Folha de S. Paulo
É preciso abandonar as velhas receitas
empregadas pelos gigolôs da violência
Uma policial militar assiste, absolutamente
passiva, a um homem armado (depois identificado como investigador) perseguir e
ameaçar um jovem negro na saída de uma estação de metrô em São Paulo. Só
abandona o seu estado de letargia para chutar o jovem negro, trazido à sua
guarda por uma mulher desarmada (depois identificada como esposa do homem
armado), que buscava pacificar a situação.
A cena, que viralizou nas redes sociais,
seria apenas um episódio grave e bizarro se não fosse um retrato da
incapacidade endêmica do Estado brasileiro de garantir o império da lei em todo
o seu território e a todos os seus cidadãos.
A expansão do poderio do crime organizado e das milícias e o caos na segurança e no sistema penitenciário, assim como a persistência inaceitável de padrões de violência e discriminação racial nas forças policiais, são a prova do quanto estamos distantes da consolidação do Estado de Direito no Brasil. Conforme recente pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança Pública, nada menos que 90% das vítimas letais da violência policial são negras.
As altíssimas taxas de criminalidade e de
arbítrio do Estado, que brutalizem o cotidiano de milhões de pessoas,
especialmente pretos e pobres, não têm sido capazes de mobilizar nossas
lideranças políticas para reformar as instituições de aplicação da lei no
Brasil. Essa omissão tem gerado custos humanos incomensuráveis. Nas últimas
duas décadas, cerca de 1 milhão de pessoas foram mortas de forma violenta no
Brasil.
Não precisamos de mais uma Operação de Lei e
Ordem. Menos ainda das velhas receitas empregadas pelos gigolôs da violência,
que apenas tiveram o efeito de degradar as polícias e o sistema penitenciário,
fortalecendo o crime organizado e as milícias.
O que o Brasil precisa é promover um amplo
pacto em torno do império da lei. Ao Governo Federal cumpre assumir um
protagonismo de natureza compartilhada, ao lado de governadores e do Senado, na
condução desse processo.
O Congresso
Nacional precisa deixar de ser um mero balcão de defesa dos interesses
corporativos das polícias para se tornar uma trincheira de defesa dos direitos
da população. Poder Judiciário e Ministério Público, por sua vez, precisam
cumprir as responsabilidades de monitoramento e controle das atividades
policiais e prisionais, que lhe foram atribuídas pela Constituição.
Esse pacto dependerá, também, de uma parceria
com os setores responsáveis das corporações policiais, da academia e da
sociedade civil, na elaboração e implementação de um plano concreto de reforma
e modernização das instituições de aplicação da lei.
Esse plano deverá contemplar necessariamente:
1) a capacitação e valorização das polícias, a reforma e modernização
institucional, o emprego maciço de inteligência e tecnologia, a integração e
coordenação entre agências, além do aperfeiçoamento de mecanismos de avaliação
e controle; 2) a revisão das políticas criminais, favorecendo a redução do
encarceramento em massa e a ampliação das penas alternativas; 3) a articulação
com outras políticas sociais, com comprovado impacto sobre a criminalidade; e
4) o fortalecimento da Força Nacional de Segurança, para que os governadores
dispostos a modernizar suas polícias, não permaneçam reféns do populismo
criminal, que tem, há décadas, obstruído todas as propostas de modernização da
segurança.
O custo da não consolidação do império da lei
será ampliar o arbítrio, a discriminação e o poder do crime e das milícias. É
isso que queremos legar às nossas futuras gerações?
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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