A alegria, a descontração e a propriamente esculhambação geral com que o papa Francisco foi recebido no Rio de Janeiro augura uma expectativa de retomada do catolicismo popular --popular não no sentido classista da palavra, mas no sentido histórico de tradição-- com todos os seus defeitos e muitas das qualidades que moldaram a cultura brasileira.
Como todos sabem, o catolicismo é um das principais dimensões da formação social e cultural brasileira, junto com as três raças hierarquizadas, mas também miscigenadas, o elitismo e patrimonialismo portugueses e o bandeirantismo tupiniquim. Aqui me concentro no catolicismo popular, seu declínio nos últimos 50 anos e uma possível renovação, sinalizada pela chegada de Francisco.
O catolicismo popular é a principal fonte de sacralização da cultura brasileira tradicional. Ser católico é ser gente humana e é ser social com Deus. Até recentemente, índios que sobreviveram em regiões de colonização tradicional, como o Nordeste, se constituíram cristãos para serem reconhecidos como gente. Alguns consideram isso sinal de opressão e colonialismo, mas não podem negar que foi a estratégia para os índios serem aceitos pela orbe e sobreviverem com integridade. Seus descendentes mestiços assim o são.
Os negros, escravos ou livres, os mulatos e cafuzos também se imbuíram do catolicismo e tinham certeza de que só pertencendo a irmandades e contribuindo para a Igreja é que podiam ser vistos como gente digna de respeito.
Os descendentes da elite portuguesa, mestiços ou puros, os donos do país, contavam com o catolicismo para reger a sacralidade da vida e, sem dúvida, para controlar seus impulsos de mando absoluto e de desvios bandeirantistas.
Assim, ao longo de nossa formação histórico-cultural o catolicismo popular se tornara a âncora que estabilizava o barco oscilante dos conflitos internos da cultura brasileira. Evidentemente tem em si uma forte dimensão conservadora, que favorece o sentimento centrípeto de nossa cultura, mas é para isto precisamente que serve a religião na consolidação de um povo e uma cultura. No plano existencial o catolicismo popular alivia o sofrimento, consola os injustiçados, ameniza a maldade dos opressores e os integra a todos num sentimento de comunidade.
Assim tem sido desde a chegada dos jesuítas em 1549, com a afirmação de nossa lusitanidade, em altos e baixos, a imposição sobre todos do catolicismo tridentino e sua paidéia, não obstante as eventuais disputas entre Igreja e Estado e a irremovível presença de sentimentos religiosos indígenas e africanos.
Até que o frenesi da modernidade rachou a segurança da cultura popular brasileira, a qual se abriu a novas dimensões religiosas, especialmente o protestantismo evangélico, e a sentimentos anti- ou trans-religiosos advindos da sacralização da ciência. Dado que a ciência se comporta como um agnosticismo e tão-somente contribui para o espírito hedonista do nossos tempos, é o caráter do protestantismo evangélico que desafia a hegemonia do catolicismo popular e consequentemente a sacralidade tradicional da cultura popular brasileira.
De um pai inalcançável, distante porém bondoso qual um avô, junto a um filho reto, porém mundano, e um elusivo e misterioso espírito, que perdoam pecados e fazem vista grossa para as exigências dos novos costumes, um panteão de santos caridosos, incluindo uma mãe acolhedora, que intervêm sobre o absolutismo paterno, a custo zero, mas com alto grau de ineficiência, e uma plêiade de sacerdotes malemolentes, identificados pelos mesmos defeitos de seus rebanhos (ainda que sob um aceitável manto de hipocrisia), eis que surge um pai todo-poderoso e um filho espiritual diligente e exigente, ambos supostamente alcançáveis por contato direto, que só perdoam por um compromisso de retorno a uma retidão comportamental mitológica, mediados por sacerdotes histriônicos e espetaculares que falam despudoradamente sobre valores e custos, prometem benefícios mundanos, cobram caro, porém no limite das possibilidades dos seus rebanhos, e indubitavelmente entregam um produto final com eficiência e para a satisfação dos seus membros.
Reagindo à desestruturação da vida social, que, antes consolidada, dera suporte à cultura popular brasileira, e ao hedonismo da pós-modernidade, esta quase só acessível a classes sociais abastadas, degenerada em vulgaridades culturais, o protestantismo evangélico alcançou o coração dos desvalidos e, ao impor um novo regramento, lhes deu um sentido de integridade pessoal e uma participação no sagrado da vida. O crescimento vertiginoso do protestantismo evangélico, nos últimos 50 anos, se deu precisamente onde a desestruturação aconteceu com mais profundidade: nas metrópoles que recebem imigrantes, nos estados expansionistas e nas cidades que incharam em favelas, mocambos e vida extremamente custosa, até para as históricas carências em que sempre viveram.
