Correio Braziliense
A sociedade civil se mobilizou para criar a
própria agenda, mas, desta vez, focada em mecanismos de defesa do Estado
Democrático de Direito
Quando Eduardo Bolsonaro, o "03" de
Jair, disse em uma palestra que, para fechar o STF, você precisaria de "um
cabo e um soldado", não estava fazendo provocação. Na realidade, estava
seguindo um costume de família que consiste em divulgar seus planos
autoritários aos quatro ventos. Curiosamente, quatro anos depois a democracia
mostrou que mesmo com capitão, tenente-coronel e general quatro estrelas não
conseguiram abolir o Estado Democrático de Direito.
O que aconteceu há exatamente dois anos, na tarde do dia 8 de janeiro de 2023, foi o resultado de um longo período de descredibilização das instituições brasileiras. Os articuladores intelectuais, por mais que esse nome possa parecer um oxímoro, dadas as evidências que temos conhecimento, estavam há anos dentro da estrutura do Estado com a clara intenção de corroê-la por dentro. Em um jantar em Washington com a ilustre presença do astrólogo Olavo de Carvalho, o ex-presidente disse que seria necessário primeiro "desconstruir muita coisa" antes de avançar com seus projetos. E, de fato, foi o que tentaram fazer: sequestrando ideologicamente as forças de segurança, degenerando o debate público, estimulando o desequilíbrio entre os poderes e perseguindo as organizações da sociedade civil.
O que percebemos é que um golpe de Estado não
aconteceu por uma mistura de articulação do campo democrático, falta de apoio
em setores estratégicos e sorte. Essa situação não pode se repetir — ainda mais
em um país que apresenta uma queda significativa no número de pessoas que
continuam acreditando que democracia é sempre melhor que qualquer outra forma
de governo, segundo pesquisa Datafolha.
Concomitantemente, vemos um Poder Legislativo
que, ao que parece, esqueceu que teve a própria existência ameaçada há cerca de
dois anos. Na contramão do bom senso, esse poder decidiu debruçar-se sobre
questões que passam ao largo das demandas de um país que leva sua democracia a
sério, como a preservação do orçamento secreto, a anistia aos golpistas que
tentaram destruir aquele parlamento e uma proposta de voto impresso que, na
prática, inviabilizaria o trabalho da Justiça Eleitoral para as eleições de 2026.
Desde a posse do presidente Lula, o grito de
"sem anistia" é ecoado em diversos eventos. Com o sucesso retumbante
do filme Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles, os debates sobre
memória, verdade e justiça se intensificaram na opinião pública. Há um passado
— para as gerações mais novas, intangível — que se faz presente não só nas
telas do cinema, mas também nas páginas dos jornais. Engana-se quem argumenta
que a busca por justiça e reparação seria remoer o passado — o ethos
autoritário nunca esteve tão presente. Ou melhor, ele ainda está aqui.
Após um ano em que o termo "reformas
estruturantes" virou o chavão de toda a classe política, a sociedade civil
se mobilizou para criar a própria agenda, mas, desta vez, focada em mecanismos
de defesa do Estado Democrático de Direito. Como diz a música de Erasmo, que
serviu de trilha sonora para o filme de Salles, "não vou ficar calado / no
conforto, acomodado/ como tantos por aí".
Em um processo que envolveu a ampla discussão
entre diferentes atores da sociedade civil, especialistas e a academia, o Pacto
pela Democracia lança hoje a Agenda Democracia Forte. São oito pilares e 38
diretrizes para o fortalecimento do nosso sistema democrático.
Essa agenda abrange desde a crucial
necessidade de investir em educação cidadã e combater as redes internacionais
de autoritarismo até a urgência de despolitizar as forças de segurança,
qualificar o debate público, garantir a responsabilização por crimes contra a
democracia e fortalecer o equilíbrio entre os poderes. São ações concretas para
blindar nossa democracia contra novas investidas autoritárias, colocando no
papel compromissos que, até agora, ficaram nas palavras.
A sociedade civil se coloca na vanguarda, e
essa agenda se faz necessária, uma vez que pouco é discutido quanto às ações
efetivas para defesa do Estado Democratico de Direito. Se antes tratamos de um
diagnóstico, agora temos a vacina.
Na mesma música de Erasmo, ele diz que
"descansar não adianta / quando a gente se levanta/ quanta coisa
aconteceu". Não descansaremos. O país urge por medidas de combate a
qualquer tipo de autoritarismo, feitas com ampla discussão com a sociedade
civil e que venham na esteira de um movimento de memória.
Os desafios estão postos e as diretrizes,
também. Agora, é preciso dar um jeito, meu amigo.
*Coordenador de advocacy do Pacto Pela
Democracia
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