CartaCapital
A anistia é mais uma arapuca, mas
enfrentá-la, caso aprovada pelo Congresso, é outro dever incontornável do Poder
Judiciário
Durante seu quadriênio na Presidência da República, Jair Bolsonaro esmerou-se em atacar a estrutura institucional do Estado brasileiro. Não é de se estranhar que o tenha feito, não só pela trajetória marginal e antissistema, mas pelo anúncio explícito, feito em sua primeira viagem aos Estados Unidos, de que era preciso desconstruir antes de construir. Ou seja, a destruição era objetivo, não descaminho.
Isso ficou evidente no desmonte de áreas
importantes da burocracia governamental e de políticas públicas longamente
construídas e aperfeiçoadas. O desmantelamento veio acompanhado de assédio
institucional a servidores de setores tidos como inimigos do projeto
bolsonarista, devido à própria missão que lhes atribui a lei. Lembre-se do
ocorrido nas áreas ambiental, indigenista, cultural, científica e educacional –
as mais emblemáticas. Pense-se também na saúde, vilipendiada pelo negacionismo
bolsonarista durante a pandemia.
A dilapidação, contudo, não se ateve a órgãos
do Executivo federal, mas se direcionou aos entes subnacionais e aos demais
ramos de governo. O embate com governadores e prefeitos não começou com a
pandemia, mas já corria solto durante o primeiro ano de mandato, quando o então
presidente xingava governadores e anunciava seu intento demagógico de baixar o
preço dos combustíveis à custa dos cofres estaduais, algo que finalmente obteve
às vésperas da eleição de 2022.
Acompanhado de sua base militante, atacou o Congresso,
que, devido à abdicação presidencial de construir uma coalizão legislativa,
lhe impunha seguidas derrotas. Resolvido o problema com o Parlamento, mediante
à adesão ao “Centrão” e apoio à escolha de
Arthur Lira para dirigir a Câmara, o bolsonarismo direcionou suas
baterias contra o Poder Judiciário, ou, mais especificamente, contra o Supremo
Tribunal Federal.
As causas da insatisfação bolsonaresca com o
STF eram muitas. Primeiramente, as decisões tomadas durante a pandemia, que
detiveram a intromissão negacionista do governo federal nas competências
sanitárias de estados e municípios, visando impedi-los de tomar medidas
necessárias para conter a disseminação do vírus. Em segundo lugar, os
inquéritos relativos aos ataques da ultradireita ao regime democrático,
particularmente ao Supremo.
Foi nesse contexto que, em 7 de setembro de
2021, Bolsonaro vituperou contra a Corte, com especial atenção a Alexandre de
Moraes, que se converteu em sua nêmesis. Aquele, contudo, não foi um ato
isolado. Ele se inscrevia num modus operandi do bolsonarismo, que também se
verifica noutros governos populistas mundo afora, de cometer transgressões
legais para produzir um ciclo de conflitos que mina a legitimidade das
instituições de controle, principalmente as judiciais. A ele se pode chamar de
armadilha populista.
Tipicamente, a armadilha populista compõe-se
por um ciclo de seis etapas: 1) os populistas (seja o governante,
sejam seus apoiadores) cometem transgressões; 2) diante delas, o
Judiciário é provocado a agir e 3) toma medidas contrárias às
vontades dos populistas; 4) contrariados, os populistas desferem
ataques contra as Cortes, questionando sua legitimidade e seus intentos; 5) diante
do ataque, as Cortes se defendem institucional ou judicialmente; 6) os
populistas denunciam a reação judicial como prova cabal da politização ou
partidarização do Judiciário, minando sua legitimidade.
A armadilha populista é, em boa medida,
incontornável. Evitá-la implicaria a inação do Judiciário em situações nas
quais é seu dever tomar providências, cumprindo sua função institucional. Por
outro lado, mesmo derrotados judicialmente, os populistas ganham politicamente com
a conflagração, pois fragilizam a legitimidade das instituições que lhes põem
freios e, ao mesmo tempo, apresentam-se a seus apoiadores como vítimas de um
sistema injusto contra o qual se batem, mobilizando-os e se reforçando. Ou
seja, o Judiciário faz o jogo dos populistas justamente ao cumprir sua
finalidade constitucional.
A saída da armadilha é punir os populistas
duramente e os tirar do jogo, como fez o STF ao condenar Bolsonaro e cúmplices
por golpe e atentado contra o Estado Democrático de Direito. Uma anistia
reiniciaria, porém, o ciclo. Se for aprovada e, vetada pelo presidente,
sancionada após a derrubada do veto, a lei terá sua constitucionalidade
questionada no Supremo que, declarando-a inconstitucional, coloca-se novamente
no alvo – com o agravante de colidir com o Congresso. A anistia é mais uma
armadilha populista. •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital,
em 24 de setembro de 2025.
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