Folha de S. Paulo
Só uma liderança comprometida com valores
básicos de humanidade pode deter a escalada
Há muito oportunismo político no uso da
acusação de antissemitismo para qualquer crítica aos ataques de Israel em
Gaza. Bombardeios indiscriminados, cerco total, restrição à ajuda humanitária,
mortes que se aproximam —se é que já não passaram— das 100 mil. Não há
antissemitismo nenhum em denunciar tudo isso e cobrar um cessar-fogo imediato.
O oportunismo da acusação só é possível, contudo, porque o problema social que ele busca explorar para fins políticos existe. O antissemitismo é real e está em crescimento pelo mundo, como mostra o ataque terrorista em Boulder, Colorado, contra uma marcha que pedia a libertação dos reféns do Hamas. Sinagogas ameaçadas, estudantes judeus acuados em universidades americanas, defesas explícitas do Hamas. Não faltam exemplos.
O antissemitismo vindo de árabes e
palestinos, por sua vez, apenas confirma para israelenses que a convivência é
impossível. O primeiro-ministro Binyamin
Netanyahu afirma abertamente que pretende reocupar Gaza. E, segundo
pesquisa recente da Universidade Penn State publicada no jornal Haaretz, 82%
dos israelenses apoiam a expulsão dos palestinos.
Uma pesquisa de 2024, em parceira da
Universidade de Tel Aviv com
entidades palestinas, revelou que 66% dos israelenses acreditam que "os
palestinos querem cometer genocídio contra nós". Entre os palestinos, 61%
acreditam o mesmo dos judeus israelenses. Se seu vizinho quer te matar, o que
pode ser mais lógico do que matá-lo antes?
Uma lição deve ter ficado clara: a liderança
do Hamas e sua ideologia terrorista foram os piores males que já se acometeram
sobre eles. Sua ideologia terrorista e a decisão de manter os reféns presos,
além de moralmente repugnante, foi também um desastre estratégico, ao dar ao
governo israelense (o lado mais forte desse conflito) todos os pretextos de que
ele precisa para levar adiante a destruição completa de Gaza.
Levando isso em conta, é preciso encontrar um
caminho para a paz. Uma saída para a situação seria a intervenção dos EUA para
impor algum limite a Israel. Neste momento, contudo, esperar de Trump algo
além de apoio tácito a tudo o que Netanyahu fizer parece ilusório. Pelo
contrário: para ele, um atentado antissemita cometido por um árabe muçulmano
que está irregularmente no país cai como uma luva para sua própria política
anti-imigrantes.
Em situações dessas, em que o ódio se
retroalimenta de lado a lado, só uma liderança comprometida com valores básicos
de humanidade pode interromper a escalada ou a dizimação de um lado. Essa
esperança seria totalmente ingênua se não tivesse exemplos reais no passado. Um
Mandela, um Gandhi, um Pepe Mujica. Líderes que, chegando ao poder, com a faca
e o queijo na mão para perseguir a vingança, apostaram na reconciliação, mesmo
que sob as acusações dos radicais de seu próprio lado. E mesmo —como no caso de
um Yitzhak Rabin no próprio Israel— colocando sua vida em risco.
E isso nos traz para um dos grandes problemas
globais: a pressão quase invencível para a seleção dos extremos nas
democracias. Qualquer passo na direção da moderação, da conciliação ou da paz
traz consigo um custo eleitoral considerável.
Em Gaza, em Tel Aviv, em Washington, e também
em Brasília e na Europa. Ou o
mundo democrático começa a escolher líderes que não coloquem sua tribo acima de
tudo e contra todos ou todos rumaremos juntos para a destruição mútua.
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