Folha de S. Paulo
O bem-vindo chamado à paz deve vir
acompanhado da memória viva e da imprescindível justiça
Eram 15h40 de 8 de janeiro de 2023 quando o
Supremo Tribunal Federal foi invadido e violentamente vandalizado. A memória
acesa alerta para que não se repita a infâmia (como denominou a ministra Rosa
Weber, então presidente do tribunal).
Com a Constituição nas mãos e a segurança
jurídica como bússola, a consolidação do respeito às instituições é o caminho
que há de nos levar a um futuro no qual o que ocorreu seja, simplesmente,
inconcebível.
Quando se levanta uma questão vital do Estado
constitucional como essa, legitima-se institucionalmente, pelo tempo
estritamente necessário, a defesa pública das condições de possibilidade da
própria democracia. A imprescindível autonomia e independência da magistratura
é consubstancial ao Estado de Direito democrático.
Nenhuma regra na ordem jurídica democrática em vigor autoriza ou permite o uso da força para a conquista do poder. Vivemos hoje esse tempo em que é necessário rememorar que a Constituição vigente escolheu o Estado e a sociedade fundamentados nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, no pluralismo político e na livre manifestação do pensamento. Essa via compreende harmonia social, soluções pacíficas e preceitos que impõem respeito à soberania popular exercida pelo voto direto e secreto.
A olho nu vê-se que o Brasil carrega desde
1988 não só alguns propósitos alcançados, mas também cinzas de muitos sonhos. E
deve seguir, em especial, habitado por esperanças convocadas pela memória da
redemocratização.
Há diversos objetivos fundamentais da
República ainda não substancialmente atendidos, como erradicar a pobreza,
promover o bem de todos, sem preconceitos, e construir uma sociedade livre,
justa e solidária. Ainda se mostra persistente o déficit ético de moralidade e
de eficiência na gestão pública.
Dar concretude aos desígnios de 1988 também
supõe segurança e redução da abissal desigualdade social que macula nossa
sociedade. Essas faltas e outras falhas estruturais não legitimam a violência
para quebrar as instituições. Foram abertas na Constituição múltiplas
possibilidades, nela também foram estabelecidos limites.
Aqui e alhures registram-se agressões ao
próprio Estado de Direito e às garantias constitucionais. "A violência, a
intimidação e o desafio dirigidos aos juízes por causa do seu trabalho minam a
nossa República e são totalmente inaceitáveis", escreveu recentemente o
presidente da Suprema Corte norte-americana, John G. Roberts Jr.
Nos dias correntes, clama-se por paz. O
bem-vindo chamado à paz deve vir, contudo, acompanhado da memória viva e da
imprescindível justiça, na forma da lei e dentro das garantias fundamentais.
Não se pode afastar da liberdade a responsabilidade. Fora da democracia, nas
ditaduras, paz é apenas um simulacro. A paz fidedigna sabe à democracia, que
representa o convívio entre diferentes.
Na legalidade constitucional há necessárias e
suficientes soluções pacíficas dos dissensos à luz do devido processo,
contraditório e ampla defesa: preservação das instituições com o respeito
integral à autonomia e independência do Judiciário, alternância no poder com a
soberania inviolável da vontade popular, numa sociedade aberta e plural.
A receita é simples, a prática é árdua. O
complexo desafio não assombra. Precisamos fazer o que nos toca na genuína
humildade. À política o que é da política; ao direito o que é do direito, com
sobriedade e imparcialidade, para dar respostas institucionais seguras,
equilibradas, com respeito ao dissenso, ao prestar de contas ao passado, e
estar à altura de um futuro habitável.
Como lembra Mohamed Mbougar Sarr em seu livro
"A Mais
Recôndita Memória dos Homens," há fenômenos que são hápax por
definição, aqueles somente vistos uma vez. Essa ideia é aplicável, na
literatura, a autor ou obra singular.
Mesmo que em sentido um tanto diverso,
parece-nos que pode ser atrelada a fato que se circunscreve a um único
episódio: 8 de Janeiro nunca mais.
*Ministro do Supremo Tribunal Federal
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