Três pontos do decreto podem ser questionados na Justiça; lei precisa especificar quais informações seriam requisitadas
Investigar crimes pressupõe a delimitação de quais são os crimes, quais são as vítimas e quem são os suspeitos
Ivar A. Hartmann
O decreto publicado segunda-feira no Rio busca uma solução para atos de vandalismo que têm tumultuado algumas das manifestações populares no Estado.
Entretanto, as alternativas adotadas podem conflitar com a Constituição Federal em ao menos três pontos. Isso torna real a possibilidade de questionamento do decreto na Justiça.
Primeiro, o decreto possibilita violar, sem autorização judicial, o sigilo das comunicações feitas pelos fluminense por telefone ou pela internet.
Uma lei desse tipo precisaria no mínimo especificar que tipo de informações a comissão pode requisitar. Esse tipo de poder irrestrito ao governo para obter dados imita prática do governo norte-americano recém-descoberta e muito criticada pelo próprio governo brasileiro.
De qualquer forma, a Constituição não autoriza os Estados a estabelecer regulações sobre processo ou empresas de telecomunicação. Somente a União pode fazer isso.
Mais importante, a Constituição estabelece direito fundamental contra a possibilidade de que o poder público quebre o sigilo de telecomunicações sem autorização (caso a caso) do Judiciário.
O decreto permitiria ao governo fluminense criar um banco de dados de informações pessoais privadas. Investigar não é captar e armazenar uma massa de dados pessoais sobre o cotidiano de qualquer cidadão. Investigar crimes pressupõe a delimitação de quais são os crimes, quais são as vítima e quem são os suspeitos.
Os "pedidos de informações" mencionados pelo decreto do governador do Rio de Janeiro podem institucionalizar o monitoramento indiscriminado, desvinculado de qualquer investigação específica e sem fiscalização do Judiciário.
O segundo ponto problemático é que o decreto pretende regular o fluxo de trabalho de "todos os órgãos públicos" do Estado ao estabelecer "prioridade absoluta" para as solicitações da comissão. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é um desses órgãos públicos. Se tentar incluir o Judiciário sob essa regra, o governo do Estado praticará séria violação da independência institucional, um dos pilares da Constituição. Ditar regras de prioridade do Judiciário está além das competências do Executivo.
Atos de vandalismo
Terceiro, o decreto determina que a Comissão realizará "investigação da prática de atos de vandalismo". A equipe será composta inclusive por membros da Polícia Militar, entre outras entidades.
Policiais militares monitorariam as telecomunicações de qualquer cidadão fluminense, sem ordem judicial. A Constituição determina que cabe à Polícia Civil investigar suspeitos de vandalismo. Não à Polícia Militar.
A razão disso fica clara diante da declaração recente da Polícia Militar do Rio: "Quem posta material multimídia na internet incentivando a violência e o #vandalismo é criminoso".
Ao proteger a Marcha da Maconha, o Supremo Tribunal Federal já mostrou que a Constituição garante a liberdade de expressão contra a repressão indiscriminada.
Essa e outras decisões afirmando garantias constitucionais criam grandes obstáculos ao decreto, a despeito do objetivo relevante de proteger população dos vândalos.
Ivar A. Hartmann é professor do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio
Fonte: Folha de S. Paulo
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