Folha de S. Paulo
Para Michael Walzer, liberal não define o que
se é, mas como se é
Flanando pelas ruas de Edimburgo, leio nesta
Folha o artigo de
Deirdre McCloskey sobre os verdadeiros liberais.
Sorrio. Estou no lugar certo: foi aqui,
na Escócia,
em pleno século 18, que a palavra "liberal" surgiu pela primeira vez
em inglês com conotação abertamente política.
Um pormenor, porém, merece ser realçado:
"liberal" nasceu como adjetivo antes de se tornar substantivo. Como
explica o economista Daniel Klein, que tem estudado essas arqueologias
conceituais, foram iluministas escoceses, como Adam Smith, que definiram como
liberal um sistema de governo que permite a cada um procurar os seus interesses
e fins de vida, desde que respeitando a lei geral.
A palavra acabaria por evoluir até se
cristalizar numa ideologia política —o liberalismo— e num substantivo —o
liberal. E, como normalmente acontece com ideologias, surgiram escolas,
subescolas, sub-subescolas, que se guerreiam e se excomungam.
Mas haverá alguma vantagem em retornar ao adjetivo? E, em caso afirmativo, será possível encontrar espíritos liberais nos lugares mais inusitados?
O filósofo Michael
Walzer, em ensaio testamentário, se ocupa dessas questões todas
citadas.
O título e o subtítulo resumem o espírito da
sua obra: "The Struggle for a Decent Politics: On ‘Liberal’ as an
Adjective" (ou em português, a luta por uma sociedade decente: sobre
‘liberal’ como adjetivo, Yale, 184 págs).
Eis a proposta de Walzer: hoje, a palavra
liberal deveria ter uma dimensão essencialmente moral. Ser uma pessoa liberal
significa, em traços gerais, ter uma mente aberta, ser generoso, ser capaz de
aceitar a ambiguidade, condenar o fanatismo e não tolerar a crueldade.
Como escreve o filósofo, "liberal"
não define o que se é, mas como se é. É uma forma de estar na vida, de agir em
sociedade, de nos relacionarmos com os outros. Com liberalidade.
Isso significa que o número de liberais pode
ser bem maior do que Deirdre McCloskey imagina. No seu artigo, McCloskey fala
em progressistas, libertários —e liberais "suficientes", como ela.
Mas Walzer é mais generoso (mais liberal?)
com a fauna humana. Conservadores liberais, nacionalistas liberais, democratas
liberais, até socialistas liberais têm espaço nessa arca de Noé.
"Liberal", quando aplicado a cada um desses nomes, é uma forma de
evitar que as ideologias degenerem nas suas piores versões, mantendo ainda um
respeito primordial pela liberdade e dignidade humanas.
Usando os exemplos de Walzer, um democrata
liberal respeita a vontade da maioria. Mas também entende que as maiorias
necessitam de limites constitucionais que muitas vezes frustram as pulsões da
multidão.
Há quem discorde. Há quem prefira uma
democracia "iliberal", como acontece na Hungria de Viktor Orbán. É um
desejo arriscado: quando tudo depende da maioria, é melhor você ter a certeza
de que nunca estará entre a minoria que participa.
E que dizer de socialistas liberais, esse
supremo paradoxo?
Walzer não fala, obviamente, de ideologias
totalitárias, como o comunismo. Fala da tradição social-democrata que aceita a
"liberdade civil burguesa" como forma de atingir uma sociedade menos
desigual.
Um socialista liberal não abandona o seu
desejo de igualdade; mas entende que esse destino deve ser trilhado por via
democrática, sem atropelo de direitos fundamentais e fazendo uma distinção
entre desigualdades toleráveis e intoleráveis.
Ou, como escreve Walzer, é tudo uma questão
de convertibilidade: há coisas que o dinheiro pode comprar e outras que não
pode. É indiferente se os mais ricos compram artigos de luxo que estão
inteiramente vedados à restante população.
Não é indiferente se apenas os mais ricos têm
acesso a saúde, justiça ou influência política.
Por último, Walzer dedica algumas linhas aos
"professores liberais", esse artigo cada vez mais raro nos
departamentos de humanidades. Como reconhecer um?
Muito fácil: um professor liberal é aquele
que, apesar das suas convicções mais firmes, não as impinge aos alunos como a
última verdade revelada. Ou, então, é aquele que apresenta visões contrárias à
dele com a honestidade intelectual possível.
Imagine um professor progressista que
apresenta argumentos conservadores sem hostilidade ou caricatura. Ou
vice-versa.
Eu não disse que este era um artigo para lá
de raro?
Sim, os liberais podem ser divididos em
vertentes clássicas, modernas, ordoliberais, libertárias, neoliberais, o diabo.
Mas a questão decisiva é saber primeiro se
estamos na presença de liberais liberais.
*Escritor, doutor em ciência política pela
Universidade Católica Portuguesa
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