sábado, 18 de novembro de 2023

Bolivar Lamounier* - O discurso e o processo

O Estado de S. Paulo

Nada – salvo a Providência Divina – garante que um novo ‘poder originário’ nos trará um produto melhor que a Constituição vigente

Faz tempo que ouvimos críticas ao excesso de partidos, mas há nisso um equívoco, pois, na verdade, no Brasil atual só temos dois: o dos pessimistas e o dos otimistas.

Os pessimistas constituem uma vasta maioria, mas a opinião deles não pesa muito, em razão de sua compreensível dificuldade para compreender os labirintos brasilienses. Contentam-se com costear o alambrado, lembrando aqui a pitoresca expressão cunhada pelo engenheiro Leonel Brizola. A contribuição que prestam ao País é a sinceridade. Não ficam por aí cascateando sobre o que não entendem. Seu discurso é o silêncio, ou vitupérios lastreados mais no sentimento que na lógica.

Os otimistas são um caso mais complexo. Há, desde logo, os hipermilionários, aqueles que chegaram aos píncaros das mais altas montanhas e lá dão saltos de fazer inveja aos cabritos monteses, certos de que jamais despencarão lá para baixo. Acreditam que cedo ou tarde sairemos do fundo do poço, mas pouco se lhes dá se não sairmos. Abaixo deles há aqueles que, por deterem algum patrimônio, inspiram-se nas galinhas, que pouco a pouco enchem o papo. Por essas e outras razões, todo otimista quer mais otimismo, pois o que lhe importa é criar um ambiente “amigável” para os negócios – um “círculo virtuoso”, expressão que soa como música a seus ouvidos.

A discrepância entre os dois discursos que anteriormente me empenhei em tracejar explica boa parte do processo, quero dizer, do que vemos quando deixamos de lado os discursos e tentamos apreender a realidade com os olhos.

Os otimistas, tanto os mais altos como os medianos, mesmo os que padecem de males oftalmológicos, ocasionalmente percebem o óbvio. Entendem que, cedo ou tarde, teremos de desemaranhar o acervo de tolices constitucionais que acumulamos ao longo de nossa história. E se assustam ao constatar que ela mesma, a Constituição, interdita aos atuais deputados e senadores a elaboração de outra à altura das necessidades do País. Para tanto, seria mister convocar o “poder constituinte originário”, vale dizer, outra assembleia constituinte. E, por suposto, nada – salvo a Providência Divina – garante que o novo “poder originário” nos trará um produto melhor que a vigente.

Um ponto que poderia ser hilário, não fossem os diversos problemas que já nos causou, é o da reforma política, panaceia que a sociedade vem crescentemente reclamando. A vantagem, aqui, é que o enredo cabe em poucas linhas. Podemos prever com matemática exatidão que os futuros “constituintes originários” começarão pela antinomia presidencialismo x parlamentarismo, aqueles afirmando que o presidencialismo é insubstituível, porque o anseio por um “governo forte” está há séculos alojado em nosso subconsciente psicossocial, enquanto os parlamentaristas, em geral cultos e convictos, preferirão não se envolver em pelejas de mau gosto.

Contando a partir da Constituição republicana de 1891, faz exatos 132 anos que o debate desta questão se pauta por esse enredo, mas a montanha deu à luz tão somente uns poucos ratinhos. Contudo, cordiais como somos, faremos de tudo para evitar um eventual nocaute. Procuraremos um meio-termo, e por essa trilha chegaremos a alguma fórmula mista, semi ou equivalente, muito do agrado de nossos políticos, por sugerirem moderação, conciliação, negociação. Nesta passarela, a estrela será com certeza o semipresidencialismo francês.

Mais que destrinchar a lógica de tal sistema, ocorre-me aqui relembrar o ocorrido em 1962, quando uma Junta Militar pretendeu impedir a posse na Presidência do sr. João Goulart, legitimamente eleito para a vice-presidência, mas que se achava fora do País, em viagem oficial à China, fazendo-o saber que seria preso no exato momento em que pisasse no solo brasileiro.

Para abreviar, direi apenas que a solução encontrada foi o semipresidencialismo (muito embora o Aditivo Constitucional pomposamente indicasse que seu objetivo era “instituir no Brasil o sistema parlamentarista de governo”), marcando para cinco anos mais tarde um plebiscito que o ratificaria (ou não). Um dos pontos hilários da mencionada solução foi o artigo 2.º, inciso 11, que atribuía ao presidente da República (a João Goulart, portanto) a prerrogativa de “vetar, nos termos da Constituição, os projetos de lei, considerando-se aprovados os que obtiverem o voto de três quintos dos deputados e senadores presentes, em sessão conjunta das duas câmaras”. Quer dizer, o semi estabelecia um quórum de 60% do Congresso Nacional para toda a legislação, e nem se deu ao trabalho de indicar se e como tal veto poderia ser derrubado pelo Legislativo!

Tancredo Neves, amigo íntimo tanto de Getúlio como de Jango, nomeado por este para o cargo de primeiro-ministro, confidenciou ao saudoso prefeito de São Paulo Olavo Setúbal que esse artigo foi a principal razão de seu pedido de demissão do cargo, fato que, em retrospecto, e sem temor de errar, podemos considerar determinante da sequência de graves crises que o País viveu até o golpe militar de 1964.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

 

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