terça-feira, 3 de junho de 2025

Vale do Silício, o filme - Pedro Doria

O Globo

A premissa da obra do diretor e roteirista Jesse Armstrong, responsável pela série 'Succession', parece absurda, mas não é

A HBO aprovou “Mountainhead” , filme que estreou sábado no serviço de streaming Max, em dezembro. Jesse Armstrong, diretor e roteirista responsável pela série “Succession”, teve quatro meses para escrever o roteiro, conseguir os atores, filmar, editar e botar no ar. Quando a ideia lhe ocorreu, Donald Trump já estava eleito presidente americano; Mark Zuckerberg (CEO da Meta) já havia dado sua entrevista sobre a “falta que faz energia masculina” e anunciado o fim da moderação; e Elon Musk estava confirmado como parte do governo. Em “Succession”, Armstrong apresentou sua versão da família Murdoch, capitaneando um dos maiores impérios de comunicação do mundo. “Mountainhead” é só um filme, não uma série inteira em múltiplas temporadas. A intenção é dissecar do mesmo jeito os tech bros. Os bilionários do Vale do Silício. E, de certa forma, ele consegue.

O filme é puro humor negro, e a premissa em que se baseia talvez pareça absurda. Três bilionários e um milionário se encontram numa grande propriedade em meio à neve para jogar pôquer no fim de semana. São, por quase todo o filme, só eles quatro em cena. Venis (Cory Michael Smith) é o homem mais rico do mundo e, horas antes de chegar à casa, soltou um upgrade em sua rede social com uma nova tecnologia de IA capaz de produzir vídeos indistinguíveis da realidade. Jeff (Ramy Youssef) é seu principal concorrente. Não é tão rico, mas vale algumas dezenas de bilhões de dólares. Sua companhia desenvolveu uma IA capaz de filtrar o conteúdo real do falso. Quanto mais fake news houver no mundo, mais sua criação terá valor em dinheiro. Randy (Steve Carell), um grande investidor que pôs dinheiro nas duas empresas, está com um câncer incurável e se recusa a aceitá-lo. Sua aposta é que, quando a IA ultrapassar a inteligência humana, chegará o momento da singularidade. É quando a inteligência de alguém pode ser transportada a uma máquina. Livra-se o corpo humano, mas a alma segue viva para sempre num computador, num robô, o que for. E, por fim, há Hugo (Jason Schwartzman), criador de um app de meditação que se sente inferior aos três, já que tem apenas meio bilhão de dólares.

Justamente naquele fim de semana, por causa da nova versão de IA da grande rede social, o mundo está um caos. Indianos e paquistaneses explodiram em guerra, o prefeito de Paris foi assassinado, casas são incendiadas na Armênia e na Turquia, em vários cantos da Europa, noutros tantos da África. Os mercados futuros oscilam loucamente, o mais pobre deles entra e sai de uma extensa reunião por videoconferência com o governo argentino (que deseja controlar), e o presidente dos Estados Unidos liga desesperadamente para falar com o mais rico. A toda hora, na tela do celular de todos, cenas de incêndios, saques e explosões. “Metade disso nem deve ser verdade”, um ou outro comenta. O único que parece preocupado com o caos em que coletivamente puseram o mundo é Jeff. Aquele do app que distingue verdade de mentira. (Quando alguém parecer um mocinho no filme, desconfie.)

Se a premissa do filme parece absurda, não é. O mundo não explodiu em conflitos por causa de inteligência artificial ou desinformação. As guerras por aí, a gente sempre fez mesmo. Mas a natureza do jogo democrático se tornou mais instável, e as emoções na política estão à flor da pele. Ficou mais fácil para demagogos, e o espaço para circulação de discurso moderado desapareceu. Isso é um feito do Vale do Silício. E, com a eleição de Trump, ao menos parte daqueles bilionários entrou num estado profundo de alienação. Não se sentem responsáveis pela consequência de suas ações. Zuckerberg e Musk são, provavelmente, as mostras mais claras deste tipo.

Em parte, a alienação se mostra pelas peculiares ideologias que nascem no Vale. As conversas sobre p(doom) são corriqueiras. (É a probabilidade de IA destruir o mundo.) Uns se classificam como desaceleracionistas, outros como aceleracionistas. Quem acha que a tecnologia deve ser desenvolvida tão rápido quanto possível ou com cautela. O cheiro da conversa é de ficção científica, mas eles tratam desses temas como se fosse mundo real. O mais assustador é que, se o risco de fim da humanidade realmente existir, quem são eles para achar que têm o direito de tomar tais decisões em nome do resto de nós? Mas, ao se considerarem os homens mais preparados e inteligentes do mundo, ora, sim. Julgam que não há gente mais bem preparada para decidir o futuro. Nosso futuro.

Só que não são tão especiais assim. “Mountainhead”, o filme, é sobre isso.


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