Valor Econômico
Governo Trump levou ao paroxismo os impulsos desses poderosos oligarcas que ambicionam o controle privado do Estado americano
O secretário de Estado norte-americano, Marco
Rubio, revelou o propósito do governo Donald Trump de sancionar autoridades
estrangeiras que afetem a “liberdade de expressão” conduzida pelas big techs. A
instantaneidade que impera em nossos tempos desatou, rapidamente, na mídia e
nas redes sociais, recriminações agressivas endereçadas ao ministro do STF
Alexandre de Moraes.
Devo acentuar a palavra instantaneidade. Ela
significa os modos linguísticos que se apresentam na sociabilidade das redes
sociais. Sociabilidade construída no interior das plataformas. Assim funcionam
as comunicações e as opiniões que circulam no Facebook, Instagram, WhatsApp e X
(outrora Twitter).
O economista Yanis Varoufakis arrisca seus neurônios para definir as transformações que levaram as economias de mercado a desaguarem no regime tecnofeudal. Suas peripécias conceituais apontam a substituição dos mercados por plataformas de negociação digital. Elas parecem, mas não são, mercados. Essas plataformas são semelhantes aos feudos. Assim, argumenta Varoufakis, o lucro, motor do capitalismo, foi substituído por seu predecessor feudal: a renda. Especificamente, é uma forma de aluguel que deve ser paga pelo acesso a essas plataformas e à nuvem de forma mais ampla.
Elon Musk invocou a liberdade de expressão
para atacar o STF na pessoa do ministro Alexandre de Moraes. A propósito dessa
reivindicação libertária muskiana e trumpista, peço licença para cometer a
ousadia de perpetrar algumas considerações inspiradas em autores que trataram
do mundo das plataformas.
Franco “Bifo” Berardi esclarece as diferenças
estruturais entre as funções institucionais de Moraes e o modo de operação das
plataformas na defesa da liberdade de expressão. Berardi estabelece uma
distinção entre as formas tecnológicas dominantes no antigo “sistema de
máquinas” e aquelas impulsionadas pelos avanços da inteligência artificial, da
internet das coisas, da nanotecnologia e da robótica.
“Passamos de um regime disciplinar a um
regime de controle. No primeiro caso, a máquina se constituiu diante do corpo e
da mente humana, era externa em relação ao corpo que permanecia corpo
pré-técnico. Por isso, o corpo-mente devia ser regulado normativa, legal e
institucionalmente, para, em seguida, ser submetido ao ritmo das máquinas
concatenadas. No segundo caso, o que se nos apresenta hoje, a máquina não está
mais diante, e sim dentro do corpo, dentro da mente, e os corpos não podem se
relacionar nem a mente se expressar sem o suporte técnico da máquina
biopolítica. Por isso, não é mais necessário o trabalho de disciplinamento
político, legislativo, jurídico. O controle se dá inteiramente a partir da
própria máquina interna. Não somente a máquina, mas sua concepção também sofre
uma mutação nessa passagem. Na época digital, a máquina é diferença de
informação, não exterioridade, mas sim modelação linguística, automatismo
lógico e cognitivo”.
Prometidas como espaço do movimento livre de
ideias, redes se tornaram calabouço policialesco da vigilância e cancelamento
Em entrevista à “Folha de S. Paulo”, Stuart
Russell, professor de ciência da computação da Universidade da
Califórnia-Berkeley afirmou: “Estamos construindo sistemas cada vez mais
poderosos que não entendemos e não controlamos. Temos de resolver o problema do
controle. Os governos deveriam exigir que as empresas garantam que seus
sistemas se comportem adequadamente.
Evgeny Morozov, no livro “Big Tech”, citou o
debate entre Gilles Deleuze e Antônio Negri nos anos 90 do século passado,
quando as formas tecnológicas, hoje dominantes, já mostravam suas forças. “Como
disse Gilles Deleuze em conversa com Antônio Negri em 1990, ‘Em face das formas
próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os
confinamentos mais duros pareçam pertencer a um passado delicioso e
benevolente’. Essa conexão entre a aparente abertura da nossa infraestrutura
tecnológica e o grau cada vez maior de controle continua a ser pouco
compreendida”.
Nesse processo de autotransformação, é
importante compreender que a materialidade do sistema de máquinas entrega sua
alma ao comando do “General Intellect”. Assim, um certo Karl Marx, ainda no
século XIX observou: “... o desenvolvimento do capital fixo (sistema de
máquinas) indica o grau em que o conhecimento social se tornou uma força direta
de produção e em que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado
sob o controle do General Intellect e passou a ser transformado de acordo com
ele”.
Em seu desenvolvimento, a Indústria 4.0
exprime o avanço do sistema de máquinas promovido pelo General Intellect. A
nova fase da digitalização é conduzida pelo aumento do volume de dados,
ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades
analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e
máquina e na transferência de instruções digitais para o mundo físico.
Não são desprezíveis as turbulências sociais
disparadas pelo avanço das formas tecnológicas embutidas das big techs. A
aceleração do progresso tecnológico desloca um contingente significativo de
trabalhadores para atividades de baixa qualificação, o que deprime a
produtividade a capacidade de consumo dos trabalhadores submetidos ao emprego
precário e intermitente. Na outra ponta do espectro social, as plataformas
incitam as ambições de poder dos oligarcas que as controlam. O governo Trump
levou ao paroxismo os impulsos desses poderosos senhores que ambicionam o
controle privado do Estado americano.
As redes sociais devem ser observadas no
âmbito dessas transformações tecnológicas. Prometidas como o espaço do
movimento livre das ideias e das opiniões, se transformaram num calabouço
policialesco em que o debate livre de ideias é substituído pela vigilância e
pelo cancelamento. A vigilância exige convicções esféricas, maciças,
impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da
turba enfurecida, disposta ao linchamento.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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