constituição, os projetos de lei,
considerando-se aprovados os que obtiverem o voto de três quintos dos deputados
e senadores presentes, em sessão conjunta das duas câmaras”. Quer dizer, o semi
estabelecia um quórum de 60% do Congresso Nacional para toda a legislação, e
nem se deu ao trabalho de indicar se e como tal veto poderia ser derrubado pelo
Legislativo!
Tancredo Neves, amigo íntimo tanto de Getúlio
como de Jango, nomeado por este para o cargo de primeiro-ministro, confidenciou
ao saudoso prefeito de São Paulo Olavo Setúbal que esse artigo foi a principal
razão de seu pedido de demissão do cargo, fato que, em retrospecto, e sem temor
de errar, podemos considerar determinante da sequência de graves crises que o
País viveu até o golpe militar de 1964.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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