O Globo
A premissa da obra do diretor e roteirista
Jesse Armstrong, responsável pela série 'Succession', parece absurda, mas não é
A HBO aprovou “Mountainhead” , filme que estreou sábado no serviço de streaming Max, em dezembro. Jesse Armstrong, diretor e roteirista responsável pela série “Succession”, teve quatro meses para escrever o roteiro, conseguir os atores, filmar, editar e botar no ar. Quando a ideia lhe ocorreu, Donald Trump já estava eleito presidente americano; Mark Zuckerberg (CEO da Meta) já havia dado sua entrevista sobre a “falta que faz energia masculina” e anunciado o fim da moderação; e Elon Musk estava confirmado como parte do governo. Em “Succession”, Armstrong apresentou sua versão da família Murdoch, capitaneando um dos maiores impérios de comunicação do mundo. “Mountainhead” é só um filme, não uma série inteira em múltiplas temporadas. A intenção é dissecar do mesmo jeito os tech bros. Os bilionários do Vale do Silício. E, de certa forma, ele consegue.
O filme é puro humor negro, e a premissa em
que se baseia talvez pareça absurda. Três bilionários e um milionário se
encontram numa grande propriedade em meio à neve para jogar pôquer no fim de
semana. São, por quase todo o filme, só eles quatro em cena. Venis (Cory
Michael Smith) é o homem mais rico do mundo e, horas antes de chegar à casa,
soltou um upgrade em sua rede social com uma nova tecnologia de IA capaz de
produzir vídeos indistinguíveis da realidade. Jeff (Ramy Youssef) é seu
principal concorrente. Não é tão rico, mas vale algumas dezenas de bilhões de
dólares. Sua companhia desenvolveu uma IA capaz de filtrar o conteúdo real do
falso. Quanto mais fake news houver no mundo, mais sua criação terá valor em
dinheiro. Randy (Steve Carell), um grande investidor que pôs dinheiro nas duas
empresas, está com um câncer incurável e se recusa a aceitá-lo. Sua aposta é
que, quando a IA ultrapassar a inteligência humana, chegará o momento da
singularidade. É quando a inteligência de alguém pode ser transportada a uma
máquina. Livra-se o corpo humano, mas a alma segue viva para sempre num
computador, num robô, o que for. E, por fim, há Hugo (Jason Schwartzman),
criador de um app de meditação que se sente inferior aos três, já que tem
apenas meio bilhão de dólares.
Justamente naquele fim de semana, por causa
da nova versão de IA da grande rede social, o mundo está um caos. Indianos e
paquistaneses explodiram em guerra, o prefeito de Paris foi
assassinado, casas são incendiadas na Armênia e na Turquia, em vários
cantos da Europa, noutros tantos da África. Os mercados futuros oscilam
loucamente, o mais pobre deles entra e sai de uma extensa reunião por
videoconferência com o governo argentino (que deseja controlar), e o presidente
dos Estados
Unidos liga desesperadamente para falar com o mais rico. A toda hora,
na tela do celular de todos, cenas de incêndios, saques e explosões. “Metade
disso nem deve ser verdade”, um ou outro comenta. O único que parece preocupado
com o caos em que coletivamente puseram o mundo é Jeff. Aquele do app que
distingue verdade de mentira. (Quando alguém parecer um mocinho no filme,
desconfie.)
Se a premissa do filme parece absurda, não é.
O mundo não explodiu em conflitos por causa de inteligência artificial ou
desinformação. As guerras por aí, a gente sempre fez mesmo. Mas a natureza do
jogo democrático se tornou mais instável, e as emoções na política estão à flor
da pele. Ficou mais fácil para demagogos, e o espaço para circulação de
discurso moderado desapareceu. Isso é um feito do Vale do Silício. E, com a
eleição de Trump, ao menos parte daqueles bilionários entrou num estado
profundo de alienação. Não se sentem responsáveis pela consequência de suas
ações. Zuckerberg e Musk são, provavelmente, as mostras mais claras deste tipo.
Em parte, a alienação se mostra pelas
peculiares ideologias que nascem no Vale. As conversas sobre p(doom) são
corriqueiras. (É a probabilidade de IA destruir o mundo.) Uns se classificam
como desaceleracionistas, outros como aceleracionistas. Quem acha que a
tecnologia deve ser desenvolvida tão rápido quanto possível ou com cautela. O
cheiro da conversa é de ficção científica, mas eles tratam desses temas como se
fosse mundo real. O mais assustador é que, se o risco de fim da humanidade
realmente existir, quem são eles para achar que têm o direito de tomar tais
decisões em nome do resto de nós? Mas, ao se considerarem os homens mais
preparados e inteligentes do mundo, ora, sim. Julgam que não há gente mais bem
preparada para decidir o futuro. Nosso futuro.
Só que não são tão especiais assim.
“Mountainhead”, o filme, é sobre isso.
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