O Estado de S. Paulo
A anistia proposta agora é inaceitável porque a sua ideia supõe virada de mesa e desconsideração de julgamento do Poder Judiciário
Este artigo é uma réplica ao artigo A anistia
e a Constituição de 1988 (Estadão, 17/9, A4), que defende a legitimidade
constitucional da anistia como instrumento jurídico e político válido,
inclusive no caso de crimes contra a democracia.
De anistia em anistia, caminhamos. E, a
julgar pela condescendência com que olhamos para o passado e o beneplácito que
não distingue a seriedade de muitos momentos de nossa República – que, aliás,
nasceu de um golpe militar –, vamos nos acostumando aos golpes e contragolpes.
Reconhecer o percurso que muitos têm como apaziguador, ou sinônimos que se queiram usar, mas que, em verdade, significam resiliência em conviver com rupturas, de forma a tomá-las como triviais, exige altivez para enxergar e criticar.
A propósito, o argumento de que a
Constituição de 1988 decorreu, ela mesma, de anistia e de um acerto com a
Emenda Constitucional 26/1985, que coincidiu no ponto com a Lei da Anistia (Lei
6.683/1979), não auxilia os juristas de agora.
Diagnosticado o problema, ele não passa por
mágica a ser lido como a solução ou consenso. Não é relevante, do ponto de
vista constitucional, o contexto prévio à Carta de 1988, pois sua motivação
decorre do conhecido “ódio à ditadura” e a marca do poder constituinte
originário foi deixada na sua reserva de justiça no âmbito das cláusulas
pétreas. E, se desde 1988 carregamos as feridas da p e r mi s s i v i d a d e
da Lei 6.683/1979, é porque teimamos em fugir do acerto de contas com o autoritarismo.
Ou a Constituição de 1988 rompe com o passado ou ela seria outra coisa.
E o debate em si mesmo sobre a anistia
pré-1988 não pode ser usado como pano para lustrar o golpismo de agora. A
história constitucional brasileira deve iluminar os ataques de golpes e
contragolpes militares e civis, e não, com ares de candura, levar a crer que
“as coisas são assim”. É só “cobrando o que fomos que nós iremos crescer”,
cantou Milton Nascimento.
Por isso, o argumento segundo o qual inexiste
proibição constitucional de anistia para os crimes contra o Estado Democrático
de Direito é inócuo. Desde os próceres de 1988, quando nem sequer havia sua
previsão, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2 se solidificou o
entendimento de que o constituinte não é adivinho. E mesmo que não se foque na
tipicidade da proibição cons
O reserva-se o direito de selecionar e
resumir as cartas. Correspondência sem identificação (nome, RG, endereço e
telefone) será desconsiderada titucional de anistia (o que acende outro debate,
de natureza convencional e de como lidamos com os compromissos assumidos
internacionalmente), há na discussão atual da anistia a tendência a abolir a
separação dos Poderes, bem como um ataque à moralidade.
A anistia proposta agora é inaceitável porque
a sua ideia supõe virada de mesa. Supõe desconsideração de julgamento do Poder
Judiciário – e, neste caso, da Suprema Corte. Porque supõe borracha imediata
sobre reprovação do que se viu em cores vivas ao longo dos últimos anos no
Brasil. Anistia, instrumento tão sério como é, e são também o indulto e o
perdão, se bem que sem o espírito cesaropapista dos outros dois, traz em si o
germe do amesquinhamento de um dos Poderes constituídos. No caso desta, é
acintoso o desrespeito à decisão judicial.
Noutra perspectiva, defender que se cuida de
ato do Parlamento é próximo de nada. E não convence saltar do respeito à esfera
de atribuição de cada Poder (julgar de um lado, legislar de outro) para
construir dique – muito contextual, a propósito, e eis aí novo motivo de
inconstitucionalidade, pois se cuida de endereçamento certo – de proteção
contra apreciação jurisdicional. Mais do que ser moeda corrente, o fato de que
não há lesão a direito que não possa ser apreciada pelo Poder Judiciário
(artigo 5.º, XXXV, Constituição federal), há anos no Brasil e em outros países
se superou o dogma da intangibilidade dos chamados “atos políticos”. Mesmo com
forum@estadao.com comedimento, o Poder Judiciário pode e deve controlar os atos
de outros Poderes, ainda que adornados com as mais belas pinceladas teóricas.
Afastar do plano concreto a ideia absurda de
anistia a quem se viu recentemente condenado pelos atos que quase fizeram nossa
democracia soçobrar mais uma vez não significa compactuar com Direito Penal
máximo nem é argumento para que a defesa da democracia seja feita
“necessariamente” pela via penal. As coisas estão em lugares distintos:
enquanto houver Direito Penal – mínimo –, há alguém que controle sua aplicação,
há um Poder que o aplique. E esse Poder é o Poder Judiciário. O risco maior é
não o de o Direito Penal se constituir em hidra, mas o de, em se tomando como
normal a insurreição contra decisão jurisdicional, amesquinhar a estrutura do
Estado. E aí não seria de dimensões do Direito que estaríamos cuidando, mas de
simplesmente o meio de desmerecer um ou mais dos Poderes constituídos, a
depender do incômodo que causem – daí a imoralidade e o desvio de finalidade.
Não dá para passar pano para golpistas de
agora nem fazer pouco caso da seriedade do que está por trás do debate sobre o
que seja uma anistia. Não dá para olhar para trás, com os exemplos todos de
golpes redivivos, e tomá-los como fatos anódinos. •
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