A disputa original entre catolicismo e protestantismo se deu no limiar da modernidade, uma olhando para o passado, a outra construindo o futuro. No Brasil, defasado no seu tempo histórico, esse embate se dá muito tempo depois, já quase como farsa, e só parcialmente nesses moldes, na medida em que o que fora futuro ainda consegue prover às classes desvalidas uma chance de entrar na modernidade. Para isso o empuxo evangélico exige a quebra da cultura tradicional brasileira, mirando o lado hipócrita da corte sacerdotal católica, sua ineficiência, seu anacronismo comportamental e seu comprometimento com o sistema hierárquico brasileiro. Daí porque os fiéis evangélicos aceitarem e acatarem os meneios comportamentais de seus próprios sacerdotes. Porém, fundamentalmente, o que os compensa diante desses reconhecidos desvios é o sentimento de participação no sagrado, que lhes dá identidade e integridade.
A Igreja Católica reage de vários modos ao desafio do concorrente, todos, ao que parece, ineficazes. A propalada opção pelos “pobres” e oprimidos, por um viés político, esbarra num embate rancoroso contra o Estado, contra qualquer governo, como bem vemos na atualidade. Não comove os corações, não retifica ações injustas, não promove sociabilidades novas, cria tão-somente ilusões políticas. Nesse sentido cai bem a frase de Jesus, no sentido de que seu reino não é o mesmo de César. Já a recusa à modernidade comportamental da cúria sacerdotal, seu arraigamento à paidéia tridentina, sua rígida e anacrônica liturgia ofuscam e desviam o sentido do amor –ao próximo, à dignidade da vida humana e à natureza-- que é e deve ser a principal, se não a única, contribuição verdadeira ao sagrado da vida.
Pode ser que o histerismo evangélico e o autismo católico se recuperem de seus predicamentos. Difícil prognosticar, já que a vida pós-moderna ainda tem muitos recursos a exercer e prepondera sobre o mundo.
Do lado evangélico, sua multiplicidade de estilos dificulta sobremodo a formação de uma tomada de consciência antropológica que lhe permita retificar desvios e conciliar antagonismos e com isso seguir um caminho reto, próprio de sua formação original, de cunho calvinista.
Já no catolicismo, o que temos agora, e com repercussões no Brasil, é a potencialização de uma instituição secular, coesa, que tem auto-consciência de seu passado e consciência antropológica do mundo atual. O duplo, e não de todo descontínuo, pontificado que domina a Igreja Católica, um auto-consciente pontífice germano, em modo dormente, e um iluminado pontífice argentino, em modo messiânico, cria uma tensão positiva que pode sinalizar um portal para a re-afirmação do sagrado na vida.
Quem sabe? Ao ver o encantamento religioso com que foi recebido o jesuíta Francisco, alguém pode se lembrar de José de Anchieta ou Antonio Vieira, pregadores e missionários de hereges, ou recordar um Padre Cícero ou um Frei Damião, moldadores do catolicismo popular ainda recorrente, por consolar os desvalidos e amaldiçoar infiéis e ateus.
Que o Brasil precisa desesperadamente ressacralizar sua vida social, não há a mínima dúvida. O hedonismo desenfreado, a corrupção política, a desonestidade pessoal, o domínio do econômico sobre o cultural, a indecisão identitária, o histrionismo, a insensatez, a irresponsabilidade e o descompromisso com a comunidade campeiam pelos nossos sertões e pelos desvãos urbanos. Porém, o que urge fazer não pode ser inspirado por uma nostalgia do passado, senão uma afirmação do presente visando o futuro por uma sacralização que incorpore harmonicamente as necessidades culturais do tempos atuais. Não pelo messianismo, nem pela burocratização de uma (nova) liturgia, nem tampouco pela politização da cultura popular.
O Papa Francisco sabe o que faz ao se mostrar alegre e feliz, tolerante e dialogador, compassivo e acalentador. Seu exemplo parece ser um bom augúrio. Resta saber se será suficiente para enfrentar a tradição curial e o gigantismo institucional, arejar os castelos católicos do mundo, e emular nosso clero para estabelecer uma renovação do catolicismo popular brasileiro.
Se tal não vier a acontecer, paciência, outras forças religiosas e morais poderão surgir num futuro ainda não vislumbrável, para evitar que o mundo entre em convulsão geral.
Mércio P Gomes, antropólogo, professor da UFRJ. Foi presidente de Funai.
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