terça-feira, 3 de junho de 2025

Sob o comando das big techs - Luiz Gonzaga Belluzzo*

Valor Econômico

Governo Trump levou ao paroxismo os impulsos desses poderosos oligarcas que ambicionam o controle privado do Estado americano

O secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, revelou o propósito do governo Donald Trump de sancionar autoridades estrangeiras que afetem a “liberdade de expressão” conduzida pelas big techs. A instantaneidade que impera em nossos tempos desatou, rapidamente, na mídia e nas redes sociais, recriminações agressivas endereçadas ao ministro do STF Alexandre de Moraes.

Devo acentuar a palavra instantaneidade. Ela significa os modos linguísticos que se apresentam na sociabilidade das redes sociais. Sociabilidade construída no interior das plataformas. Assim funcionam as comunicações e as opiniões que circulam no Facebook, Instagram, WhatsApp e X (outrora Twitter).

O economista Yanis Varoufakis arrisca seus neurônios para definir as transformações que levaram as economias de mercado a desaguarem no regime tecnofeudal. Suas peripécias conceituais apontam a substituição dos mercados por plataformas de negociação digital. Elas parecem, mas não são, mercados. Essas plataformas são semelhantes aos feudos. Assim, argumenta Varoufakis, o lucro, motor do capitalismo, foi substituído por seu predecessor feudal: a renda. Especificamente, é uma forma de aluguel que deve ser paga pelo acesso a essas plataformas e à nuvem de forma mais ampla.

Elon Musk invocou a liberdade de expressão para atacar o STF na pessoa do ministro Alexandre de Moraes. A propósito dessa reivindicação libertária muskiana e trumpista, peço licença para cometer a ousadia de perpetrar algumas considerações inspiradas em autores que trataram do mundo das plataformas.

Franco “Bifo” Berardi esclarece as diferenças estruturais entre as funções institucionais de Moraes e o modo de operação das plataformas na defesa da liberdade de expressão. Berardi estabelece uma distinção entre as formas tecnológicas dominantes no antigo “sistema de máquinas” e aquelas impulsionadas pelos avanços da inteligência artificial, da internet das coisas, da nanotecnologia e da robótica.

“Passamos de um regime disciplinar a um regime de controle. No primeiro caso, a máquina se constituiu diante do corpo e da mente humana, era externa em relação ao corpo que permanecia corpo pré-técnico. Por isso, o corpo-mente devia ser regulado normativa, legal e institucionalmente, para, em seguida, ser submetido ao ritmo das máquinas concatenadas. No segundo caso, o que se nos apresenta hoje, a máquina não está mais diante, e sim dentro do corpo, dentro da mente, e os corpos não podem se relacionar nem a mente se expressar sem o suporte técnico da máquina biopolítica. Por isso, não é mais necessário o trabalho de disciplinamento político, legislativo, jurídico. O controle se dá inteiramente a partir da própria máquina interna. Não somente a máquina, mas sua concepção também sofre uma mutação nessa passagem. Na época digital, a máquina é diferença de informação, não exterioridade, mas sim modelação linguística, automatismo lógico e cognitivo”.

Prometidas como espaço do movimento livre de ideias, redes se tornaram calabouço policialesco da vigilância e cancelamento

Em entrevista à “Folha de S. Paulo”, Stuart Russell, professor de ciência da computação da Universidade da Califórnia-Berkeley afirmou: “Estamos construindo sistemas cada vez mais poderosos que não entendemos e não controlamos. Temos de resolver o problema do controle. Os governos deveriam exigir que as empresas garantam que seus sistemas se comportem adequadamente.

Evgeny Morozov, no livro “Big Tech”, citou o debate entre Gilles Deleuze e Antônio Negri nos anos 90 do século passado, quando as formas tecnológicas, hoje dominantes, já mostravam suas forças. “Como disse Gilles Deleuze em conversa com Antônio Negri em 1990, ‘Em face das formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente’. Essa conexão entre a aparente abertura da nossa infraestrutura tecnológica e o grau cada vez maior de controle continua a ser pouco compreendida”.

Nesse processo de autotransformação, é importante compreender que a materialidade do sistema de máquinas entrega sua alma ao comando do “General Intellect”. Assim, um certo Karl Marx, ainda no século XIX observou: “... o desenvolvimento do capital fixo (sistema de máquinas) indica o grau em que o conhecimento social se tornou uma força direta de produção e em que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado sob o controle do General Intellect e passou a ser transformado de acordo com ele”.

Em seu desenvolvimento, a Indústria 4.0 exprime o avanço do sistema de máquinas promovido pelo General Intellect. A nova fase da digitalização é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina e na transferência de instruções digitais para o mundo físico.

Não são desprezíveis as turbulências sociais disparadas pelo avanço das formas tecnológicas embutidas das big techs. A aceleração do progresso tecnológico desloca um contingente significativo de trabalhadores para atividades de baixa qualificação, o que deprime a produtividade a capacidade de consumo dos trabalhadores submetidos ao emprego precário e intermitente. Na outra ponta do espectro social, as plataformas incitam as ambições de poder dos oligarcas que as controlam. O governo Trump levou ao paroxismo os impulsos desses poderosos senhores que ambicionam o controle privado do Estado americano.

As redes sociais devem ser observadas no âmbito dessas transformações tecnológicas. Prometidas como o espaço do movimento livre das ideias e das opiniões, se transformaram num calabouço policialesco em que o debate livre de ideias é substituído pela vigilância e pelo cancelamento. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp 

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