sábado, 20 de setembro de 2025

Do que falamos quando falamos de anistia. Renato Vieira

O Estado de S. Paulo

A anistia proposta agora é inaceitável porque a sua ideia supõe virada de mesa e desconsideração de julgamento do Poder Judiciário

Este artigo é uma réplica ao artigo A anistia e a Constituição de 1988 (Estadão, 17/9, A4), que defende a legitimidade constitucional da anistia como instrumento jurídico e político válido, inclusive no caso de crimes contra a democracia.

De anistia em anistia, caminhamos. E, a julgar pela condescendência com que olhamos para o passado e o beneplácito que não distingue a seriedade de muitos momentos de nossa República – que, aliás, nasceu de um golpe militar –, vamos nos acostumando aos golpes e contragolpes.

Reconhecer o percurso que muitos têm como apaziguador, ou sinônimos que se queiram usar, mas que, em verdade, significam resiliência em conviver com rupturas, de forma a tomá-las como triviais, exige altivez para enxergar e criticar.

A propósito, o argumento de que a Constituição de 1988 decorreu, ela mesma, de anistia e de um acerto com a Emenda Constitucional 26/1985, que coincidiu no ponto com a Lei da Anistia (Lei 6.683/1979), não auxilia os juristas de agora.

Diagnosticado o problema, ele não passa por mágica a ser lido como a solução ou consenso. Não é relevante, do ponto de vista constitucional, o contexto prévio à Carta de 1988, pois sua motivação decorre do conhecido “ódio à ditadura” e a marca do poder constituinte originário foi deixada na sua reserva de justiça no âmbito das cláusulas pétreas. E, se desde 1988 carregamos as feridas da p e r mi s s i v i d a d e da Lei 6.683/1979, é porque teimamos em fugir do acerto de contas com o autoritarismo. Ou a Constituição de 1988 rompe com o passado ou ela seria outra coisa.

E o debate em si mesmo sobre a anistia pré-1988 não pode ser usado como pano para lustrar o golpismo de agora. A história constitucional brasileira deve iluminar os ataques de golpes e contragolpes militares e civis, e não, com ares de candura, levar a crer que “as coisas são assim”. É só “cobrando o que fomos que nós iremos crescer”, cantou Milton Nascimento.

Por isso, o argumento segundo o qual inexiste proibição constitucional de anistia para os crimes contra o Estado Democrático de Direito é inócuo. Desde os próceres de 1988, quando nem sequer havia sua previsão, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2 se solidificou o entendimento de que o constituinte não é adivinho. E mesmo que não se foque na tipicidade da proibição cons

O reserva-se o direito de selecionar e resumir as cartas. Correspondência sem identificação (nome, RG, endereço e telefone) será desconsiderada titucional de anistia (o que acende outro debate, de natureza convencional e de como lidamos com os compromissos assumidos internacionalmente), há na discussão atual da anistia a tendência a abolir a separação dos Poderes, bem como um ataque à moralidade.

A anistia proposta agora é inaceitável porque a sua ideia supõe virada de mesa. Supõe desconsideração de julgamento do Poder Judiciário – e, neste caso, da Suprema Corte. Porque supõe borracha imediata sobre reprovação do que se viu em cores vivas ao longo dos últimos anos no Brasil. Anistia, instrumento tão sério como é, e são também o indulto e o perdão, se bem que sem o espírito cesaropapista dos outros dois, traz em si o germe do amesquinhamento de um dos Poderes constituídos. No caso desta, é acintoso o desrespeito à decisão judicial.

Noutra perspectiva, defender que se cuida de ato do Parlamento é próximo de nada. E não convence saltar do respeito à esfera de atribuição de cada Poder (julgar de um lado, legislar de outro) para construir dique – muito contextual, a propósito, e eis aí novo motivo de inconstitucionalidade, pois se cuida de endereçamento certo – de proteção contra apreciação jurisdicional. Mais do que ser moeda corrente, o fato de que não há lesão a direito que não possa ser apreciada pelo Poder Judiciário (artigo 5.º, XXXV, Constituição federal), há anos no Brasil e em outros países se superou o dogma da intangibilidade dos chamados “atos políticos”. Mesmo com forum@estadao.com comedimento, o Poder Judiciário pode e deve controlar os atos de outros Poderes, ainda que adornados com as mais belas pinceladas teóricas.

Afastar do plano concreto a ideia absurda de anistia a quem se viu recentemente condenado pelos atos que quase fizeram nossa democracia soçobrar mais uma vez não significa compactuar com Direito Penal máximo nem é argumento para que a defesa da democracia seja feita “necessariamente” pela via penal. As coisas estão em lugares distintos: enquanto houver Direito Penal – mínimo –, há alguém que controle sua aplicação, há um Poder que o aplique. E esse Poder é o Poder Judiciário. O risco maior é não o de o Direito Penal se constituir em hidra, mas o de, em se tomando como normal a insurreição contra decisão jurisdicional, amesquinhar a estrutura do Estado. E aí não seria de dimensões do Direito que estaríamos cuidando, mas de simplesmente o meio de desmerecer um ou mais dos Poderes constituídos, a depender do incômodo que causem – daí a imoralidade e o desvio de finalidade.

Não dá para passar pano para golpistas de agora nem fazer pouco caso da seriedade do que está por trás do debate sobre o que seja uma anistia. Não dá para olhar para trás, com os exemplos todos de golpes redivivos, e tomá-los como fatos anódinos. •

 

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