Folha de S. Paulo
Grave violação das instituições democráticas
dividiu grupo político entre críticas táticas e justificativas ideológicas
Oito de
janeiro. A data desta coluna se impõe como tema e como memória,
especialmente após os relatórios da Polícia Federal sobre a "trama
golpista" da extrema
direita. Não era, como supomos em 2023, o plano "A" do
golpe —este havia sido previsto para dezembro de 2022—, mas um plano de
contingência, a última tentativa dos conspiradores de fazer o Alto Comando das
Forças Armadas ignorar sua avaliação de que as circunstâncias eram
desfavoráveis.
Nos últimos dois anos, o governo, o campo
político democrático, a imprensa e a esquerda adotaram concepção bastante
homogênea acerca daqueles eventos.
Desde os primeiros "vivos", o
telejornalismo tratou o episódio como uma tentativa de golpe de Estado, sem
ambiguidades. Assim também se comportaram o governo e o Judiciário, que agiram
rapidamente para debelar o ataque, evitar que suas consequências se alastrassem
e punir os envolvidos. Tentativa de "abolição violenta do Estado de
Direito" foi o selo definitivo que fechou a interpretação.
Pelo menos para o campo democrático e para as autoridades e instituições que tinham a obrigação de defender a democracia.
Mas e os envolvidos? Como os bolsonaristas elaboraram esses eventos e as suas consequências?
Minha hipótese, decorrente da observação
sistemática dos grupos bolsonaristas online, é que o bolsonarismo, apesar das
diferenças internas, nunca assumiu uma condenação clara e uniforme sobre os
eventos do 8 de janeiro. Enquanto a sociedade brasileira, em geral, tende a ver
os atos como uma grave violação das instituições democráticas, a extrema
direita os enxerga de maneira ambígua, dividida entre críticas táticas e
justificativas ideológicas. O que emerge é uma constelação de discursos e
pontos de vista que se alternam entre a autocrítica estratégica, a vitimização
e a negação de responsabilidade.
Em muitos casos, os atos são vistos como
"burrice estratégica", um "gol contra" que deu aos
adversários a oportunidade de perseguir a direita e reforçar a sua posição de
poder. Essa postura tenta separar o objetivo, considerado legítimo —contestar o
governo e as instituições—, dos meios, esses sim, desastrados.
Os argumentos predominantes nesses ambientes
são variados, mas um dos mais recorrentes é o da "armadilha orquestrada
pelo governo". Os atos não teriam sido genuínos ou espontâneos, mas parte
de uma trama extremamente elaborada para desestabilizar a direita, prender
simpatizantes e consolidar o poder do "desgoverno" atual.
Termos como "armadilha",
"infiltrados" e "conspiração" são amplamente usados para
transferir a culpa aos outros. Essa versão permite que a extrema direita se
mantenha em uma posição de vítima, reforçando a ideia geral de perseguição
política.
Outra narrativa comum é a de que os
manifestantes, muitas vezes descritos como "patriotas" ou
"inocentes úteis", foram injustamente presos e perseguidos, com
algumas versões investindo no drama humano dos participantes ao mencionar idosos,
cadeirantes ou mães com crianças. A vitimização é uma estratégia central: os
envolvidos são vistos como mártires de um sistema opressor, apanhados em um
protesto legítimo que foi manipulado e draconiamente reprimido.
No entanto, essas posições não são
homogêneas. Alguns setores, mais pragmáticos, reconhecem os eventos como um
erro estratégico que enfraqueceu a direita e forneceu munição para os seus
adversários políticos.
Isso é o mais próximo de uma autocrítica que
se consegue chegar, ainda que limitada a questões de eficácia política e imagem
pública. Por outro lado, setores mais ideológicos e conspiratórios rejeitam
qualquer culpa, preferindo acreditar que tudo foi uma farsa organizada pelo
governo para justificar a repressão. Esses grupos frequentemente usam o 8 de
janeiro como um símbolo da luta contra um "estado de exceção" que,
segundo eles, está em curso no Brasil.
Essas nuances revelam que o 8 de janeiro é um
ponto de tensão dentro da extrema direita. As críticas ao evento não convergem
com a posição predominante da sociedade brasileira, pois divergem do
pressuposto de que foi um ataque à
democracia. Os argumentos predominantes oscilam entre negar
responsabilidade, justificar os atos como legítimos e lamentar seus resultados
práticos. Internamente, essas diferenças refletem divisões que fragmentam a
direita radical.
No final, o que emerge é que o 8 de janeiro
foi um evento mal compreendido ou uma armação dos inimigos da extrema direita,
em que patriotas inocentes caíram feito patos. E que, se houve um golpe nesse
dia, a direita foi a vítima maior da artimanha.
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